Monday, May 14, 2007

A despedida de Sir Roland Hanna


A despedida de Sir Roland Hanna
Arnaldo DeSouteiro

(artigo escrito em 21 de Novembro de 2002 e publicado no jornal "Tribuna da Imprensa")

Alguns jazzistas de maior popularidade (e popularidade jazzística se mede, no Brasil, com base em quem se apresentou no finado Free Jazz ou no esquisito Chivas...), ao passarem desta para uma muito melhor, recebem a suprema glória de um obituário nos chamados “grandes jornais”. Geralmente (mal) traduzidos de notas enviadas por agências de notícias; porém, antes isso do que nada. Até porque, com a enorme quantidade de desaparecimentos recentes, as chamadas “colunas especializadas”, como a deste humilde escriba, não se ocupariam de outra coisa. Mas desta vez não podemos deixar de prestar emocionadas homenagens a um dos melhores e menos badalados pianistas da história do jazz. E também seu único Sir. Mestre de estilo inconfundível, digitação nobre, approach imperial, fácil de ser identificado pela sonoridade volumosa e ao mesmo tempo macia, de harmonias sofisticadas e improvisos sutis. Sir Roland Hanna, cujo falecimento, dia 13 último, aos 70 anos, passou em brancas nuvens.

Sem demagogia, tratava-se de um dos últimos estilistas ativos em um gênero que, ao invés da permanente evolução que sempre o caracterizou, vem padecendo de um processo de involução (detonado pelo almofadinha Wynton Marsalis e seus pseudo neo-boppers) semelhante ao da MPB, cada vez mais embolada, tramada, chorada e mal sambada, diga-se de passagem. Pois voltando a Roland Hanna, tratou de exercer sua arte sem precisar se humilhar perante imbecis diretores de gravadoras. Tampouco fingiu – por não ser louco – que o mercado não existia ou não importava. Tanto que, embora nunca tenha freqüentado as paradas de sucesso (seus discos geralmente vendiam entre 5 e 10 mil cópias), gravou mais de 40 álbuns como líder, para selos de porte médio como Storyville, Black Hawk, Inner City, MPS, Enja, CTI e várias etiquetas japonesas. Claro: eram discos de baixo custo (geralmente trio ou pequenas formações), com retorno garantido, já que Hanna soube conquistar um séqüito fiel de fãs.

Embora jamais tenha se encaixado no perfil de “músico de estúdio”, por não se submeter a “roubadas” que lhe trariam mais alguns dólares mas manchariam sua reputação, atuou prolificamente como”sideman”. Deu-se ao luxo de, em mais de quatro décadas de carreira exemplar, acompanhar apenas amigos que admirava. E que amigos! Gente como Kenny Burrell, Benny Carter, Jimmy Knepper, Joe Pass, Joe Henderson, Elvin Jones, Stephane Grappelli, Dexter Gordon, Gene Ammons, Paul Desmond, James Newton e George Mraz. Entre as cantoras, adorava principalmente Carmen McRae, Helen Merrill (com quem fez uma das mais emocionantes performances nos anais do Festival de Montreux, infelizmente nunca lançada em disco) e Sarah Vaughan, fazendo maravilhas em jóias tipo “Crazy and mixed up” (Pablo, 1982, já relançado em CD pela Fantasy), para o qual contribuiu também como autor da sublime balada “Seasons”.

Rubinstein e Chopin

Roland Pembroke Hanna, agraciado com o título de Sir em 1970 pelo governo da Libéria, em reconhecimento a um sem-número de concertos beneficentes para causas humanitárias, era um dos últimos pianistas da escola “bop-romântica” (também chamada de “Detroit school of jazz piano”), na qual despontaram o saudoso Tommy Flanagan, Barry Harris e Hank Jones. Mas Hanna era o que melhor juntava a destreza harmônica do bebop com a elegância e a sutileza do romantismo europeu, fruto da paixão pela música clássica. Afinal, que outro jazzman citaria Art Tatum e o polonês Arthur Rubinstein como seus pianistas favoritos? Pista certa para compreender a profunda influência de Frédéric Chopin no estilo de Hanna como compositor, tão nítida na obra-prima “24 Preludes” – não coincidentemente, Chopin reuniu seus 24 prelúdios na Opus 28...

Entre seus colaboradores mais freqüentes estiveram Benny Goodman (nos anos 50), Charles Mingus (períodos alternados entre 52 e 71), Ron Carter e a fantástica big-band de Thad Jones/Mel Lewis que marcou época nas noites de segunda-feira no clube novaiorquino Village Vanguard, nos anos 60 e 70. As contribuições de Roland para alguns dos melhores LPs da orquestra, como “Suite for Pops” e “New life” (no qual, além de solos memoráveis de piano, ainda toca celesta na bossa “Love and harmony”), foram inestimáveis. A paixão pela música de Mingus continuou após a morte do baixista, quando integrou o grupo Mingus Dinasty sempre que possível entre 79 e 97, e participou da premiere da obra “Epitaph” (1990), documentada em LaserVideodisc da Sony lançado apenas no Japão. Neste formato, aliás, o talento de Hanna pode ser apreciado no encontro de all-stars “One night stand – a keyboard event” (filmado no Carnegie Hall pela antiga CBS em 82, com Roland mostrando uma faceta mais “free” no duo com Arthur Blythe em “A common cause”, antes de unir-se a cinco outros pianistas na complexa “Hexagon”) e num projeto de Carter, “Django”, bancado pela VídeoArts.

Ron Carter foi um capítulo à parte na trajetória de Hanna. Primeiro, pelos trabalhos maravilhosos que fizeram juntos em dois LPs do baixista para a CTI: “All Blues” (destaque para a aula de sutileza em “Light blue”) e “Spanish blues”. Depois, ao formarem o New York Jazz Quartet em 74, completado por Frank Wess na flauta e Ben Riley na bateria. Logo o conjunto foi contratado pelo selo Salvation, subsidiário da CTI, e embarcou para uma turnê pela Ásia, com um dos shows documentado no brilhante LP “In concert in Japan”, cujo ponto alto era o número-solo de Roland, “Introspection”, uma fantasia-improviso mesclando influências de Chopin, Schumann e Schubert sem copiar nenhum deles. Em 97, Didier Deutsch aprontou uma confusão das arábias ao ser chamado para produzir o relançamento em CD nos EUA: mantendo a mesma capa e o mesmo título do LP original, usou o tape de um outro show (!) captado durante a mesma excursão, com repertório diferente mas felizmente também impecável. Quanto ao material do LP de 75, permanece inédito em CD. Mesmo caso do raríssimo álbum “Roland Hanna Trio”, gravado em Tokyo incluindo hinos de Charlie Parker tipo “Yardbird suíte” e “Now’s the time” ao lado da avant-garde “Concepts”, improvisada no estúdio com Carter & Riley.

Elegância e ecletismo

Seria injusto, entretanto, reclamar da discografia de Roland Hanna já disponível em CD. No Japão, por exemplo, onde era adorado e excursionava três vezes por ano – a infecção viral no coração foi detectada em Tokyo há três semanas – existem 35 CDs em catálogo. Entre eles, “Glove”, “Perugia”, “Swing me no waltzes”, “Dream” (4 estrelas na edição de julho da Down Beat) e “Milano, Paris, New York”, os dois últimos lançados em 2002 pelo selo Venus do produtor Tetsuo Hara. Outro produtor marcante em sua carreira, Creed Taylor, possibilitou nosso herói a exercitar sua versatilidade, sem perder a personalidade. Livre de preconceitos, como todos os sábios, não via mal algum em eventualmente trocar o piano acústico pelo elétrico Fender Rhodes tão em voga nos anos 70. No disco “House of the rising sun”, do batera Idris Muhammad, além de arrasar na faixa “Suntan”, conduziu a melodia do, adivinhem?, “Prelúdio em Mi menor, Op. 28, Nº 4”, de Chopin, aquele inspirador da “Insensatez” Jobiniana).

Naquele mesmo ano, 1975, aplicou sua concepção ultra-refinada aos antológicos “The rape of el morro”, do maestro Don Sebesky, usando o Rhodes para flutuar na mágica “Moondreams”, e “Concierto”, do guitarrista Jim Hall, aprontando um dos três mais belos solos de sua vida (ancorado por Carter & Steve Gadd) na recriação jazzística do famoso Adágio do Concierto de Aranjuez, de Joaquin Rodrigo. Por acaso, este álbum acaba de se tornar, esta semana, o primeiro título do catálogo da CTI a ser relançado no formato DVD-Audio, de resolução sonora muito superior a dos CDs convencionais. O último trabalho de Hanna como líder para a CTI, “Gershwin Carmichael Cats” (82), reeditado em CD apenas no Japão pela King Records, é igualmente imperdível. Uma das faixas, “The nearness of you” virou prefixo do programa “Jazz Espetacular”, por mim criado na Radio Tupi FM em 1983. Assessorado por Chet Baker, Larry Coryell, George Mraz, Mike Richmond, David Spinozza e Peter Erskine, ele passeia ainda por “Skylark”, “Stardust” e “Embraceable you”.

Apesar de tantas gravações, frequentes turnês e atuações em musicais da Broadway (“Maya the bee” o mais recente deles), o ganha-pão certeiro de Roland vinha de seu trabalho como professor. O ex-aluno da Juilliard lecionava na Manhattan School of Music, na Eastman, na New School e no Queens College. A partir dos anos 90, dedicava cada vez mais tempo à música clássica, embora permanecesse atuante na Lincoln Center Jazz Orchestra e na Smithsonian Jazz Masterworks. Em 93, fez um triunfal retorno a Detroit (onde nasceu em 10 de fevereiro de 1932), apresentando sua obra “Oasis” acompanhado pela Sinfônica local. Vinha compondo inúmeras peças para balé (“Desert knights”) e música de câmara, inclusive em obras na qual ele próprio tocava violoncelo! Nas entrevistas, dizia sempre que seu maior objetivo como ser humano era abolir as fronteiras musicais. Sábio, muito sábio, esse Sir Roland Hanna. Swing em paz!

Legenda:
“Roland Hanna gravando com o baixista George Mraz, freqüente colaborador”

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