Tuesday, May 22, 2007

A Arte do Trio

A arte do trio
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 17 de Setembro de 2002 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Não, não se trata de uma resenha atrasada a respeito dos superestimados discos “The art of the trio”, do pedante Brad Mehldau, um sub-Keith Jarrett que se torna ainda mais intragável quando ataca em duo com a bonitinha mas ordinária (no sentido musical, obviamente) Fleurine. Ao contrário do mascarado pianista, com sua pinta de rebelde sem causa, os líderes dos trios hoje aqui em questão são autênticos mestres, dotados de originalidade, carisma e personalidade própria. Por coincidência, nenhum deles americano, o que mais uma vez corrobora a universalidade do jazz. O dominicano Michel Camilo comanda Anthony Jackson & Horacio Hernandez em “Triângulo”, sua irretocável estréia no selo Telarc. Atual diretor musical de Diana Krall, o neozelandês Alan Broadbent faz maravilhas ao lado de Brian Bromberg & Joe LaBarbera em “You and the night and the music”. E o canadense Oscar Peterson barbariza em dois CDs-duplos, “In Russia” e “The Paris Concert”, reeditados remasterizados e com novas capas.

Sabor latino

Desde sua estréia com “Why Not?” em 85, para a companhia japonesa King Records, Michel Camilo nunca lançou um disco que não fosse brilhante. Depois de uma série de petardos (via Sony) que o consagraram mundialmente, e de rápidas passagens pelos selos RMM e Verve (distribuidor de seu memorável duo com o violão flamenco de Tomatito em “Spain”), o mancebo assinou com a Telarc. O début na nova casa vem na forma de mais um impecável álbum, “Triangulo” (54m35s), retomando a formação de trio com Anthony Jackson (seu baixista mais frequente desde “Why Not?”) e o endiabrado batera cubano Horacio “El Negro” Hernandez. Documentado em agosto de 2001, no estúdio novaiorquino Avatar (antigo Power Station) em 24 canais analógicos (isso mesmo, processo analógico!, o que ajuda a explicar o punch da gravação), porém usando o sistema DSD de conversão digital, gerador de uma fantástica resolução sonora, já tem lugar garantido entre os melhores CDs lançados este ano.

No auge da maturidade, Camilo apresenta várias composições próprias como as sinuosas “Piece of cake” e “Anthony’s blues”. Jackson, mais sutil do que nunca, faz seu baixo elétrico Fodera de 6 cordas soar como um delicado violão na intro de “Afterthought”, antes de fornecer uma pontuação zen a “Just like you”, exemplos da faceta de Michel como emérito baladista, conhecida desde a obra-prima “Thinking of you”. As composições alheias também foram muito bem escolhidas: “La comparsa” (Lecuona), “Mr. C.I.” (Chano Dominguez, com os rufos marciais de Hernandez, na caixa-clara, lembrando as gravações de Steve Gadd com Chick Corea) e “Con Alma” (Gillespie), na qual o piano parece levitar sobre o clima espacial das figuras rítmicas arquitetadas pelo baterista. Nas duas últimas faixas, as arrebatadoras “Descarga for Tito Puente” e “dotcom-bustion”, o trio desce o sarrafo em performances de grande impacto, com o cowbell acoplado por Hernandez ao seu “drumset” acentuando o sabor latino responsável pelo diferencial-referencial na trajetória de Camilo.

Talento de Auckland

Certamente o jazzmen neo-zelandês de maior sucesso internacional, Alan Broadbent conquistou prestígio nos EUA ao ingressar na big-band de Woody Herman em 1969, após três anos de estudo no Berklee College of Music (Boston) e também com Lennie Tristano. O rapaz nascido em Auckland logo tornou-se cidadão do mundo, radicando-se na Califórnia. Foi pianista de Nelson Riddle durante dez anos, trabalhando também com Henry Mancini e Johnny Mandel. Sua participação, tocando Rhodes, no LP “First flight“, de Don Menza & Frank Rosolino em 1977, levava João Donato ao nirvana em reuniões em minha casa. Apontado “arranjador revelação” pelos críticos da Down Beat em 72, treinou o talento como orquestrador em discos de Mel Tormé, Natalie Cole (ganhando seu primeiro Grammy em 1997 pela faixa “When I fall in love”), e do grupo Quartet West de Charlie Haden. Diretor musical e regente de sua ex-aluna Diana Krall na turnê do CD “Then look of love”, documentada no DVD “Live in Paris”, acaba de ser chamado para dar um verniz à insossa Jane Monheit em seu disco “In the sun”.

No novíssimo CD “You and the night and the music” (53m16s), coincidentemente lançado pela mesma King Records que apostou em Michel Camilo, Alan consegue um resultado muito superior aos seus anteriores discos de trio para a Concord Records. Gravado em apenas dois dias (15 & 16 de março de 2002) em Los Angeles, traz o craque assessorado por músicos tão injustiçados – em termos de popularidade – quanto ele: Brian Bromberg (revelado aos 19 anos no grupo de Stan Getz em 1979) e Joe LaBarbera (o último baterista de Bill Evans, antes de passar uma década com Tony Bennett). Influenciado por Tristano, Tatum, Peterson e Flanagan, o pianista passeia com absoluta desenvoltura por standards como “I wish I knew” (fazendo do piano uma harpa), “What’s new?”, “Baubles, bangles and beads” (transformado em jazz-waltz) e a faixa-título. Chamado de “Eddie Van Halen do contrabaixo”, por seu estilo vigoroso, Brian toca aqui de forma mais contida mas não menos densa, aprontando sucessivos solos impecáveis, tal qual um Eddie Gomez enviagrado. E o barbudo LaBarbera dá aulas no uso de vassourinhas, embora seu melhor solo aconteça com as baquetas em “Dearly beloved”. Como brinde final, uma deliciosa releitura da bossa “Ceora”, do gigolô Lee Morgan.

Shows memoráveis

Virtuose-mor, o canadense Oscar Peterson faz parte de um grupo especial de jazzmen (Sonny Rollins e o saudoso Art Blakey também estão entre eles) que sempre renderam mais ao vivo do que em estúdio. Dois imperdíveis álbuns, produzidos por Norman Granz para o selo Pablo, são reeditados agora em CDs-duplos pela Fantasy Records, reembalados com nova arte gráfica. “The Paris Concert” (92m40s) traz a versão integral de um recital ao lado dos não menos dotados Joe Pass (guitarra) e Niels Pederesen (baixo) na Salle Pleyel em 5 de outubro de 78. Ou seja: nada de bateria, com os três instrumentos revezando-se no fornecimento dos grooves, como detalha o crítico Benny Green no minucioso texto do livreto. No primeiro disco, o trio prova sua interação telepática em seis longos temas, chegando ao ápice nas baladas “Who can I turn to” e “Goodbye”. No segundo, Peterson e Pedersen saem do palco num certo momento, deixando Pass brilhar sozinho em “Gentle tears” e “Lover man”. O monstro dinamarquês volta para duos fenomenais com Joe em “Samba de Orfeu” (Bonfá) e “Donna Lee” (Parker), antes de Oscar retornar para o final apoteótico através de “Sweet Georgia Brown”.

A formação convencional de piano/baixo/bateria é adotada parcialmente no CD “Oscar Peterson in Russia” (98m05s). Mas o astro apresenta os primeiros números (destaque para “I concentrate on you”) em piano-solo. Seguem-se quatro duos com o viking Niels, incluindo memoráveis reinvenções de “Wave” (Jobim) e “On the trail”, baseada em trecho da suíte “Grand Canyon” de Ferde Grofé. Na segunda parte, entra em cena o esquecido baterista Jake Hanna, participando de refulgentes versões de “Take the A train”, Lil Darlin’” e “Watch what happens”, levando a platéia ao delírio. Exemplos de técnica colossal a serviço da mais elevada musicalidade. Algum complexado que ousar falar mal, por não controlar sua inveja, deve ser internado para tratamento psiquiátrico. No bis, Peterson sozinho mostra seu lirismo em “Someone to watch over me”. Analisar detalhadamente este disco daria um livro, mas tentaremos resumir da seguinte forma: tudo que um ser humano pode fazer, em termos de execução pianística, Peterson fez naquela noite de 17 de novembro de 1974. A glória eterna já lhe está garantida.

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