Tuesday, May 22, 2007

Apetitosa safra de DVDs


Apetitosa safra de DVDs
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 27 de Março de 2003 e originalmente publicado no jornal "Tribuna da Imprensa"

Uma tentadora safra de DVDs oferece opções para jazzófilos de variadas correntes. O carro-chefe é “The Miles Davis Story”, versão ampliada do ótimo documentário dirigido, produzido e narrado por Mike Dibb para o Channel 4 da televisão britânica, mesclando trechos musicais de diferentes fases com vários depoimentos de músicos e familiares. Há também recente show de Herbie Hancock, que promove uma atualização cibernética da porção “fusion” de sua vasta obra. Carla Bley e Charlie Haden, mestres de incorruptível criatividade, são repescados em antigas, mas inéditas, performances no Festival de Jazz de Montreal.

Mito analisado

Apresentado pretensiosamente como a visão definitiva do legado de um dos maiores gênios da música, “The Miles Davis Story” (2h05m), lançamento da Legacy/Sony, chega bem próximo de seu propósito. O diretor Mike Dibb habilmente escapa dos lugares-comuns nas entrevistas, bem como evita as imagens batidas de cenas musicais. Nesse ponto, provoca mais do que sacia a curiosidade dos fãs, expostos a pequenos trechos de vários shows anteriormente nunca vistos. Inclusive apresentações da fase do jazz-rock, com a bandaça que incluía Keith Jarrett, Chick Corea, Jack DeJohnette, Dave Holland & cia, da qual supostamente não existia registro visual algum além daquela música (“Call it anything”) criminosamente editada no vídeo da Ilha de Wight. Pois agora sabemos que não apenas existe um show inteiro, filmado na Alemanha em 71, como também sua qualidade de som é fenomenal. Lançamentos comerciais deste e de outros espetáculos, como os da turnê de divulgação do disco “We Want Miles”, com Marcus Miller no baixo, se fazem necessários com a maior urgência!

Há ainda as famosas cenas com a orquestra de Gil Evans para um programa de TV na época de “Miles ahead”, os lendários quintetos dos anos 50 (com Coltrane) e 60 (Hancock, Carter, Williams e Shorter, o melhor grupo da história do jazz), além de vasto material fotográfico. O trompetista inglês Ian Carr consegue extrair interessantes declarações de Dave Holland, John McLaughlin, Dave Liebman, Bill Evans (o saxofonista), Marcus Miller e Keith Jarrett, até levar um fora de Ron Carter ao chamá-lo de “âncora” do conjunto. “Não gosto deste termo, porque âncora prende o navio. Arrume outra palavra para definir o que você quer expressar”, rebate o jazzman tolerância-zero. Mas os depoimentos mais reveladores sobre o ser humano Miles vêm do próprio gênio – o DVD mescla pronunciamentos inéditos e trechos extraídos dos antigos vídeos “Miles ahead” e “Live in Paris”, sem informar as fontes – e de familiares como a primeira namorada (Irene Birth, que lhe mandou à prisão por não pagar pensão alimentícia aos filhos), a linda esposa Frances Taylor, que lhe apresentou à música flamenca, e Erin Davis, o único filho homem com o qual tinha boa relação.

Os depoimentos dos produtores Bob Weinstock (fundador do selo Prestige) e George Avakian (responsável por contratar Miles para Columbia) são igualmente reveladores. Fazem falta, entretanto, as histórias de Teo Macero, mas nisso o diretor não tem culpa – há anos Teo se recusa a falar sobre Miles, cansado de ver suas informações serem distorcidas. Porém, como explicar que o nome de Airto Moreira, figura essencial na fase “jazz-rock” de Miles, não seja sequer citado? Como justificar que o último concerto em Montreux, com Quincy regendo os arranjos de Gil Evans em 91, seja totalmente ignorado? Por outro lado, a efêmera relação com a diva Shirley Horn, desprezada por Davis na sua autobiografia, é sobrevalorizada. De qualquer modo, não deixa de ser comovente ver Shirley admitir que se sentia “sexualmente atraída” pelo sátiro sedutor, que muito a incentivava enquanto fazia a esposa Frances abandonar a carreira de bailarina por puro ciúme. De qualquer modo, imperdível.

Aulas de “levadas”

Um dos mais talentosos discípulos de Miles, o camaleônico Herbie Hancock tem sua atual fase de amor pela eletrônica captada em “Future 2 future live” (1h44m), produção de seu selo Transparent Music com distribuição da Legacy/Sony. Filmado em 2002 no clube Knitting Factory, em Los Angeles, no final da excursão de divulgação do CD “Future 2 future”, traz Herbie revezando-se entre piano acústico, piano elétrico e um arsenal de sintetizadores. No apoio, as presenças competentes de Darrel Diaz (pilotando outra estante de teclados), Matthew Garrison (baixo elétrico e baixo vertical a la Pescara), a moçoila Terri Lyne Carrington (cada vez melhor na bateria, captada com uma qualidade impressionante em mixagem Dolby Surround 5.1), Wallace Roney (trompete, mais gordo e postura parecidíssima com o Freddie Hubbard dos anos 70) e o DJ Disk, craque na manipulação dos toca-discos, chegando a fazer um duelo de “scratch” com Herbie, que se arrisca num equipamento de CD-players para DJs.

A parte visual também é notável, utilizando tecnologia de ponta tanto na filmagem (feita com oito câmeras) como na edição, usando o sistema MX multiangle, que permite ao espectador optar entre a cena total ou se concentrar num músico específico. No repertório, Hancock mistura temas do último disco (entre eles “Tony Williams”, tributo ao saudoso batera) com clássicos dos anos 60 (a plácida “Dolphin dance” do álbum “Maiden Voyage” da Blue Note) e 70 (“Chameleon”, jazz-funk de riff contagiante da época dos Headhunters, e “Butterfly”, que ganha o público logo nos primeiros acordes, transformando-se no grande momento do show). Seu maior hit nos anos 80, “Rockit”, ganha versão superior à robótica gravação de estúdio, pioneira da onda hip-hop. Aliás, o vídeo-clip de “Rockit”, lançado em 83, faz parte da seção “special features” que traz depoimentos de Herbie à bordo de uma limusine, discografia, biografias de todos os músicos etc.

Shows em Montreal

Via Image Entertainment chegam DVDs de Charlie Haden e Carla Bley. Ambos com 59 minutos de duração e intitulados “Live in Montreal”. Compositora e arranjadora de desconcertante originalidade, a louraça de vasta cabeleira lidera, em julho de 1983, um “combo” de dez integrantes, no qual convivem pacificamente o segundo marido Michael Mantler, trompetista, e o terceiro, Steve Swallow, de sonoridade única no baixo elétrico - faltou apenas o primeiro esposo, Paul Bley, pianista. Carla ataca de piano & órgão, revezando com Ted Saunders, deixando a maioria dos solos para o sax-alto de Steve Slagle, a despeito da presença de um jovem Joe Lovano no tenor. O batera Victor Lewis tem atuação irretocável, estimulando as contribuições de Gary Valente (no trombonão de explosiva extroversão), Vincent Chauncey (trompa, parte fundamental das orquestrações) e Bob Stewart (tuba, com pontuações cheias de swing). Destaque para “The lord is listening to you”, “Walking battery woman”, “Caucasian bird riffles”, “Ups and downs” e “The lone arranger”.

Embora não apareça no vídeo, Carla também cuida dos arranjos executados por Charlie Haden em julho de 1992. No comando da célebre Liberation Music Orchestra, o contrabaixista de estilo inimitável (curiosamente postado no palco atrás da seção de sopros, disposta numa única longa fileira) toca com a habitual entrega emocional, oferecendo profundas doses da mais elevada musicalidade. Espiritualmente politizado, o repertório tem seu ponto alto em uma sublime suíte de temas da Guerra Civil Espanhola, devidamente jazzificados. “Nkosi Sikelei Afrika”, hino do Congresso Nacional Africano, abre o showzaço, abrigando solos de Makanda Ken McIntyre (alto) e Joe Lovano (tenor). Haden mostra também a faixa-título de seu premiado disco “Dream keeper”, antes de fechar a noite com um arrepiante “Spiritual”, com desempenhos sublimes de James Williams (piano), Sharon Freeman (trompa) e Bill Stewart (bateria, no melhor show de sua vida). O mundo agradece.

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