100 Anos de Guitarra no Jazz
“Caixa de 4 CDs mostra a evolução da guitarra em mãos prodigiosas”
Arnaldo DeSouteiro
“Caixa de 4 CDs mostra a evolução da guitarra em mãos prodigiosas”
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 23 de Setembro de 2005 e originalmente publicado no jornal "Tribuna da Imprensa"
Sério candidato ao Grammy na categoria de “historical album”, chega às lojas esta semana a caixa batizada “Progressions: 100 years of jazz guitar”. Prato cheio para os apreciadores do instrumento, independentemente de serem jazzófilos ou roqueiros, retrata e traça a sua evolução segundo alguns de seus principais amantes. Lançamento do selo Legacy, da Sony BMG, não prima pela modéstia na estampa adicionada à capa: “the most comprehensive & authoritative guitar anthology ever produced”. Não deixa de ser verdade, mas certamente a seleção das 75 faixas vai gerar muita discussão, muita controvérsia. Afinal, durante a fase de elaboração do projeto, os próprios seis produtores – Steve Berkowitz, Michael Brooks, Seth Rothstein, Bob Irwin, Richard Seidel e John Scofield – tiveram opiniões divergentes sobre muitas das escolhas, sofrendo com as decisões do que deveria entrar ou ficar de fora.
A apresentação visual é impecável. A embalagem, em formato longbox, sedutora. Os “números”, impressionantes. O livrão de 148 páginas traz a ficha técnica de cada faixa, embora com algumas falhas. E elas (as faixas, não as falhas) são comentadas, com mais erros, pelo jornalista e historiador britânico Charles Alexander, fundador (em 1984) da revista Jazzwise – hoje a mais importante publicação inglesa sobre jazz, depois que a Straight No Chaser trocou Coltrane e Yusef Lateef por Tati Quebra-Barraco e o Bonde do Tigrão, deslumbrando-se com o “funk miserê para exportação” dos bailes das favelas dominadas pelo narcotráfico. Ele próprio um guitarrista ativo na cena londrina, em duo com Andy Robinson, Alexander produziu a série (de 12 programas) “The guitar in jazz” para a BBC, tendo publicado, em 1999, os livros “The acoustic guitar” (Bramley Books) e “The electric guitar” (da editora Salamander).
As gravações cobrem o período 1906-2001. Do ragtime de Vess Ossman à estética pesudo-vanguardista e semi-free de Bill Frisell. Os produtores optaram por parar em Frisell, exageradamente endeusado, alegando que seria prematuro agregar os guitarristas surgidos posteriormente (a geração de Mark Whitfield, Russel Malone, Chris Hunter e Anthony Wilson, por exemplo), pois ainda é cedo para dizer se eles deixarão ou não seus nomes na história. Não deixam de ter razão, até porque várias figuras exponenciais do passado foram omitidas. Portanto, para gerar menos discussão, a caixa teria que ter no mínimo oito CDs, ao invés dos quatro discos compilados a partir não somente dos acervos da Sony e da BMG, mas de mais trinta selos que concordaram em ceder suas matrizes.
John Scofield, cada dia mais usando uma postura teórica como arma de autopromoção – espelhando-se no almofadinha Wynton com essas besteiras de “puro jazz” para enganar os esclerosados tradicionalistas enquanto fatura com o oportunista tributo à Ray Charles –, assina o intróito auto-referenciado, divagando sobre os guitarristas que o influenciaram. Depois vem a tese nota oito de Alexander, perfeita até os anos 50, mas com muita bola na trave nas análises dos períodos posteriores. Na página 114 aparece o capítulo, coordenado por Andy Aledort, no qual guitarristas de diferentes gêneros elegem (e comentam gravações de) seus ídolos. É surpreendente ver a paixão de Ben Harper por Barney Kessel e Anthony Wilson. A adoração da faixa-título de “Down here on the ground” (disco da fase dita “comercial” de Wes Montgomery, execrada pelos puristas) por Joe Satriani. O culto de Steve Vai à Ted Greene. O afeto de Uli Jon Roth (do Scorpions) à Django, Wes e Benson, uma das possíveis escalações para a santíssima-trindade da guitarra jazzística, com Charlie Christian no papel de principal profeta e Joe Pass como anjo do apocalipse.
Maravilhosas e sem senões são as ilustrações. Há fotos de todos os guitarristas (exceto, talvez por esquecimento, Phil Upchurch), bem como dos diversos modelos preferidos pelos jazzistas, além de reproduções de anúncios mostrando Johnny Smith com sua “Guild Guitar”, Barney Kessel e Les Paul empunhando suas Gibsons, e até o cartaz com a publicidade da Okeh Phonograph Corporation para o disco de seu contratado Eddie Lang em 1928, posando com uma pioneira Gibson L5. Completando o tratado, Andy Aledort apresenta transcrições e análises de trechos de 9 faixas da coleção; entre elas, as fundamentais “Solo flight” de Charlie Christian, “Unit 7” de Wes Montgomery, e “Birds of fire” de McLaughlin.
Documento histórico
O primeiro CD é um documento essencial, restaurado pelo engeneheiro Harry Coster a partir de discos de 78rpm dos colecionadores Mark Berresford & Michael Brooks. Sozinho, já valeria a aquisição da caixa por reunir preciosidades que estavam perdidas ou esquecidas. Começando por “St. Louis Tickle”, de Vess Ossman, nascido em 1868, conhecido como “Rei do banjo” e ouvido num registro de 1906, acompanhado por “mandolin” e “harp-guitar” em pleno boom do ragtime. Os estudiosos e colecionadores terão orgasmos múltiplos com Sam Moore tocando “octo-chorda” (uma espécie de guitarra havaiana de 8 cordas) em seu “Chain gang blues” (1921), Sol Hoopii estraçalhando na hawaiian guitar convencional em “The only, only one” (1927), Benny “King” Nawahi desdobrando-se em ukelele, banjo e steel guitar no “California blues” de 1931, e Johnny St. Cir tocando um híbrido de violão e banjo com o Hot 5 de Louis Armstrong em “Savoy blues” (1927).
Outro destaque, uma gravação até então inédita de “Dinah”, traz Roy Smeck ao lado da cantora Martha Raye em 1932. Seguem brilhando Eddie Condon (“Who’s sorry now”), o duo (de soluções harmônicas avançadíssimas para a época) Carl Kreiss & Dick McDonough em “Danzon”, produzida em 34 pelo visionário John Hammond, mais Sam Koki, o quarteto The Ink Spots, e Eddie Durham com o craque Freddie Green que se tornaria modelo de “rhythm guitarist” na banda de Count Basie. Outro momento impactante fica a cargo do subestimado argentino Oscar Alemán, tido como mero imitador de Django Reinhardt – embora, vejam só!, ele publicamente declarasse que o genial cigano não o impressionava. Oscar barbariza na versão-solo de “Whispering” (uma das canções favoritas de Luiz Bonfá, que a gravou no LP “Ritmos continentais” duas décadas depois) em 38.
Django aparece com o Quintette du Hot Club de France (Grappelli ao violino, bien sur) em “Honeysucle rose” (38), cujo solo do líder era tocado, nota por nota, pelo revolucionário Charlie Christian, ouvido na histórica gravação, de improviso igualmente histórico, na apropriadamente intitulada “Solo flight”, integrando a orquestra de Benny Goodman (41). “Christian tinha nas mãos uma eletrificada Gibson ES 150, mas um saxofone na alma, com seu fraseado inspirado pelo tenorista Lester Young”, afirma Alexander sobre aquele que influenciou dezenas de guitarristas, muitos dos quais fizeram a transição do swing para o bebop. George Barnes, Allan Reuss (da banda de Jack Teagarden), Teddy Bunn, Slim Gaillard, Al Casey (do quarteto de Fats Waller), Oscar Moore (do modelar trio de Nat King Cole) e Tiny Grimes completam o primeiro disco.
Presença brasileira
No segundo CD, o bop predomina, mas não domina. E as surpresas continuam com “Ol’ man rebop”, composição e produção do historiador Leonard Feather, trazendo o esquecido Bill De Arango como solista do grupo de Dizzy Gillespie, em 46. Na seqüência, uma série de petardos dos anos 50: Barney Kessel (“On Green Dolphin Street”, um dos primeiros motivos para discordâncias, porque a gravação mais representativa de Kessel continua sendo “Cry me a river” com Julie London), George Van Eps (“What is this thing called love?”, mostrando suas inovações harmônicas na guitarra de 7 cordas por ele mesmo desenhada), Jimmy Raney (“Body and soul”), Chuck Wayne acompanhando um estreante Tony Bennett na suingueira de “My baby just cares for me”, o pioneiro dos overdubs Les Paul na célebre dupla com a cantora Mary Ford em “Running wild”, e os arpejos da formação country do lendário Chet Atkins (“Mountain melody”).
Tal Farlow dá um show de fraseado e agilidade em “Yardbird suíte”, um dos hinos de Parker para o idioma bop. Mas um outro tipo de refinamento começa a se manifestar através do guitarrista favorito de Luiz Bonfá, o low-profile Johnny Smith (“The boy next door”), antecedendo três colaborações marcantes. Laurindo Almeida usa sua técnica a serviço da mais sofisticada musicalidade na crossover “Tocata” de Radamés Gantalli, gravada em 1953 no primeiro disco da série “Brazilliance” com Bud Shank, marco da fusão entre jazz e música brasileira. E aí, mais do que nunca, torna-se imperdoável a ausência de Bonfá, gênio que antecipou e depois transcendeu a bossa, desenvolvendo uma carreira internacional tão brilhante e diversificada quanto a de Laurindo. Também passa em branco a contribuição de Bola Sete, consagrado nas colaborações com Gillespie e Vince Guaraldi antes de partir para uma eclética carreira-solo reverenciada pelos maiores estudiosos.
A inclusão de João Gilberto dispensa justificativa, considerando-se a maciça influência detonada pelo premiadíssimo “Getz/Gilberto”. Porém, ao evitar “Garota de Ipanema” ou outra faixa do best-seller da Verve, os produtores escolheram “Águas de Março”, do “disco da capa branca” de 72, mas a Universal não liberou a faixa. O jeito foi usar outra versão da mesma música, gravada em 75 para a CBS ao lado de Stan Getz para “The best of two worlds”, com Miucha cantando a letra em inglês. Voltando aos anos 60, temos “I’ve got you under my swing”, uma das jóias do encontro da sonoridade aveludada de Jim Hall com Bill Evans no LP “Intermodulation”. Um som tão marcante e facilmente identificável quanto a guitarra em uníssono com o assobio de Toots Thielemans em “Bluesette”.
Uma sucessão de unanimidades traz os estilistas Kenny Burrell (“Midnight blue”), Wes Montgomery (“Unit 7”, do recém-relançado “Smokin’ at the half note”, produção de Creed Taylor), Herb Ellis (“Naptown blues”, de Wes, com o Oscar Peterson Trio), Hank Garland (“Move”), Howard Roberts (“Easy living”), Grant Green (“Jean de fleur”) e Joe Pass, com “Night and day”, pouco representativa de seu estilo – qualquer tema do primeiro disco “Virtuoso” teria sido uma escolha certeira. Equívoco tão inexplicável quanto a escolha da banal “Clockwise” (66) para representar George Benson, consagrado pelos discos na fase da CTI e, posteriormente, pelo multi-platinum “Breezin’”, do mega-hit “This masquerade”.
Linha evolutiva
Ainda da safra 60, destacam-se Pat Martino (esplêndido solo em “Just friends”), Lenny Breau (grande talento detonado pelas drogas) abordando jazzisticamente “A taste of honey” do meu saudoso amigo Bobby Scott, e o húngaro Gabor Szabo com sua fantástica “Gypsy queen”, depois regravada no “Abraxas” do fã Carlos Santana. Os compiladores erram feio nas escolhas das faixas de Charlie Byrd (burocrática interpretação para “Insensatez”), Larry Coryell (“June the 15, 1967” parece piada perto de suas performances na liderança do grupo The Eleventh House) e Jimi Hendrix, cujo solo em “Manic depression”, apesar de notável, nada tem de jazzístico, enquanto “Little wing” ou “Up from the skies” estariam justificadas pela influência exercida sobre Miles Davis e Gil Evans.
Representando a estética ECM, temos Mick Goodrick (“Coral”, de um disco de Gary Burton), John Abercrombie (“Ralph’s piano waltz”), o violão-solo de Ralph Towner (“The prowler”) e a faixa-título do disco de estréia de Pat Metheny, “Bright size life”, cujo maior atrativo é a presença de Jaco Pastorius no baixo. Súbito, múltiplas falhas em uma única música: “Aqui, oh”, de Toninho Horta. No texto, Charles Alexander se enrola todo, dando a entender que Toninho ainda reside em NY, e afirmando que Metheny participa da faixa. Pat gravou no disco em questão, o segundo de Toninho para a EMI-Odeon, mas em outro tema. Na ficha técnica, os compiladores acertaram ao não colocar o nome de Pat, mas erraram ao grafar o nome do saudoso sambista Roberto “Ribairo” (sic) e ao não creditar a produção a Toninho e Ronaldo Bastos, substituídos pela afirmação “produtor desconhecido”.
Questões burocráticas à parte, a despeito da beleza melódica, o elemento jazzístico desta faixa específica é mínimo, e o prodigioso Toninho tem dezenas de excelentes registros instrumentais que se encaixariam muito melhor no perfil da caixa. Sem falar de uma outra gravação bem mais jazzy (“Live in Moscow”) desta mesma música. Já totalmente inexplicável é o primário tema-título do álbum “Midnight in San Juan”, de Earl Klugh, violonista que teima em desperdiçar seu talento em discos medíocres. Sua inclusão nesta caixa somente se justifica para mostrar como o vírus do smooth-jazz ajudou a destruir o jazz fusion. Para cortar o efeito soporífero de Klugh, vale pular para o free radical do inglês Derek Bailey (“Should be reversed”) e para a pauleira do incompreendido Sonny Sharrock em “As we used to sing”, estimulado pela polirritmia do batera-vulcão Elvin Jones.
“Birds of fire”, magnífica performance de John McLaughlin na época áurea da Mahavishnu (72) deveria estar não no terceiro, mas no quarto CD da caixa, ao lado de outro inglês revolucionário, Allan Holdsworth, alucinante na “Mr. Spock” do tempo em que integrava o grupo Lifetime, de Tony Williams. (No texto, outra pisada de bola, com Alexander informando que Allan fez seu primeiro LP como líder em 78, quando tinha gravado “Velvet darkness” para a CTI dois anos antes.) O soul-jazz está representado en passant por atuações medianas dos craques Phil Upchurch (“Inner city blues”) e Eric Gale (“Thumper”), que gravaram coisas muito superiores. Também fica difícil entender a escolha da bela, porém melosa, balada pop “Europa” para representar Santana, que tem várias incursões jazzísticas de alto nível (“Borboletta”, “Welcome”, “The swing of delight”) no acervo da Sony. E muito menos a opção pela baba “Cause we’ve ended as lovers” para ilustrar o furacão Jeff Beck quando se tem “Freeway jam” à disposição.
Diferentes faces do fusion estão nas mãos do virtuose Al DiMeola (“Race with devil on a Spanish highway”), do técnico Larry Carlton (“Spiral”, com o grupo Crusaders), do certinho Lee Ritenour (“Captain fingers”), do feroz Mike Stern (“Fat time”, de sua fase com Miles em 81) e do endiabrado James Blood Ulmer (“Church”). Dos anos 90, apenas “Hottentot” (longe de ser o melhor de John Scofield – ah que saudades de “Shinola”!) e a tropicaliente “Postizo”, com Marc Ribot. Do século 21, somente a homenagem do intectualóide Bill Frisell a “Ron Carter”, gravada em 2001. Será que, algum dia, alguém prestará tributo a Frisell?
Legendas:
“Em 75 faixas, um desfile de estilistas que escreveram a história da guitarra no jazz”
“Laurindo Almeida: ilustre presença brasileira”
“Anúncio de disco gravado por Eddie Lang em 1928”
Sério candidato ao Grammy na categoria de “historical album”, chega às lojas esta semana a caixa batizada “Progressions: 100 years of jazz guitar”. Prato cheio para os apreciadores do instrumento, independentemente de serem jazzófilos ou roqueiros, retrata e traça a sua evolução segundo alguns de seus principais amantes. Lançamento do selo Legacy, da Sony BMG, não prima pela modéstia na estampa adicionada à capa: “the most comprehensive & authoritative guitar anthology ever produced”. Não deixa de ser verdade, mas certamente a seleção das 75 faixas vai gerar muita discussão, muita controvérsia. Afinal, durante a fase de elaboração do projeto, os próprios seis produtores – Steve Berkowitz, Michael Brooks, Seth Rothstein, Bob Irwin, Richard Seidel e John Scofield – tiveram opiniões divergentes sobre muitas das escolhas, sofrendo com as decisões do que deveria entrar ou ficar de fora.
A apresentação visual é impecável. A embalagem, em formato longbox, sedutora. Os “números”, impressionantes. O livrão de 148 páginas traz a ficha técnica de cada faixa, embora com algumas falhas. E elas (as faixas, não as falhas) são comentadas, com mais erros, pelo jornalista e historiador britânico Charles Alexander, fundador (em 1984) da revista Jazzwise – hoje a mais importante publicação inglesa sobre jazz, depois que a Straight No Chaser trocou Coltrane e Yusef Lateef por Tati Quebra-Barraco e o Bonde do Tigrão, deslumbrando-se com o “funk miserê para exportação” dos bailes das favelas dominadas pelo narcotráfico. Ele próprio um guitarrista ativo na cena londrina, em duo com Andy Robinson, Alexander produziu a série (de 12 programas) “The guitar in jazz” para a BBC, tendo publicado, em 1999, os livros “The acoustic guitar” (Bramley Books) e “The electric guitar” (da editora Salamander).
As gravações cobrem o período 1906-2001. Do ragtime de Vess Ossman à estética pesudo-vanguardista e semi-free de Bill Frisell. Os produtores optaram por parar em Frisell, exageradamente endeusado, alegando que seria prematuro agregar os guitarristas surgidos posteriormente (a geração de Mark Whitfield, Russel Malone, Chris Hunter e Anthony Wilson, por exemplo), pois ainda é cedo para dizer se eles deixarão ou não seus nomes na história. Não deixam de ter razão, até porque várias figuras exponenciais do passado foram omitidas. Portanto, para gerar menos discussão, a caixa teria que ter no mínimo oito CDs, ao invés dos quatro discos compilados a partir não somente dos acervos da Sony e da BMG, mas de mais trinta selos que concordaram em ceder suas matrizes.
John Scofield, cada dia mais usando uma postura teórica como arma de autopromoção – espelhando-se no almofadinha Wynton com essas besteiras de “puro jazz” para enganar os esclerosados tradicionalistas enquanto fatura com o oportunista tributo à Ray Charles –, assina o intróito auto-referenciado, divagando sobre os guitarristas que o influenciaram. Depois vem a tese nota oito de Alexander, perfeita até os anos 50, mas com muita bola na trave nas análises dos períodos posteriores. Na página 114 aparece o capítulo, coordenado por Andy Aledort, no qual guitarristas de diferentes gêneros elegem (e comentam gravações de) seus ídolos. É surpreendente ver a paixão de Ben Harper por Barney Kessel e Anthony Wilson. A adoração da faixa-título de “Down here on the ground” (disco da fase dita “comercial” de Wes Montgomery, execrada pelos puristas) por Joe Satriani. O culto de Steve Vai à Ted Greene. O afeto de Uli Jon Roth (do Scorpions) à Django, Wes e Benson, uma das possíveis escalações para a santíssima-trindade da guitarra jazzística, com Charlie Christian no papel de principal profeta e Joe Pass como anjo do apocalipse.
Maravilhosas e sem senões são as ilustrações. Há fotos de todos os guitarristas (exceto, talvez por esquecimento, Phil Upchurch), bem como dos diversos modelos preferidos pelos jazzistas, além de reproduções de anúncios mostrando Johnny Smith com sua “Guild Guitar”, Barney Kessel e Les Paul empunhando suas Gibsons, e até o cartaz com a publicidade da Okeh Phonograph Corporation para o disco de seu contratado Eddie Lang em 1928, posando com uma pioneira Gibson L5. Completando o tratado, Andy Aledort apresenta transcrições e análises de trechos de 9 faixas da coleção; entre elas, as fundamentais “Solo flight” de Charlie Christian, “Unit 7” de Wes Montgomery, e “Birds of fire” de McLaughlin.
Documento histórico
O primeiro CD é um documento essencial, restaurado pelo engeneheiro Harry Coster a partir de discos de 78rpm dos colecionadores Mark Berresford & Michael Brooks. Sozinho, já valeria a aquisição da caixa por reunir preciosidades que estavam perdidas ou esquecidas. Começando por “St. Louis Tickle”, de Vess Ossman, nascido em 1868, conhecido como “Rei do banjo” e ouvido num registro de 1906, acompanhado por “mandolin” e “harp-guitar” em pleno boom do ragtime. Os estudiosos e colecionadores terão orgasmos múltiplos com Sam Moore tocando “octo-chorda” (uma espécie de guitarra havaiana de 8 cordas) em seu “Chain gang blues” (1921), Sol Hoopii estraçalhando na hawaiian guitar convencional em “The only, only one” (1927), Benny “King” Nawahi desdobrando-se em ukelele, banjo e steel guitar no “California blues” de 1931, e Johnny St. Cir tocando um híbrido de violão e banjo com o Hot 5 de Louis Armstrong em “Savoy blues” (1927).
Outro destaque, uma gravação até então inédita de “Dinah”, traz Roy Smeck ao lado da cantora Martha Raye em 1932. Seguem brilhando Eddie Condon (“Who’s sorry now”), o duo (de soluções harmônicas avançadíssimas para a época) Carl Kreiss & Dick McDonough em “Danzon”, produzida em 34 pelo visionário John Hammond, mais Sam Koki, o quarteto The Ink Spots, e Eddie Durham com o craque Freddie Green que se tornaria modelo de “rhythm guitarist” na banda de Count Basie. Outro momento impactante fica a cargo do subestimado argentino Oscar Alemán, tido como mero imitador de Django Reinhardt – embora, vejam só!, ele publicamente declarasse que o genial cigano não o impressionava. Oscar barbariza na versão-solo de “Whispering” (uma das canções favoritas de Luiz Bonfá, que a gravou no LP “Ritmos continentais” duas décadas depois) em 38.
Django aparece com o Quintette du Hot Club de France (Grappelli ao violino, bien sur) em “Honeysucle rose” (38), cujo solo do líder era tocado, nota por nota, pelo revolucionário Charlie Christian, ouvido na histórica gravação, de improviso igualmente histórico, na apropriadamente intitulada “Solo flight”, integrando a orquestra de Benny Goodman (41). “Christian tinha nas mãos uma eletrificada Gibson ES 150, mas um saxofone na alma, com seu fraseado inspirado pelo tenorista Lester Young”, afirma Alexander sobre aquele que influenciou dezenas de guitarristas, muitos dos quais fizeram a transição do swing para o bebop. George Barnes, Allan Reuss (da banda de Jack Teagarden), Teddy Bunn, Slim Gaillard, Al Casey (do quarteto de Fats Waller), Oscar Moore (do modelar trio de Nat King Cole) e Tiny Grimes completam o primeiro disco.
Presença brasileira
No segundo CD, o bop predomina, mas não domina. E as surpresas continuam com “Ol’ man rebop”, composição e produção do historiador Leonard Feather, trazendo o esquecido Bill De Arango como solista do grupo de Dizzy Gillespie, em 46. Na seqüência, uma série de petardos dos anos 50: Barney Kessel (“On Green Dolphin Street”, um dos primeiros motivos para discordâncias, porque a gravação mais representativa de Kessel continua sendo “Cry me a river” com Julie London), George Van Eps (“What is this thing called love?”, mostrando suas inovações harmônicas na guitarra de 7 cordas por ele mesmo desenhada), Jimmy Raney (“Body and soul”), Chuck Wayne acompanhando um estreante Tony Bennett na suingueira de “My baby just cares for me”, o pioneiro dos overdubs Les Paul na célebre dupla com a cantora Mary Ford em “Running wild”, e os arpejos da formação country do lendário Chet Atkins (“Mountain melody”).
Tal Farlow dá um show de fraseado e agilidade em “Yardbird suíte”, um dos hinos de Parker para o idioma bop. Mas um outro tipo de refinamento começa a se manifestar através do guitarrista favorito de Luiz Bonfá, o low-profile Johnny Smith (“The boy next door”), antecedendo três colaborações marcantes. Laurindo Almeida usa sua técnica a serviço da mais sofisticada musicalidade na crossover “Tocata” de Radamés Gantalli, gravada em 1953 no primeiro disco da série “Brazilliance” com Bud Shank, marco da fusão entre jazz e música brasileira. E aí, mais do que nunca, torna-se imperdoável a ausência de Bonfá, gênio que antecipou e depois transcendeu a bossa, desenvolvendo uma carreira internacional tão brilhante e diversificada quanto a de Laurindo. Também passa em branco a contribuição de Bola Sete, consagrado nas colaborações com Gillespie e Vince Guaraldi antes de partir para uma eclética carreira-solo reverenciada pelos maiores estudiosos.
A inclusão de João Gilberto dispensa justificativa, considerando-se a maciça influência detonada pelo premiadíssimo “Getz/Gilberto”. Porém, ao evitar “Garota de Ipanema” ou outra faixa do best-seller da Verve, os produtores escolheram “Águas de Março”, do “disco da capa branca” de 72, mas a Universal não liberou a faixa. O jeito foi usar outra versão da mesma música, gravada em 75 para a CBS ao lado de Stan Getz para “The best of two worlds”, com Miucha cantando a letra em inglês. Voltando aos anos 60, temos “I’ve got you under my swing”, uma das jóias do encontro da sonoridade aveludada de Jim Hall com Bill Evans no LP “Intermodulation”. Um som tão marcante e facilmente identificável quanto a guitarra em uníssono com o assobio de Toots Thielemans em “Bluesette”.
Uma sucessão de unanimidades traz os estilistas Kenny Burrell (“Midnight blue”), Wes Montgomery (“Unit 7”, do recém-relançado “Smokin’ at the half note”, produção de Creed Taylor), Herb Ellis (“Naptown blues”, de Wes, com o Oscar Peterson Trio), Hank Garland (“Move”), Howard Roberts (“Easy living”), Grant Green (“Jean de fleur”) e Joe Pass, com “Night and day”, pouco representativa de seu estilo – qualquer tema do primeiro disco “Virtuoso” teria sido uma escolha certeira. Equívoco tão inexplicável quanto a escolha da banal “Clockwise” (66) para representar George Benson, consagrado pelos discos na fase da CTI e, posteriormente, pelo multi-platinum “Breezin’”, do mega-hit “This masquerade”.
Linha evolutiva
Ainda da safra 60, destacam-se Pat Martino (esplêndido solo em “Just friends”), Lenny Breau (grande talento detonado pelas drogas) abordando jazzisticamente “A taste of honey” do meu saudoso amigo Bobby Scott, e o húngaro Gabor Szabo com sua fantástica “Gypsy queen”, depois regravada no “Abraxas” do fã Carlos Santana. Os compiladores erram feio nas escolhas das faixas de Charlie Byrd (burocrática interpretação para “Insensatez”), Larry Coryell (“June the 15, 1967” parece piada perto de suas performances na liderança do grupo The Eleventh House) e Jimi Hendrix, cujo solo em “Manic depression”, apesar de notável, nada tem de jazzístico, enquanto “Little wing” ou “Up from the skies” estariam justificadas pela influência exercida sobre Miles Davis e Gil Evans.
Representando a estética ECM, temos Mick Goodrick (“Coral”, de um disco de Gary Burton), John Abercrombie (“Ralph’s piano waltz”), o violão-solo de Ralph Towner (“The prowler”) e a faixa-título do disco de estréia de Pat Metheny, “Bright size life”, cujo maior atrativo é a presença de Jaco Pastorius no baixo. Súbito, múltiplas falhas em uma única música: “Aqui, oh”, de Toninho Horta. No texto, Charles Alexander se enrola todo, dando a entender que Toninho ainda reside em NY, e afirmando que Metheny participa da faixa. Pat gravou no disco em questão, o segundo de Toninho para a EMI-Odeon, mas em outro tema. Na ficha técnica, os compiladores acertaram ao não colocar o nome de Pat, mas erraram ao grafar o nome do saudoso sambista Roberto “Ribairo” (sic) e ao não creditar a produção a Toninho e Ronaldo Bastos, substituídos pela afirmação “produtor desconhecido”.
Questões burocráticas à parte, a despeito da beleza melódica, o elemento jazzístico desta faixa específica é mínimo, e o prodigioso Toninho tem dezenas de excelentes registros instrumentais que se encaixariam muito melhor no perfil da caixa. Sem falar de uma outra gravação bem mais jazzy (“Live in Moscow”) desta mesma música. Já totalmente inexplicável é o primário tema-título do álbum “Midnight in San Juan”, de Earl Klugh, violonista que teima em desperdiçar seu talento em discos medíocres. Sua inclusão nesta caixa somente se justifica para mostrar como o vírus do smooth-jazz ajudou a destruir o jazz fusion. Para cortar o efeito soporífero de Klugh, vale pular para o free radical do inglês Derek Bailey (“Should be reversed”) e para a pauleira do incompreendido Sonny Sharrock em “As we used to sing”, estimulado pela polirritmia do batera-vulcão Elvin Jones.
“Birds of fire”, magnífica performance de John McLaughlin na época áurea da Mahavishnu (72) deveria estar não no terceiro, mas no quarto CD da caixa, ao lado de outro inglês revolucionário, Allan Holdsworth, alucinante na “Mr. Spock” do tempo em que integrava o grupo Lifetime, de Tony Williams. (No texto, outra pisada de bola, com Alexander informando que Allan fez seu primeiro LP como líder em 78, quando tinha gravado “Velvet darkness” para a CTI dois anos antes.) O soul-jazz está representado en passant por atuações medianas dos craques Phil Upchurch (“Inner city blues”) e Eric Gale (“Thumper”), que gravaram coisas muito superiores. Também fica difícil entender a escolha da bela, porém melosa, balada pop “Europa” para representar Santana, que tem várias incursões jazzísticas de alto nível (“Borboletta”, “Welcome”, “The swing of delight”) no acervo da Sony. E muito menos a opção pela baba “Cause we’ve ended as lovers” para ilustrar o furacão Jeff Beck quando se tem “Freeway jam” à disposição.
Diferentes faces do fusion estão nas mãos do virtuose Al DiMeola (“Race with devil on a Spanish highway”), do técnico Larry Carlton (“Spiral”, com o grupo Crusaders), do certinho Lee Ritenour (“Captain fingers”), do feroz Mike Stern (“Fat time”, de sua fase com Miles em 81) e do endiabrado James Blood Ulmer (“Church”). Dos anos 90, apenas “Hottentot” (longe de ser o melhor de John Scofield – ah que saudades de “Shinola”!) e a tropicaliente “Postizo”, com Marc Ribot. Do século 21, somente a homenagem do intectualóide Bill Frisell a “Ron Carter”, gravada em 2001. Será que, algum dia, alguém prestará tributo a Frisell?
Legendas:
“Em 75 faixas, um desfile de estilistas que escreveram a história da guitarra no jazz”
“Laurindo Almeida: ilustre presença brasileira”
“Anúncio de disco gravado por Eddie Lang em 1928”
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