Saxofonistas em colheita de outono
“Nova safra de CDs vai do mainstream requentado à ousadia criativa”
Arnaldo DeSouteiro
“Nova safra de CDs vai do mainstream requentado à ousadia criativa”
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 15 de Abril de 2004 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"
Com os lançamentos nacionais praticamente limitados à coletâneas horripilantes – destinadas a lesar consumidores que se deixam levar pela propaganda enganosa das séries tipo “o melhor de Billie” e “o melhor de Miles”, mas que não passam de gravações piratas, de baixíssima qualidade, juntando os piores momentos desses mestres –, resta aos jazzófilos mais exigentes a opção das importadoras. Uma recente safra que desembarcou nas prateleiras oferece, a preços salgados, um bom painel da neurastenia reinante no atual panorama jazzístico. A maioria dos músicos opta pelo mainstream bem-comportado, o que geralmente traduz-se em marasmo e “déjà vu”, enquanto alguns poucos heróis aventuram-se em busca de novos horizontes, motivados pela ousadia criativa.
A idade parece não contar muito nesse abismo entre conformismo e superação, a julgar pelos novos CDs de seis saxofonistas. Eric Alexander (34) fica no meio-termo em “Nightlife in Tokyo” (Milestone/58m21s), produzido por Todd Barkan no esquema baratinho de gravar o disco inteiro num único dia, usando pequena formação. No caso, um quarteto completado por Harold Mabern (pianista veterano, melhor a cada dia), Joe Farnsworth (baterista de futuro) e a lenda viva chamada Ron Carter – os dois primeiros tocaram com Eric em sua sensacional apresentação no Chivas Jazz, no ano passado. Contudo, o resultado do CD é bem menos contagiante, prejudicado pela péssima captação do baixo de Ron Carter (colocado lá em baixo, sem trocadilho, na equivocada mixagem, além de soar abafado e completamente diferente da robusta sonoridade típica de Ron). As composições do excelente tenorista são interessantes, mas cerebrais. E jamais surpreendem, parecendo servir de pretexto para os ótimos solos. Não por acaso, as melhores faixas acabam sendo as de outros autores – “I’ll be around” (Alec Wilder), “I can dream, can’t I” (escrita por Sammy Fain para um musical da Broadway, de 1938, “Right this way”, popularizada pela banda de Tommy Dorsey na era do swing) e a faixa-título assinada por Mabern.
A situação se agrava em “Coast to coast” (Milestone/53m04s), do veterano Red Holloway (76), que esteve no Brasil há mais de vinte anos com Sonny Stitt, num memorável show na Sala Cecília Meirelles. Neste “novo” álbum, produção rasteira de Bob Porter, conta com a excelsa companhia de um saxofonista bem mais refinado, Frank Wess, ainda em boa forma aos 81 anos. Entretanto, ao invés de atuar na flauta, no sax-alto ou no soprano, instrumentos nos quais desenvolveu uma linguagem bastante pessoal, Wess aparece confinado ao sax tenor. No suporte, o burocrático batera Paul Humphrey, o guitarrista Melvin Sparks (que já tocou muito, mas muito, melhor) e o organista Dr. Lonnie Smith, outro que começa a dar sinais de cansaço. Quanto à estética do trabalho, mais previsível impossível. Repleto de clichês, foi gravado em 2003, mas parece uma sessão da Prestige dos anos 50, no batido esquema de “tenor battle”, abusando das passagens em uníssono. Curiosamente, quem troca o tenor pelo alto em apenas uma faixa, “Indian Summer”, é Holloway, que comete o erro de atacar de cantor em “Million dollar secret”. A pasmaceira vai do shuffle “Still groovin’” ao sorumbático “Good to go”, passando por “Struttin’ with Julie”, “Water Jug” e até “Avalon”, tema de 1920, gravado por meio-mundo, mas ao qual Holloway & Wess nada acrescentam. Alguma coisa boa no disco? Sim, a invariavelmente fantástica engenharia de som do mestre Rudy Van Gelder.
Geniais transgressores
Diante desse quadro, pouco se poderia esperar de outros saxofonistas da terceira idade, certo? Errado. Lee Konitz (76), por exemplo, permanece com alma jovem e espírito aventureiro em “Live-Lee” (Milestone/65m23s), impecável duo com o pianista neozelandês Alan Broadbent (diretor musical de Diana Krall antes do início do reinado de Elvis Costello) captado ao vivo no clube Jazz Bakery, em Los Angeles, sob a produção de Orrin Keepnews, que ficou três anos com as fitas na gaveta até conseguir uma gravadora interessada no projeto. Konitz é a personificação da originalidade, dono de fraseado e sonoridade inconfundíveis no sax-alto. Aqui, o mesmo homem que pontificou nas sessões de “Birth of the cool” com Miles, cresceu tendo Lennie Tristano como guru, e nos deu memoráveis discos de duetos, mostra que continua atento e esperto. Conformar-se, jamais. E tome reconstruções abençoadas dos standards “I’ll remember April”, “Sweet and lovely” e “Easy living”. Outra linda balada, “If you could see me now”, do volta e meia esquecido mestre do bop Tadd Dameron, recebe abordagem inusitada. Quem pensa que já ouviu “Cherokee” de todas as maneiras possíveis, também não perde por esperar. Há ainda um tema de Tristano (“317 East 32nd Street”, endereço do estúdio do saudoso pianista em NY), vários de Konitz (destaque para “Subconcious-lee”, inspirador do trocadilho usado por Jobim ao batizar “Absolut-lee”) e uma parceria com Broadbent (“Ex temp”, abreviatura de “extemporaneous”, tema que define bem o mestre Konitz).
Igualmente arrojada, figura de proa na ceara do jazz de vanguarda, a genial Jane Ira Bloom (49) adotou o sax-soprano como extensão de seu corpo – e de sua mente. Aluna de Joe Viola e George Coleman, revelada no grupo do vibrafonista David Frideman, com quem gravou notáveis discos para o selo Enja, como “Of the Wind’s Eye”, a primeira jazzwoman a ter uma obra encomendada pela NASA trafega em outra dimensão. Ou melhor, flutua. Já teve até um asteróide batizado com seu nome. Para desespero dos puristas, como aconteceu em seu show no Free Jazz, acopla acessórios eletrônicos ao soprano, o que contribui para tornar sua música ainda mais espacial, em todos os sentidos do termo. O recente CD “Chasing paint/Jane Ira Bloom meets Jackson Pollock” (Arabesque/50m41s), nasceu da contemplação dos quadros abstratos de Pollock, por cuja obra deixou-se inspirar. Mais do que nunca, Jane alça vôo nas densas pinturas sonoras de “Unexpected light”, “On seeing JP”, “Alchemy” e “Reflections of the big dipper”, tratados de improvisação coletiva, tendo Fred Hersch (piano), Mark Dresser (baixo) e Bobby Previte (bateria) como estimulantes companheiros de viagem. A estética descritiva incorpora até mesmo o standard “The sweetest sound”, de Richard Rodgers, única faixa não composta pela musicista. Não imita Shorter nem Lacy, e ganha mais pontos pela originalidade também de sua luminosa sonoridade. Sabe usar o silêncio como elemento musical, sendo reflexiva sem tropeçar no tédio, meditativa sem derrapar para a pasmaceira, desafiadora sem resvalar para o caos.
Isto posto, depois das aulas proporcionadas por Lee e Bloom, nada poderia surgir de mais ousado? Claro que sim! Pelo menos enquanto William Evans, mais conhecido como Yusef Lateef (83) após sua conversão ao Islamismo, permanecer na ativa. Com espantosa vitalidade, este precursor da verdardeira “world-music” – primeiro jazzman a incorporar elementos da música oriental, muito antes de Miles ou qualquer outro – vem ampliando sua discografia com cerca de três lançamentos por ano, no comando de seu próprio selo, YAL Records. O mais recente petardo é o CD-duplo “In the garden” (49m33s/53m01s), bendito fruto de dois concertos no Electric Lodge, na paradisíaca Venice, uma espécie de Búzios californiana. O título faz referência ao “jardim da vida”, descrito por Yusef no poético texto do livreto. Com improvisações orgiásticas no sax-tenor, e também no sax-alto, no shenai (tipo primitivo de oboé), barbarizando em vários instrumentos exóticos como duckaphone e cruzaphone, e em diversos tipos de flautas de metal e de bambu, o indomável Lateef criou esta obra visceral ao lado do percussionista Adam Rudolph, comandando a Go-Organic Orchestra alicerçada em 14 “reedmen” (entre eles Bennie Maupin, Ralph Jones e Pablo Calogero) e 5 percussionistas, misturando tabla com fagote, surdo com clarone, marimba com corne inglês, balafon com fautim. Sem tomar conhecimento dos neo-boppers que tentaram transformar o jazz em música de museu, o grande Yusef segue semeando o futuro. Caberá aos sábios percorre-lo.
Com os lançamentos nacionais praticamente limitados à coletâneas horripilantes – destinadas a lesar consumidores que se deixam levar pela propaganda enganosa das séries tipo “o melhor de Billie” e “o melhor de Miles”, mas que não passam de gravações piratas, de baixíssima qualidade, juntando os piores momentos desses mestres –, resta aos jazzófilos mais exigentes a opção das importadoras. Uma recente safra que desembarcou nas prateleiras oferece, a preços salgados, um bom painel da neurastenia reinante no atual panorama jazzístico. A maioria dos músicos opta pelo mainstream bem-comportado, o que geralmente traduz-se em marasmo e “déjà vu”, enquanto alguns poucos heróis aventuram-se em busca de novos horizontes, motivados pela ousadia criativa.
A idade parece não contar muito nesse abismo entre conformismo e superação, a julgar pelos novos CDs de seis saxofonistas. Eric Alexander (34) fica no meio-termo em “Nightlife in Tokyo” (Milestone/58m21s), produzido por Todd Barkan no esquema baratinho de gravar o disco inteiro num único dia, usando pequena formação. No caso, um quarteto completado por Harold Mabern (pianista veterano, melhor a cada dia), Joe Farnsworth (baterista de futuro) e a lenda viva chamada Ron Carter – os dois primeiros tocaram com Eric em sua sensacional apresentação no Chivas Jazz, no ano passado. Contudo, o resultado do CD é bem menos contagiante, prejudicado pela péssima captação do baixo de Ron Carter (colocado lá em baixo, sem trocadilho, na equivocada mixagem, além de soar abafado e completamente diferente da robusta sonoridade típica de Ron). As composições do excelente tenorista são interessantes, mas cerebrais. E jamais surpreendem, parecendo servir de pretexto para os ótimos solos. Não por acaso, as melhores faixas acabam sendo as de outros autores – “I’ll be around” (Alec Wilder), “I can dream, can’t I” (escrita por Sammy Fain para um musical da Broadway, de 1938, “Right this way”, popularizada pela banda de Tommy Dorsey na era do swing) e a faixa-título assinada por Mabern.
A situação se agrava em “Coast to coast” (Milestone/53m04s), do veterano Red Holloway (76), que esteve no Brasil há mais de vinte anos com Sonny Stitt, num memorável show na Sala Cecília Meirelles. Neste “novo” álbum, produção rasteira de Bob Porter, conta com a excelsa companhia de um saxofonista bem mais refinado, Frank Wess, ainda em boa forma aos 81 anos. Entretanto, ao invés de atuar na flauta, no sax-alto ou no soprano, instrumentos nos quais desenvolveu uma linguagem bastante pessoal, Wess aparece confinado ao sax tenor. No suporte, o burocrático batera Paul Humphrey, o guitarrista Melvin Sparks (que já tocou muito, mas muito, melhor) e o organista Dr. Lonnie Smith, outro que começa a dar sinais de cansaço. Quanto à estética do trabalho, mais previsível impossível. Repleto de clichês, foi gravado em 2003, mas parece uma sessão da Prestige dos anos 50, no batido esquema de “tenor battle”, abusando das passagens em uníssono. Curiosamente, quem troca o tenor pelo alto em apenas uma faixa, “Indian Summer”, é Holloway, que comete o erro de atacar de cantor em “Million dollar secret”. A pasmaceira vai do shuffle “Still groovin’” ao sorumbático “Good to go”, passando por “Struttin’ with Julie”, “Water Jug” e até “Avalon”, tema de 1920, gravado por meio-mundo, mas ao qual Holloway & Wess nada acrescentam. Alguma coisa boa no disco? Sim, a invariavelmente fantástica engenharia de som do mestre Rudy Van Gelder.
Geniais transgressores
Diante desse quadro, pouco se poderia esperar de outros saxofonistas da terceira idade, certo? Errado. Lee Konitz (76), por exemplo, permanece com alma jovem e espírito aventureiro em “Live-Lee” (Milestone/65m23s), impecável duo com o pianista neozelandês Alan Broadbent (diretor musical de Diana Krall antes do início do reinado de Elvis Costello) captado ao vivo no clube Jazz Bakery, em Los Angeles, sob a produção de Orrin Keepnews, que ficou três anos com as fitas na gaveta até conseguir uma gravadora interessada no projeto. Konitz é a personificação da originalidade, dono de fraseado e sonoridade inconfundíveis no sax-alto. Aqui, o mesmo homem que pontificou nas sessões de “Birth of the cool” com Miles, cresceu tendo Lennie Tristano como guru, e nos deu memoráveis discos de duetos, mostra que continua atento e esperto. Conformar-se, jamais. E tome reconstruções abençoadas dos standards “I’ll remember April”, “Sweet and lovely” e “Easy living”. Outra linda balada, “If you could see me now”, do volta e meia esquecido mestre do bop Tadd Dameron, recebe abordagem inusitada. Quem pensa que já ouviu “Cherokee” de todas as maneiras possíveis, também não perde por esperar. Há ainda um tema de Tristano (“317 East 32nd Street”, endereço do estúdio do saudoso pianista em NY), vários de Konitz (destaque para “Subconcious-lee”, inspirador do trocadilho usado por Jobim ao batizar “Absolut-lee”) e uma parceria com Broadbent (“Ex temp”, abreviatura de “extemporaneous”, tema que define bem o mestre Konitz).
Igualmente arrojada, figura de proa na ceara do jazz de vanguarda, a genial Jane Ira Bloom (49) adotou o sax-soprano como extensão de seu corpo – e de sua mente. Aluna de Joe Viola e George Coleman, revelada no grupo do vibrafonista David Frideman, com quem gravou notáveis discos para o selo Enja, como “Of the Wind’s Eye”, a primeira jazzwoman a ter uma obra encomendada pela NASA trafega em outra dimensão. Ou melhor, flutua. Já teve até um asteróide batizado com seu nome. Para desespero dos puristas, como aconteceu em seu show no Free Jazz, acopla acessórios eletrônicos ao soprano, o que contribui para tornar sua música ainda mais espacial, em todos os sentidos do termo. O recente CD “Chasing paint/Jane Ira Bloom meets Jackson Pollock” (Arabesque/50m41s), nasceu da contemplação dos quadros abstratos de Pollock, por cuja obra deixou-se inspirar. Mais do que nunca, Jane alça vôo nas densas pinturas sonoras de “Unexpected light”, “On seeing JP”, “Alchemy” e “Reflections of the big dipper”, tratados de improvisação coletiva, tendo Fred Hersch (piano), Mark Dresser (baixo) e Bobby Previte (bateria) como estimulantes companheiros de viagem. A estética descritiva incorpora até mesmo o standard “The sweetest sound”, de Richard Rodgers, única faixa não composta pela musicista. Não imita Shorter nem Lacy, e ganha mais pontos pela originalidade também de sua luminosa sonoridade. Sabe usar o silêncio como elemento musical, sendo reflexiva sem tropeçar no tédio, meditativa sem derrapar para a pasmaceira, desafiadora sem resvalar para o caos.
Isto posto, depois das aulas proporcionadas por Lee e Bloom, nada poderia surgir de mais ousado? Claro que sim! Pelo menos enquanto William Evans, mais conhecido como Yusef Lateef (83) após sua conversão ao Islamismo, permanecer na ativa. Com espantosa vitalidade, este precursor da verdardeira “world-music” – primeiro jazzman a incorporar elementos da música oriental, muito antes de Miles ou qualquer outro – vem ampliando sua discografia com cerca de três lançamentos por ano, no comando de seu próprio selo, YAL Records. O mais recente petardo é o CD-duplo “In the garden” (49m33s/53m01s), bendito fruto de dois concertos no Electric Lodge, na paradisíaca Venice, uma espécie de Búzios californiana. O título faz referência ao “jardim da vida”, descrito por Yusef no poético texto do livreto. Com improvisações orgiásticas no sax-tenor, e também no sax-alto, no shenai (tipo primitivo de oboé), barbarizando em vários instrumentos exóticos como duckaphone e cruzaphone, e em diversos tipos de flautas de metal e de bambu, o indomável Lateef criou esta obra visceral ao lado do percussionista Adam Rudolph, comandando a Go-Organic Orchestra alicerçada em 14 “reedmen” (entre eles Bennie Maupin, Ralph Jones e Pablo Calogero) e 5 percussionistas, misturando tabla com fagote, surdo com clarone, marimba com corne inglês, balafon com fautim. Sem tomar conhecimento dos neo-boppers que tentaram transformar o jazz em música de museu, o grande Yusef segue semeando o futuro. Caberá aos sábios percorre-lo.
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