Mais uma caixa de Miles Davis
A versão integral da temporada no Blackhawk
Arnaldo DeSouteiro
A versão integral da temporada no Blackhawk
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 4 de Dezembro de 2003 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"
O sensacional trabalho de arqueologia musical sobre a obra de Miles Davis em sua fase na Columbia, que vem sendo feito pelo selo Legacy, já rendeu nada menos que sete merecidos prêmios Grammy. Agora, mais uma sensacional caixa chega ao mercado, trazendo a versão integral da temporada do trompetista no famoso (e hoje extinto) clube de jazz Blackhawk, em San Francisco, em 1961. Graças aos esforços de Michael Cuscuna & Bob Belden, produtores de “Miles Davis In Person/Friday and Saturday nights at the Blackhawk – Complete”, os dois antológicos LPs originais, produzidos por Irving Towsend, foram transformados em quarto CDs, ganhando treze faixas inéditas. Todo esse material devidamente remixado (a partir das fitas originais de três canais) e remasterizado, em 24bits, pelo engenheiro de som Mark Wilder nos estúdios da Sony em New York.
Esta jóia de quatro horas de duração retrata, pela primeira vez, tudo que rolou no nas noites de 21 e 22 de abril de 1961, um fim-de-semana que entraria para a história do jazz. Na opinião de alguns historiadores, trata-se da mais extrovertida performance na carreira de Miles, então comandando faiscante quinteto completado por Wynton Kelly (piano), Paul Chambers (baixo), Jimmy Cobb (bateria, o único ainda vivo) e o subvalorizado Hank Mobley (sax tenor). Os CDs reproduzem fielmente os quatro sets, reconstituindo a sequência das músicas, sem cortes nem edições. Só não entraram as músicas muito mutiladas na gravação, por problemas técnicos. Além de preservar o excelente texto original assinado pelo crítico Ralph J. Gleason, do San Francisco Chronicle, o livreto inclui novos comentários encomendados ao trompetista Eddie Henderson (em cuja casa, no mesmo quarteirão do clube, Miles hospedou-se, pois seu médico era o padastro de Eddie!), somados a várias fotos raras de todos os integrantes do conjunto.
Apesar da preocupação dos executivos da antiga Columbia, sempre temendo o temperamento explosivo de Miles, ele parecia estar bem relax naquelas noites. Mostrava-se afável com os jornalistas presentes (a Columbia alardeou que iria gravar os shows e isso atraiu muitos críticos de várias partes dos EUA), respondia pacientemente às perguntas mais tolas, distribuia autógrafos, contava piadas e, enquanto fumava e bebia champagne, pedia a Wynton Kelly para checar se estava tudo certo com o equipamento de gravação instalado no clube vizinho, o 211 Bar. Estava tão cuidadoso e centrado que chegou a pedir ao dono do clube, Guido Caccienti, para não servir bebida alcoólica a Paul Chambers. Implicou apenas com os fotógrafos, recusando-se a posar em frente ao Blackhawk e não permitindo o uso de flashes durante os shows. Isto posto, raras vezes Miles atuou com tanto vigor nessa onda de “hard-bop” que predominou nos shows.
A caixa, em mais uma luxuosa embalagem criada por Howard Fritzson, reúne dois CDs-duplos. Miles geralmente emendava uma música na outra, e os sets variavam muito de duração, conforme o humor do gênio. Assim, para manter todos os temas na ordem em que foram tocados, optou-se por colocar o primeiro e o terceiro sets de 21 de abril no primeiro disco, deixando o segundo set – bem mais longo – para o segundo disco. Davis abriu a noite com “Autumn leaves”, que não pôde ser utilizada porque o equipamento de gravação falhou. Em seguida, atacou a incendiária “Oleo” (de Sonny Rollins), seguida por uma longa (17 minutos!) exploração de “No blues”, fechando o set com “Bye bye”, tema concebido por Miles exatamente com esta finalidade.
Abriu o segundo set – que durou quase uma hora para delírio da platéia – com uma fabulosa reinvenção de “All of You” (Cole Porter). Passeou por sua própria “Neo” e destilou lirismo na soberba balada “I thought about you”. Desde o início, uma fã mais calibrada pedia insistentemente que ele tocasse “Bye bye blackbird”. Nas primeiras vezes, Miles limitou-se a disparar um olhar intimidador. Como a moça falava cada vez mais alto, nosso herói perdeu a paciência. Desceu do palco e disse a Guido: “get this bitch out of here”. Assim que a mulher foi retirada da casa, alguém adivinha o que Miles tocou de forma estupenda? Isto mesmo, “Bye bye blackbird”! Completou com o blues de 12 compassos “Walkin’” (título do célebre álbum para a Prestige em 54, lançado este ano no Brasil via BMG) e “Love, I’ve found you”. No terceiro set, destacaram-se as extensas releituras de “If I were a bell” (numa performance inédita) e “On green dolphin street”, recheadas por solos impecáveis.
As aulas de dinâmica prosseguiram na noite de 22 de abril. Miles começou com uma swingada “If I were a bell” (a versão usada no LP), estraçalhando em “So what” num set que nem chegou a durar meia-hora. No segundo set, o ponto alto foi “’Round midnight” (com o trompete assurdinado, claro), antecedendo o petardo Monkiano “Well, you needn’t” (sem surdina) e a vinheta “The theme”. Devido a um cochilo do engenheiro perdemos as primeiras notas de “Autum leaves” que abriu o terceiro set da forma mais classuda possível, em delicioso andamento médio, preparando terreno para a latin-tinged “Neo”, praticamente emendada ao bop “Two bass hit”. Miles estava tão feliz que encarou um quarto set, arrasando nas jóias “I thought about you” (Cobb sutilíssimo nas vassouras) e “Someday my prince will come”, usando a surdina. “Softly as in a morning sunrise”, obra-prima de Sigmund Romberg desencavada do musical “The new moon”, de 1928, tocada apenas pelo trio de base, encerrou a temporada. Um século depois soa mais moderna do que qualquer tema de Jason Moran ou Uri Caine. Ave, Wynton Kelly! Ave, Miles Davis!
O sensacional trabalho de arqueologia musical sobre a obra de Miles Davis em sua fase na Columbia, que vem sendo feito pelo selo Legacy, já rendeu nada menos que sete merecidos prêmios Grammy. Agora, mais uma sensacional caixa chega ao mercado, trazendo a versão integral da temporada do trompetista no famoso (e hoje extinto) clube de jazz Blackhawk, em San Francisco, em 1961. Graças aos esforços de Michael Cuscuna & Bob Belden, produtores de “Miles Davis In Person/Friday and Saturday nights at the Blackhawk – Complete”, os dois antológicos LPs originais, produzidos por Irving Towsend, foram transformados em quarto CDs, ganhando treze faixas inéditas. Todo esse material devidamente remixado (a partir das fitas originais de três canais) e remasterizado, em 24bits, pelo engenheiro de som Mark Wilder nos estúdios da Sony em New York.
Esta jóia de quatro horas de duração retrata, pela primeira vez, tudo que rolou no nas noites de 21 e 22 de abril de 1961, um fim-de-semana que entraria para a história do jazz. Na opinião de alguns historiadores, trata-se da mais extrovertida performance na carreira de Miles, então comandando faiscante quinteto completado por Wynton Kelly (piano), Paul Chambers (baixo), Jimmy Cobb (bateria, o único ainda vivo) e o subvalorizado Hank Mobley (sax tenor). Os CDs reproduzem fielmente os quatro sets, reconstituindo a sequência das músicas, sem cortes nem edições. Só não entraram as músicas muito mutiladas na gravação, por problemas técnicos. Além de preservar o excelente texto original assinado pelo crítico Ralph J. Gleason, do San Francisco Chronicle, o livreto inclui novos comentários encomendados ao trompetista Eddie Henderson (em cuja casa, no mesmo quarteirão do clube, Miles hospedou-se, pois seu médico era o padastro de Eddie!), somados a várias fotos raras de todos os integrantes do conjunto.
Apesar da preocupação dos executivos da antiga Columbia, sempre temendo o temperamento explosivo de Miles, ele parecia estar bem relax naquelas noites. Mostrava-se afável com os jornalistas presentes (a Columbia alardeou que iria gravar os shows e isso atraiu muitos críticos de várias partes dos EUA), respondia pacientemente às perguntas mais tolas, distribuia autógrafos, contava piadas e, enquanto fumava e bebia champagne, pedia a Wynton Kelly para checar se estava tudo certo com o equipamento de gravação instalado no clube vizinho, o 211 Bar. Estava tão cuidadoso e centrado que chegou a pedir ao dono do clube, Guido Caccienti, para não servir bebida alcoólica a Paul Chambers. Implicou apenas com os fotógrafos, recusando-se a posar em frente ao Blackhawk e não permitindo o uso de flashes durante os shows. Isto posto, raras vezes Miles atuou com tanto vigor nessa onda de “hard-bop” que predominou nos shows.
A caixa, em mais uma luxuosa embalagem criada por Howard Fritzson, reúne dois CDs-duplos. Miles geralmente emendava uma música na outra, e os sets variavam muito de duração, conforme o humor do gênio. Assim, para manter todos os temas na ordem em que foram tocados, optou-se por colocar o primeiro e o terceiro sets de 21 de abril no primeiro disco, deixando o segundo set – bem mais longo – para o segundo disco. Davis abriu a noite com “Autumn leaves”, que não pôde ser utilizada porque o equipamento de gravação falhou. Em seguida, atacou a incendiária “Oleo” (de Sonny Rollins), seguida por uma longa (17 minutos!) exploração de “No blues”, fechando o set com “Bye bye”, tema concebido por Miles exatamente com esta finalidade.
Abriu o segundo set – que durou quase uma hora para delírio da platéia – com uma fabulosa reinvenção de “All of You” (Cole Porter). Passeou por sua própria “Neo” e destilou lirismo na soberba balada “I thought about you”. Desde o início, uma fã mais calibrada pedia insistentemente que ele tocasse “Bye bye blackbird”. Nas primeiras vezes, Miles limitou-se a disparar um olhar intimidador. Como a moça falava cada vez mais alto, nosso herói perdeu a paciência. Desceu do palco e disse a Guido: “get this bitch out of here”. Assim que a mulher foi retirada da casa, alguém adivinha o que Miles tocou de forma estupenda? Isto mesmo, “Bye bye blackbird”! Completou com o blues de 12 compassos “Walkin’” (título do célebre álbum para a Prestige em 54, lançado este ano no Brasil via BMG) e “Love, I’ve found you”. No terceiro set, destacaram-se as extensas releituras de “If I were a bell” (numa performance inédita) e “On green dolphin street”, recheadas por solos impecáveis.
As aulas de dinâmica prosseguiram na noite de 22 de abril. Miles começou com uma swingada “If I were a bell” (a versão usada no LP), estraçalhando em “So what” num set que nem chegou a durar meia-hora. No segundo set, o ponto alto foi “’Round midnight” (com o trompete assurdinado, claro), antecedendo o petardo Monkiano “Well, you needn’t” (sem surdina) e a vinheta “The theme”. Devido a um cochilo do engenheiro perdemos as primeiras notas de “Autum leaves” que abriu o terceiro set da forma mais classuda possível, em delicioso andamento médio, preparando terreno para a latin-tinged “Neo”, praticamente emendada ao bop “Two bass hit”. Miles estava tão feliz que encarou um quarto set, arrasando nas jóias “I thought about you” (Cobb sutilíssimo nas vassouras) e “Someday my prince will come”, usando a surdina. “Softly as in a morning sunrise”, obra-prima de Sigmund Romberg desencavada do musical “The new moon”, de 1928, tocada apenas pelo trio de base, encerrou a temporada. Um século depois soa mais moderna do que qualquer tema de Jason Moran ou Uri Caine. Ave, Wynton Kelly! Ave, Miles Davis!
No comments:
Post a Comment