Thursday, May 31, 2007

Vozes d'África em Montreux



Vozes d’África em Montreux
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 29 de Dezembro de 2005 e originalmente publicado no jornal "Tribuna da Imprensa"

O novo pacote de DVDs da série ”Live at Montreux”, que chega esta semana às lojas em prensagens nacionais do selo paulista ST2, destaca títulos altamente expressivos de dois ícones da chamada world-music: o grupo Ladysmith Black Mambazo e o cantor Youssou N’Dour, que ganharam fama mundial após a colaboração com Paul Simon no antológico álbum “Graceland”. O DVD do Ladysmith (com tiragem inicial de duas mil cópias) junta os melhores momentos dos shows realizados no Festival de Montreux em 1987, 1989 e 2000. Já a performance de Youssou (tiragem de dois mil e quinhentos exemplares) é calcada em sua apresentação de 1989, complementada por cinco números do show de 1995. Indicações precisas para quem imagina a world-music somente como sinônimo da electro-bossa desidratada de Bebel Gilberto ou dos oportunistas projetos pasteurizados de Yo-Yo Ma.

Machado afiado

Talvez o conjunto vocal mais endeusado no cenário musical sul-africano, o Ladysmith Black Mambazo (nome que significa “o machado negro de Ladysmith”) foi criado na cidade de Ladysmith, na província de KwaZulu-Natal. Seu líder, o Reverendo Professor Joseph Shabalala, nascido em 1941, começou a cantar quando, ainda criança, trabalhava como pastor, cuidando do rebanho da família. Mudando-se para Durban, entrou para o grupo Highlanders, antes de formar, em 1958, seu próprio conjunto, completado por membros da família. Nos anos 70, esta formação ficaria conhecida como Ladysmith Black Mambazo, porque, segundo palavras do próprio Shabalala, “eu queria que as nossas vozes fossem cortantes como um machado afiado”.

“Amabutho”, o LP de estréia, saiu em 1973, pelo pequeno selo sul-africano Gallo Records. Logo suas músicas começaram a tocar na rádio Zulu, atingindo parte da segmentada sociedade local. Porém, somente depois da ida de Paul Simon à África do Sul em meados dos anos 80 (quando ainda vigorava o regime do apartheid), para a gravação do Grammyado álbum “Graceland” lançado em 1986, foi que o Ladysmith ganhou fama nacional e internacional. Além do hit “Diamonds on the sole of her shoes”, Paul e Shabalala criaram juntos “Homeless”, desde então piéce de resistence no repertório do grupo. Simon ficou tão impressionado com o Ladysmith que escreveu “Under african skies” em homenagem a seus colaboradores, descrevendo-os como “o melhor grupo vocal do mundo”.

Este DVD “Live at Montreux” reúne os pontos-altos das apresentações realizadas no famoso festival de Claude Nobs em 1987 (ano seguinte ao lançamento de “Graceland”), 1989 (escalado para a “All Night Long” de 22 de julho, maratona de encerramento que contou também com Al Green, Albert King, Manhattanh Transfer, Ray Barretto, Chico Hamilton e o Modern Jazz Quartet) e 2000. Mas, curiosamente, em ordem cronológica ao inverso. As cinco primeiras músicas são de 2000, com destaque para “King of kings”, “Hello my baby” (uma das poucas cantadas em inglês, mostrando a coreografia típica do conjunto) e uma versão para o tradicional tema “Amazing Grace”, cantado na turnê com Simon. Seguem-se quatro instigantes canções de 1989 – entre elas, “Homeless”, tão adorada a ponto de ser incluída também nas performances de 1987 e 2000, na parte de “extras” do DVD.

Sons guturais

Comparando as três interpretações, nota-se como o grupo ganha confiança perante a um público cada vez mais familiarizado com o repertório e receptivo àquela experiência musical única oferecida por Shabalala e seus pupilos. A postura teatral deriva do desejo de (re)produzir uma fonte própria de entretenimento. Tal estilo é chamado de “isicathamiya”, uma forma mais suave do “mbube”, e seu nome descreve os leves passos de dança desenvolvidos pelos trabalhadores nos albergues onde moravam. “Os passos tinham que ser leves para não chamar a atenção dos seguranças que faziam patrulha do lado de fora”, explicou Shabalala ao crítico Joseph Adair.

As harmonizações vocais revelam as influências dos missionários ocidentais e, embora os cantores sejam barítonos (geralmente sete) em sua maioria, há também trechos para um garoto disfarçado de “contralto” (tentando compensar a ausência de vozes femininas) e um ou dois tenores. Quando não está liderando o coro, Shabalala volta e meia assume o papel de tenor. A formação do Ladysmith muda bastante, mas sempre conta com membros da família do líder. Quatro dos filhos de Shabalala entraram no conjunto no final dos anos 90, sendo o tenor Msizi o mais novo. Outro tenor, Albert Mazibuko, está no grupo desde 1969.

Cantando não apenas em zulu, mas também em sotho, xhosa, inglês e eventualmente até em alemão, emitindo impactantes sons guturais, o Ladysmith Black Mambazo alcançou um sucesso comercial ímpar sem macular a pureza musical de suas mensagens musicais. As colaborações com astros da música pop como Paul Simon, Des’ree, PJ Powers, China Black e até com a veterena musa country Dolly Parton permitiram que o grupo ampliasse tremendamente sua popularidade, universalizando suas raízes. Para 24 de janeiro de 2006, já está agendado um novo lançamento nos EUA, pelo selo Heads Up: “Long walk to freedom”.

Superastro do Senegal

Nascido em Dakar, Senegal, em 1959, Youssou N’Dour, que já se apresentou quatro vezes no Festival de Montreux, vem de uma família de “griots” (casta de músicos e contadores de história da África ocidental), tendo aprendido muito cedo as canções do povo uólofe. Ainda criança, integrou grupos de teatro tradicional em Medina, fazendo sua primeira apresentação como cantor aos 14 anos de idade. Dois anos depois entrava para a banda de Ibra Kasse que atuava no Miami Club, a casa noturna mais badalada de Dakar naquela época. Em 1977, decidiu reformar a Star Band, reciclando a cultura uólofe do Senegal, eclipsada durante anos pela colonização francesa. Esse processo resultou no “mbalax” (palavra que descreve o característico ritmo da percussão que é a sua base), uma música urbana e funkyada, mas ainda assim essencialmente africana, que se tornou o som preferido dos jovens de Dakar.

Quando Yossou já era o maior astro do Senegal, o selo Celluloid lançou na França o LP “Immigrés”, em 1984, que causou forte impacto na crítica. Seguiram-se “Nelson Mandela” (que levou Peter Gabriel a convida-lo para atuar em seu disco “So” e abrir os shows de sua turnê mundial em 1987), “The lion” e “Set”, além da participação na turnê “Human Rights Now”, promovida pela Anistia Internacional, ao lado de nomes como Bruce Springsteen, Tracy Chapman, Sting e o próprio Peter Gabriel, o padrinho da carreira internacional do senegalês. Atuou ainda no “Graceland”, de Paul Simon, que vendeu milhões de cópias e chegou ao terceiro lugar na parada pop da Billboard. O DVD “Youssou N’Dour et le Super Etoile de Dakar live at Montreux 1989” capta exatamente esse momento crucial, conseguindo a proeza de recriar, na paradisíaca cidade suíça, a atmosfera de uma noitada em Dakar.

“Com os ritmos irresistíveis de uma das melhores bandas já surgidas na África, a presença carismática e a voz retumbante de Youssou convenceram a todos os que tiveram o privilégio de estar naquela noite no Cassino de Montreux, de que não haviam apenas presenciado uma performance extraordinária de um astro em ascensão, mas também ouvido uma das melhores vozes do mundo”, sentenciou o crítico Nigel Williamson, comparando-o a Otis Redding e Marvin Gaye. No cardápio do show de 1989, cantado tanto em inglês como no idioma nativo uólofe, destacam-se o tema de abertura “Macoy”, “Immigrés”, “Shakin’ the three” (sua primeira música a emplacar na parada de singles da Billboard, chegando ao nono lugar na lista de “modern rock”!), “Bamako” e “Gaiende”. Todos marcados pela pulsação dos “talking drums”, os tambores falantes “sabar” e “tama”, sempre tocados com uma coreografia especial pelos percussionistas-dançarinos. Detalhe: o show de Youssou rolou na madrugada de 8 para 9 de julho de 89, na noite batizada “África/Brazil”, aberta por Jair Rodrigues, Paralamas do Sucesso e Pepeu Gomes.

Sete segundos

Após o controvertido projeto “Eyes open”, encomendado pelo selo 4 Acres & A Mule do cineasta Spike Lee em 1992, e indicado para o Grammy, Youssou estourou definitivamente em 94 com o álbum “The guide - wommat”, puxado pelo single “7 seconds”, faixa gravada em dueto com Neneh (filha do trompetista Don) Cherry. O sucesso mundial levou o cantor de volta à Montreux em 95, e cinco faixas daquela noite aparecem como “bônus” no DVD: “Nelson Mandela” (um hino extra-oficial que celebrava as conquistas do povo da África do Sul), “Toxiques”, o irresistível hit “7 seconds” (com Victoria Chidid no “papel” de Cherry), “Set” e “Chimes of freedom”, dando um novo sentido à música de protesto composta por Bob Dylan nos anos 60.

O estrondoso sucesso de “7 seconds”, inclusive no Brasil, fez de Youssou uma celebridade internacional, recrutado para discos de Lou Reed, Wyclef Jean e Ryuichi Sakamoto, Porém, ao contrário de outros artistas africanos, ele não se mudou para a Europa ou para os EUA. Ao contrário: investiu tudo em Dakar, abrindo a casa noturna Thiossane onde se apresenta semanalmente, montou um estúdio de gravação batizado Xippi (que significa “olhos abertos”), fundou seu próprio selo Jololli, e ainda comprou uma estação de rádio. Fiel às origens, continuou a abastecer o mercado senegalês lançando novas músicas em fitas cassete, vendidas por ambulantes nas ruas e nas feiras.

No final de 1999, quando revistas do mundo inteiro começaram a fazer listas dos “maiores e melhores”, várias delas estamparam Youssou N’Dour em suas capas, chamando-o de “artista africano do século”. Em sua terra natal, a revista Nouvel Horizon elegeu-o “personalidade do milênio no Senegal”. Afirmações corroboradas pela qualidade de álbuns que vieram logo em seguida, como “Joko: from village to town” (2000), “Nothing’s in vain” (2002, com melodias baseadas em instrumentos tradicionais como balafon, kora, xalam e o violino de uma corda só chamado “riti”), e “Egypt” (2004, uma revisão de sua herança islâmica, rendendo homenagem ao sufismo e aos marabutos senegaleses). Um pouco de tudo isso certamente estará em seu próximo show em Montreux.

Legandas:
“Ladysmith Black Mambazo: o melhor grupo vocal zulu em todos os tempos”
“Youssou N’Dour: superastro do Senegal atuou na noite ”África/Brazil” em 8 de julho de 1989, depois de Jair Rodrigues, Paralamas e Pepeu Gomes”

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