Tuesday, May 22, 2007

A saga de Miles Davis e Jack Johnson

A saga de Miles Davis e Jack Johnson
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 15 de Agosto de 2003 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Dando seqüência a uma fantástica série de caixas que documentam a longa associação de Miles Dewey Davis com a Columbia (atual Sony), o selo Legacy - dirigido por Seth Rothstein & Steve Berkowitz - prepara-se para lançar no mercado americano, dia 3 de setembro, “The complete Jack Johnson sessions”. Abrigando 5 CDs numa embalagem luxuosa com fotos raras e textos de historiadores como Michael Cuscuna, reúne 42 faixas, 34 delas inéditas. A obra-central é o álbum “Jack Johnson”, lançado em 24 de fevereiro de 1971, homenageando o lendário campeão dos ringues no início do século XX (falecido em 1946, aos 68 anos), com quem Miles muito se identificava – não apenas devido a sua paixão pelo box, mas também por conta da discriminação racial sofrida por JJ, perseguido pela Ku-Klux-Klan na época da histórica luta contra Jim Flynn em 1912.

Mas o material compilado cobre um período de 16 semanas – mais precisamente entre 18 de fevereiro e 4 de junho de 1970. Entram, portanto, na íntegra!, as célebres sessões com Hermeto Pascoal, que geraram as faixas “Nem um talvez”, “Igrejinha” e “Selim”, originalmente lançadas no álbum “Live evil”, com a autoria das músicas atribuída, por engano da Columbia, a Miles. Desde então, Davis foi acusado de “ladrão”, embora a gravadora logo tivesse assumido o erro e providenciado a correção na segunda tiragem do LP-duplo. Álbum que, diga-se de passagem, nunca foi lançado no Brasil em prensagem nacional.

Alma psicodélica

O primeiro disco (75m12s) tem dez faixas. Seis são versões do tema “Willie Nelson”, basicamente um groove repetido à exaustão por Dave Holland no baixo elétrico, sobre o qual Miles (usando surdina) volta e meia encaixa uma frase melódica simplíssima, em “imperfeito uníssono” com o clarone de Bennie Maupin, que mais tarde seria peça fundamental no grupo Headhunters, de Hancock. Quatro das variações, gravadas em 18 de setembro de 1970, permaneciam inéditas, exceto por um pequeno trecho do segundo take, acoplado ao tema batizado “Yesternow” para inclusão no LP original “Jack Johnson”. O timaço incluia também Chick Corea, num piano elétrico com o máximo de distorção, Jack DeJohnette (limitado a uma condução monótona), e as guitarras incendiárias de Sonny Sharrock (envenenada pelo uso do echoplex) e John McLaughlin (inconfundíveis frases cortantes).

Insatisfeito com os resultados, Miles voltou ao estúdio B da Columbia nove dias depois, para mais tentativas de eternizar “Willie Nelson”. Daquela feita, sem Chick, com apenas uma guitarra, e testando Steve Grossman (um dos fundadores do grupo Stone Alliance, excelente músico que nunca alcançou a merecida fama) no sax soprano. Nota-se Miles bem mais inspirado, sem surdina, dando gritos lancinantes no trompete, fraseando em interação com McLaughlin. O primeiro take, de quase onze minutos, não satisfez o mago. Trocou algumas palavras com Teo Macero e partiu para o segundo, alguns segundos mais curto, que acabou aprovado – provavelmente por conta do desempenho de Jack DeJohnette, bastante superior à pasmaceira rítmica das versões anteriores - para o álbum-duplo de material inédito “Directions”, lançado em fevereiro de 81.

Jack começa logo fraseando bonito na abertura de “Johnny Bratton”, ouvida em três versões inéditas, sendo Grossman o primeiro solista sobre uma bonita seqüência de acordes de guitarra, lembrando o clima do álbum “Joe Farrell Quartet” – do qual, não coincidentemente, três dos músicos (Jack, Dave e John) participariam em julho daquele ano. Deixando no ar mais uma pergunta: por que Miles nunca tocou com Joe Farrell, que teria sido um saxofonista perfeito para aquela fase de elocubrações? Devaneios à parte, um sombrio blues sem maiores atrativos, batizado “Archie Moore”, que abriu os trabalhos da sessão de 3 de março, traz apenas guitarra, base e bateria, completando o CD1.

No CD2 (68m21s), cinco faixas mostram o processo de criação da meditativa “Go Ahead John”, iniciada por um trompete em clima de expressiva melancolia, semelhante aos solos de Miles, 30 anos depois, na trilha do filme “Dingo”. Em excelente forma, MD expressa suas idéias com clareza, viajando junto com Jack (pontuando cada intervenção do líder), Dave (solto, sem perder o pulso) e John, de comentários ácidos jamais gratuitos. A versão lançada no disco “Big Fun” (em abril de 74) foi montada por Miles & Teo a partir de trechos dos diferentes takes, algumas vezes somando dois takes ao mesmo tempo, com a guitarra pulando de canal para canal, completando o efeito alucinógeno. Os grooves mortais voltam na frenética “Duran” – um take inédito só com Miles e base, outro lançado depois no disco “Directions” destacando Wayne Shorter (sax soprano) e Bennie Maupin (clarone). Aparece ainda a bateria aeróbica do ambidestro Billy Cobham, no auge da criatividade. Encerrando o disco, o primário tema “Sugar Ray”, captado em 20 de março, conta com Lenny White pilotando as baquetas.

Viagens lisérgicas

Através do terceiro CD (78m06s), finalmente penetramos nas sessões que originaram os temas presentes no LP “Jack Johnson”. Em 7 de abril, a banda reunia Cobham, Grossman, McLaughlin, Herbie Hancock barbarizando nos teclados e, substituindo Holland, um craque pinçado da Motown, o baixista Michael Henderson. Arrasam em quatro versões de “Right off” e duas de “Yesternow”, amálgamas perfeitas da fusão jazz-rock, com trompete e guitarra liderando a orgia, estimulada incessantemente pelas viradas inacreditáveis de Cobham. Diamantes em estado bruto, sem cortes ou edições. MD improvisa por quase oito minutos no take 10 de “Right off”, antes de abrir espaço para intervenções de Grossman e Hancock, de cujo órgão saem faíscas! Na abertura do take 16 de “Yesternow”, surge um riff de guitarra muito familiar, usado freqüentemente por Miles como tema de abertura de seus shows nos anos 80.

Em 19 de maio, uma nova formação deixou os engenheiros da Columbia de cabelo em pé. MD chamou um segundo tecladista, ninguém menos que Keith Jarrett, para juntar-se a Herbie. Trouxe ainda a percussão de Airto Moreira, concentrado na cuíca em “Honky tonk”, cujos takes são listados como inéditos na ficha técnica. Porém, você não estará delirando se os primeiros 49 segundos do take 2 lhe soarem familiares. Afinal, foram enxertados na faixa “Sivad”, lançada em novembro de 71 no controvertido “Live evil”. Gravada na mesma sessão, “Ali” abre o quarto CD (71m16s), com uma poderosa linha de baixo a cargo de Gene Perla (colega de Grossman e Don Alias no Stone Alliance) contrastando com o berimbau ultra-zen de Airto. Um único longo take de “Konda” nasceu em 21 de maio, sendo usado no álbum “Directions” em 81, mas sem a linda introdução de piano elétrico agora revelada. Todos parecem estar a um palmo do chão, criando uma atmosfera de refinado erotismo sonoro.

Seguem-se as famosas sessões com Hermeto Pascoal. Quatro takes de “Nem Um Talvez” (sim, aquela mesma melodia recriada por Robertinho de Recife no LP “Robertinho No Passo”) e um de “Selim”, que na verdade são a mesma música. Nas duas primeiras versões inéditas, de 27 de maio, Hermeto “canta” a melodia de forma tímida, assessorado com extrema sutileza por Michael Henderson, Mc Laughlin (parecendo até Jim Hall devido ao som abafado, com o mínimo de amplificação), Airto (cuíca e caxixi), Hancock e Keith Jarrett, além de Miles obviamente. Nas versões de 3 de junho, Chick Corea assume o órgão, com Ron Carter pegando o baixo, e Hermeto dando um show de, pasmem, bateria no take 4A. Surpresa maior só mesmo os dois takes de uma instigante-saltitante música inédita creditada a Hermeto, “Little high people” (título aparentemente enigmático mas bastante significativo), reforçada pela bateria de DeJohnette.

A última sessão, de 4 de julho, rendeu duas versões da genial balada “Little Church”, de “mood” altamente misterioso e caminhos harmônicos surpreendentes, trazendo apenas Miles, Jarrett no órgão e Holland no baixo. No take 7, inédito, Hermeto faz o vocal. No segundo, incluído em “Live evil”, assume o piano elétrico, mas predomina o assobio semi-fantasmagórico, em uníssono com o trompete assurdinado. Sem Hermeto, a turma acima citada, acrescida de Grossman (soprano), DeJohnette, McLaughlin, Corea e Hancock (em dose dupla de piano elétrico com “ring modulator” e pedal de wah-wah, apetrechos em voga na época), exorciza seus demônios em dois takes inéditos de “The mask”.

O quinto CD (76m06s) completa-se com as versões “oficiais” (leia-se ultra-editadas) das músicas “Right off” e “Yesternow”, do jeito que apareceram na prensagem original do LP “Jack Johnson”, idealizado como trilha de um documentário do cineasta William Clayton sobre o boxeur que “vivia a mil por hora, adorava carros, só bebia champagne e tinha muitas mulheres, geralmente brancas”, segundo um raro texto escrito por Miles. A primeira música, hiper-densa, usa o take 10 como base, incorporando trechos dos takes 11 e 12, além de um solo “a capela” de trompete solicitado pelo produtor Teo Macero à Miles durante uma gravação em novembro de 69! Solo repetido no final de “Yesternow”, com overdubs de uma pequena parte orquestral e o famoso trecho narrado pelo ator Brock Peters no “papel” de Jack. Teo inseriu ainda trechos de “Shh/Peaceful”, gravada em 69 com Wayne Shorter & Tony Williams. Aliás, em se falando de bateristas, “Jack Johnson” merece ser reconhecido também como o melhor disco de Billy Cobham com Miles. E os puristas de alma amorfa que durmam com um barulho desses...

Legenda: “Caixa de 5 CDs traz 34 faixas inéditas de Miles Davis, incluindo todas as suas gravações com Hermeto Pascoal”

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