Tuesday, May 22, 2007

O sax-appeal de Stanley Turrentine


O sax-appeal de Stanley Turrentine
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 2 de Julho de 2003 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Na opinião da maioria dos puristas, o último grande tenorista de jazz foi John Coltrane – antes da expansão para a fase “free”, obviamente, vista como um distúrbio em conseqüência das drogas. E o último mestre do sax-alto teria sido Charlie Parker – o fabuloso Phil Woods, coitado, não passaria de um imitador complexado. Para algumas figuras ainda mais radicais e fascistas, nem mesmo Parker mereceria tanta reverência, pelo fato do bebop ter supostamente destruído o “verdadeiro jazz”; expressão clichezada que provoca risos nos não-tradicionalistas. Afinal, bem sabemos que não existe “jazz puro” nem “jazz de raiz”, porque o estilo já nasceu misturado, miscigenado, jamais deixando de incorporar novos elementos durante sua constante evolução. Felizmente. Porque nessa capacidade de transmutação, nessa permanente experimentação criativa, reside grande parte de sua riqueza estética, de seu eterno poder de fascinação.

Ou seja: entre a genialidade de Parker ou Coltrane e a mediocridade de Najee ou Kenny G, existem muitos mais saxofonistas do que supõe a vã hipocrisia. Nomes como Stanley Turrentine e Hank Crawford, que voltam ao mercado através de vários relançamentos, exemplificam bem esta questão. Redescobertos por uma nova legião de fãs – principalmente na Europa e no Japão –, nunca posaram de gênios nem se propuseram a fazer uma música revolucionária. Não obstante, firmaram-se como estilistas tanto na concepção como na sonoridade, sendo identificáveis logo na emissão da primeira nota. Cometeram, porém, um pecado mortal aos olhos dos tradicionalistas, aqueles que pregam que “músico bom é músico pobre” – de preferência também feio, velho, frustrado, viciado e doente. Tornaram-se campeões de vendagem, usufruindo de grande popularidade graças a penetração de seus trabalhos em áreas além-jazz. Hoje trataremos de Turrentine. Na próxima semana, de Crawford.

Sonoridade sedutora

Stanley Turrentine, falecido em 2000 aos 66 anos, levou adiante o padrão estabelecido por Don Byas, Ben Webster e Coleman Hawkins, misturando elementos de swing, bop e soul-jazz, sem esquecer um certo “choro” gospel. Possuía uma sonoridade volumosa, quente, robusta e potente, mas nunca estridente. Muito pelo contrário, era aveludada, “creamy”, e não por acaso ele passou a ser conhecido como “The Sugar Man”, título de um de seus discos, inspirado em outro álbum, o antológico “Sugar”. Filho de um saxofonista amador, iniciou a carreira tocando com os irmãos Tommy (trompetista) e Marvin (baterista), e com o grupo Savoy Sultans em sua cidade natal, Pittsburgh, de onde saiu para cair na estrada com Ray Charles em 1952, trocado por Earl Bostic no ano seguinte, antes de despontar com Max Roach em 59.

Divisor de águas na carreira de Mr. T, “Sugar” (49m42s), acaba de ser reeditado em CD remasterizado pela Sony/Legacy. Gravado em novembro de 1970, marcou sua estréia no selo CTI e transformou-se em sucesso instantâneo. Seus discos anteriores para a Blue Note raramente passavam de 5 mil cópias. “Sugar” vendeu 150 mil. No conteúdo do LP original estavam apenas três longas faixas, todas ultrapassando dez minutos de duração. Ainda assim, o tema-título, um blues de 16 compassos em tom menor, estourou nas rádios de jazz. Hoje, já virou um clássico, com dezenas de gravações – a mais recente feita por David Sanborn no CD “Time again” (Verve). Além do improviso irretocável de Turrentine, que jamais enveredou por hermetismos, há ótimos solos de Freddie Hubbard (trompete) e George Benson (guitarra), então em franca ascensão. “Sunshine alley”, contagiante boogaloo em andamento médio determinado pelo autor, o sumido organista Butch Cornell, permite a Stanley explorar a sensualidade de seu fraseado, alicerçado pelo baixo de Ron Carter e pela bateria de Billy Kaye. O célebre blues-modal “Impressions”, de John Coltrane, ganha sutil tempero latino, fornecido pelo congueiro Richard Pablo Landrum.

Curiosamente, esta nova reedição em CD, apesar de preservar a ousada foto de Pete Turner usada na capa-dupla do LP, omite as fotos da capa interna e substitui o texto original do decano Ira Gitler por um de James Isaacs. As estranhezas não param aí. Na primeira edição em CD nos EUA em 1987, supervisionada pelo mesmo produtor da atual, Didier Deutsch, apareceu uma versão inédita de “Gibraltar”, gravada nas mesmas sessões, mas cortada do LP por falta de espaço. Agora, Didier incorporou uma gravação ao vivo de “Sugar” (feita em 71, durante concerto do grupo CTI All-Stars no Southgate Palace de Los Angeles), mas sumiu novamente com “Gibraltar”! Ora, se o CD tem capacidade para armazenar 80 minutos, por que não incluir as duas bonus-tracks? Sem falar que ainda existem alternate-takes inéditos de “Sunshine alley”...

Delicado equilíbrio

Questões enigmáticas à parte, o importante é que não apenas a Sony, mas também a Fantasy Records vem desovando as obras de Turrentine (Embora nenhum dos seus discos para o selo californiano no período 74-80 tenha superado ou sequer igualado a qualidade dos álbuns gravados em New Jersey para a CTI entre 1970 e 73). Aliás, a estréia na Fantasy em 74 com “Pieces of dreams” (44m45s), foi uma completa decepção. O “tiro” do produtor/arranjador Gene Page, chamado para tornar Stanley ainda mais acessível ao público pop, saiu pela culatra. Orquestrações excessivamente rígidas acabaram aprisionando o tenorista, que perdeu a espontaneidade, sendo afetado também pelo pífio rendimento da seção rítmica, repleta de músicos medíocres. O CD vem acrescido de takes alternativos de “Blanket on the beach”, “I’m in love” e “Pieces of dreams”, lindo tema de Michel Legrand gravado previamente para a CTI nas sessões do LP “Don’t mess with Mr. T” (73), mas somente utilizado no álbum “The Sugar Man” (74) justamente para competir com a versão lançada pela Fantasy.

O talento de Turrentine voltou a ser mal explorado em “Everybody come on out” (38m09s), relançado sem faixas extras. Desta vez há ótimos nomes na base, mas o baixista Paul Jackson, o batera Harvey Mason, o guitarrista Lee Ritenour e o percussionista Bill Summers têm burocráticos desempenhos. Nos teclados, as saudáveis contribuições de George Duke nos sintetizadores (sob o pesudônimo de Dawilli Gonga para burlar a cláusula de exclusividade contratual com a Epic) e Joe Sample (trocando o piano elétrico Rhodes pelo acústico na inesperada recriação do belo tema do filme “Aeroporto”) adicionam um certo molho, sendo porém insuficientes para compensar o restante do time. Sem falar das orquestrações de Wade Marcus, carentes de sutileza e requinte. Stanley incursiona pelo chamado “som da Filadélfia” da dupla Gamble & Ruff (“Stairway to heaven”, “Hope that we can be together soon”), pelo reggae de Jimmy Cliff (“Many rivers to cross”) e até pela melosidade de Eric Carmen (“All by myself”).

A situação melhora bastante no CD “On a misty night” (79m11s), que reúne os álbuns “Have you ever seen the rain” (1975) e “Use the stairs” (1980). No primeiro, Stanley – definido como “a trans-stylistic saxophonist” pelo crítico Larry Hollis no texto do livreto – alcança o tão almejado equilíbrio entre as fronteiras do jazz e do pop, muito bem assessorado por antigos colegas da CTI (Ron Carter, Jack DeJohnette, Freddie Hubbard) e promissores talentos como a tecladista Patrice Rushen, então com 21 anos. No cardápio, deliciosas releituras de sucessos do Earth, Wind & Fire (“Reasons”, “That’s the way of the world”) e Creedence Clearwatrer Revival (“Have you ever seen the rain”), com Gene Page caprichando mais nos arranjos. Do mesmo modo, Wade Marcus aprimora seu rendimento nos scores de “Use the stairs”, ornamentando jóias tipo “On a misty night” (do mestre Tadd Dameron) e “Jordu” (tema do pianista Duke Jordan, consagrado por Clifford Brown), além de “The lamp is low” (adaptação da “Pavane” de Ravel). Na banda, craques como Grady Tate, Gene Bertoncini, Rubens Bassini e Clark Terry. Alguém duvida que uma turminha assim faz uma baita diferença?

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