Thursday, May 24, 2007

Saborosas viagens no tempo




Saborosas viagens no tempo
“Preciosos relançamentos são valorizados por faixas inéditas”
Arnaldo DeSouteiro


Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 20 de Outubro de 2004 e originalmente publicado no jornal "Tribuna da Imprensa"

Nem tem mais graça reclamar. E como a situação não se altera, o jeito é aproveitar as reedições e compilações que continuam abarrotando as prateleiras. Culpando a pirataria via download ilegal na internet, as gravadoras se recusam a investir em novos artistas e projetos, preferindo revirar os acervos. Às vezes até descobrem material inédito, como é o caso de “Virtuoso in New York”, do guitarrista Joe Pass, que adormecia no arquivo do selo Pablo, hoje controlado pela Fantasy Records. Esta mesma companhia relança os dois primeiros discos do recém-falecido Steve Lacy, o mais criativo sax-soprano da história do jazz. Por sua vez, o selo Sony Legacy arremessa quatro jóias de Thelonious Monk, todas com atraentes faixas extras.

Frutos tentadores

Ao ser redescoberto pelo produtor Norman Granz, nos anos 70, Joe Pass (1929-1994) conheceu uma nova fase de popularidade e prestígio, compensando o tempo perdido com internações (e detenções) na década anterior, marcada pela luta contra as drogas. Gravou mais de 30 LPs para a Pablo, e volta e meia surgem “novos” discos, geralmente captados em shows. Porém, este “Virtuoso in New York” (49m32s), é fruto de inéditas sessões de estúdio realizadas em 5 & 6 de junho de 1975. Para variar, nosso herói dá uma aula de guitarra-solo, com o título do CD fazendo explícita referência ao antológico “Virtuoso”, o álbum responsável, em 73, por restabelecer o prestigio de Joseph Anthony Passalaqua. Como bem afirma, no texto do encarte, o renomado crítico Scott Yanow, Pass – ao contrário de Stanley Jordan, por exemplo – “usava a técnica convencional para atingir o anti-convencional”. Faixas do nível de “I never knew”, “We’ll be together again”, “The way you look tonight” e “When your lover has gone” são exemplos de sua concepção inconfundível.

Outro estilista, Steve Lacy, falecido em junho último às vésperas de completar 70 anos, gravou seu primeiro disco como líder em uma única sessão (1º de novembro de 1957) para o selo Prestige. Uma nova tiragem de “Soprano sax” (33m18s) chega ao mercado, dentro da série OJC (Original Jazz Classics). Como se ouve, Lacy já nasceu pronto, demonstrando completa maturidade para um estreante, exibindo sua incomparável sonoridade em “Day dream”, “Alone together” e “Easy to love”. No apoio, o encontro inusitado do pianista Wynton Kelly (considerado um conservador) com os vanguardistas Buell Neidlinger (baixo) e Dennis Charles (bateria), colegas de Lacy no quarteto do iconoclasta Cecil Taylor. A afinidade com Monk, nítida na faixa “Work”, seria esmiuçada em “Reflections – Lacy plays Thelonious Monk” (36m56s), gravado no estúdio de Rudy Van Gelder em 17 de outubro de 58, àquela época contemplado com 4 estrelas na DownBeat. Como atesta o mestre Ira Gitler, no texto de apresentação, o saxofonista trata os temas de Monk com o devido atrevimento criativo, barbarizando em “Four in one”, “Bye-ya”, “Skippy” e na linda balada “Ask me now”, sendo estimulado por dois outros craques de saudosa memória, Mal Waldron (piano) e Elvin Jones (bateria), novamente com Buell no baixo.

Gênio em ação

Falando em Monk (1917-1982), o gênio do bop esbanja categoria em quatro petardos de sua fase na Columbia, de 62 a 68, sob a produção de Teo Macero. As cuidadosas reedições, coordenadas por Orrin Keepnews, reproduzem as capas e textos originais, agregando novos comentários, fotos raras e várias faixas inéditas. No fenomenal “Criss-cross” (62m52s), o segundo LP para a Columbia, editado em 63, a lendária baronesa Nica De Koenigswarter – a musa homenageada em “Pannonica” – assinava a contracapa do vinil, que tinha 8 faixas. No CD são 12, com Thelonious liderando Charlie Rouse (sax tenor), John Ore (baixo) e Frank Dunlop (bateria). Além das obras-primas de lavra própria (“Rhythm-a-ning”, “Crepuscule with Nellie”, “Criss-cross”), há fenomenais recriações dos standards “Tea for two” (em trio, sem o sax) e “Don’t blame me”, piano-solo repleto das dissonâncias que ninguém jamais soube usar tão bem. Mas, em termos de abordagem radical, talvez nada supere “Coming on the Hudson”, de sucessivas alterações de andamento (4/4, 3/4 e 2/4), ensejando arrojados solos de Monk e Rouse.

O disco seguinte, “It’s Monk’s time” (62m38s), concebido entre janeiro e março de 64, trouxe uma nova formação, com Butch Warren no baixo e Ben Riley na bateria. E foi ansiosamente aguardado, devido à aparição de Monk na capa da revista Time, na edição de 28 de fevereiro daquele ano. A faixa de abertura, uma releitura de quase 10 minutos de “Lulu’s back in town”, não poderia ter sido mais provocadora, antecedendo outra antiguidade, “Memories of you”, de Eubie Blake, devidamente Monkiada. Às 6 faixas do LP, somam-se agora mais 3: “Epistrophy”, e alternate-takes de “Nice work if you can get it” e “Shuffle boil”. Como nos outros discos, a remixagem feita pelo engenheiro Mark Wilder restitui o registro integral de todas as faixas, sem os cortes que mutilaram improvisos nas prensagens originais dos LPs.

A abundância de bonus-tracks marca “Solo Monk” (70m46s), que passa de 12 para 21 faixas. Valendo a pena o comentário de que, no caso de Monk, mesmo quando se trata de versões-alternativas, a diferença entre os takes de um mesmo tema é quase sempre imensa, e invariavelmente fascinante. Entre os poemas recriados por seu ultrapeculiar estilo de piano-solo destacam-se “I should care”, “Ruby my dear”, “These foolish things”, “Darn that dream” e “Everything happens to me”. Àquele a quem Martin Williams chamava de “supremo jazzman, tão raro quanto um oásis no Saara”, sabia simultaneamente honrar e transcender às tradições, mostrando isso na abertura bombástica via “Dinah”, de 1925, patenteada pouco depois por Fats Waller.
E se a questão era chocar, impressionar ou simplesmente surpreender, poucas capas conseguiram até hoje superar o psicodélico design para “Underground” (71m25s), “explicado” pelo tresloucado texto de Gil McKean em 1968. A capa ganhou um Grammy. E o conteúdo da embalagem, igualmente impactante, trouxe quatro novas composições de Monk: “Raise four”, “Boo Boo’s birthday”, “Green chimneys” e “Ugly beauty”, sua única valsa-jazz. No tema “In walked Bud”, com a canja de Jon Hendricks, o canal de voz permanece propositalmente aberto após o término de sua intervenção, revelando os risos de entusiasmo do papa do “vocalese” durante as performances dos outros músicos. Jon deu uma passada pelo estúdio e acabou convidado por Monk a letrar o tema em homenagem a outro Deus do piano bop, Bud Powell, reverenciando também Gillespie, Don Byas e Oscar Pettiford nos belos versos evocativos do cenário jazzístico nos idos de 1947, ano em que Thelonious gravou a música pela primeira vez. Mais uma vez marcou ponto na história do jazz.

Legendas:
CD inédito de Joe Pass humilha os menos dotados
Monk barbariza em “Undergrtound”

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