Tuesday, May 22, 2007

A genialidade de Dave Brubeck


A genialidade de Dave Brubeck
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 12 de Setembro de 2003 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Capa da edição de setembro da Down Beat, Dave Brubeck mantém-se em plena atividade aos 82 anos. Depois de passar décadas sendo espinafrado por críticos esnobes, puristas e racistas, enquanto sua popularidade alcançara um nível que pouquíssimos jazzmen sonharam atingir, finalmente Brubeck começa a ser tratado com o respeito merecido. Ainda assim, as honras recebidas permanecem muito aquém de sua genialidade – provavelmente pelo fato de estar vivo, feliz, gravando prolificamente (conta com mais de 100 títulos em sua discografia), excursionando pelo mundo afora, gozando de excelente saúde e situação financeira, coisas que a inveja não perdoa. Para piorar, está casado há mais de 60 anos com a mesma esposa, Iola, mãe de quatro talentosos músicos que volta e meia tocam com o pai.

Nunca foi convidado para nenhum dos “fantásticos” festivais de jazz que acontecem no Brasil – sua última apresentação por aqui deu-se em 1978, comandando um quarteto com os filhos Darius, Chris e Danny numa antológica performance no Salão Leopoldo Miguez da Escola Nacional de Música, no Rio, tendo Paulo Santos como MC –, mas faz uma média de 60 concertos por ano. Sua agenda já tem compromissos até para dezembro de 2005, data marcada para a comemoração de seus 85 anos em um concerto com a Sinfônica de Londres. Esta orquestra, aliás, atua em seu último disco, o CD-duplo “Classical Brubeck”, a mais recente investida na área clássica, sucedendo o DVD “Brubeck returns to Moscow”, lançado no ano passado. Em 3 de outubro, Dave celebra os 50 anos do antológico disco “Jazz at Oberlin” retornando ao local do crime, o Oberlin College, em Ohio, para um novo concerto. Quatro dias depois, chega às lojas a caixa de 5 CDs batizada “For all time”. Por enquanto, os fãs podem deliciar-se com o CD-duplo “Then essential Dave Brubeck”, caprichada edição da Sony/Legacy já disponível nas importadoras.

Trajetória ímpar

Brubeck pode não ter feito uma revolução no jazz. Mas certamente contribuiu para inúmeras evoluções e transformações, desafiando rótulos, rompendo barreiras e quebrando preconceitos, raciais inclusive. Graças à influência de seu mestre Darius Milhaud, incorporou ao jazz conceitos e elementos da música erudita, ajudando a desbravar o caminho da chamada “third-stream”. Foi um pioneiro tanto no uso de andamentos pouco usuais (como o 9/8 de “Blue rondo a la turk” – baseado num ritmo que o cativou durante um passeio pelas ruas de Istanbul), absorvidos como frutos de seu fascínio em estudar diferentes culturas, como na formação de um grupo “misto” ao contar com o contrabaixista negro Eugene Wright no quarteto de maior projeção na história do jazz. Primeiro jazzman a ser capa da revista Time (na histórica edição de 8 de novembro de 1954, por conta do sucesso de seu grupo junto ao público universitário), lançou o primeiro LP de jazz a vender um milhão de cópias, “Time out”, gravado em 59, puxado pelo hit “Take five”.

Um dos principais atrativos de “The essential Dave Brubeck” (76m31s/76m46s) reside no fato do próprio astro ter escolhido as trinta e uma faixas desta retrospectiva, extraídas de 24 álbuns que cobrem um período de 53 anos, não se limitando a fase da Columbia. As faixas – produzidas por craques como George Avakian e Teo Macero – esão dispostas em ordem cronológica, começando com “Indiana”, do LP-mono “Distinctive Rhythm Instrumentals”, de 1949, um dos discos inaugurais da Fantasy Records, e terminando com uma personalíssima recriação de “Love for sale”, captada ao vivo em julho de 2002 para o CD “Park Avenue South”, da Telarc. O ótimo texto do poeta Joel Lewis destaca os principais aspectos do “estilo Brubeck”, cujos improvisos ao piano (geralmente de “approach” percussivo, em blocos de acordes) levam as platéias ao delírio, às vezes gerando aplausos no meio dos solos, como acontece na faixa “Le souk”, documentada durante exibição na Universidade de Michigan em 1954.

“Audrey”, outra parceria de Dave com Paul Desmond - cujo sax-alto de inconfundível sonoridade “dry-martini” formava um perfeito contraponto “cool” ao extrovertido temperamento estilístico de Brubeck -, mostra o lado lírico do pianista neste belo retrato sonoro da beleza da atriz Audrey Hepburn. Por falar em lirismo, vale destacar dois momentos pinçados do LP-solo “Brubeck plays Brubeck”, gravado em 56 na antiga casa do artista na cidade californiana de Oakland: “In your own sweet way” (uma das mais conhecidas composições de Dave, a predileta de Bill Evans) e “Weep no more” (esquecida no tempo), duas jóias do mesmo nível de “The duke” (a tocante homenagem a Ellington imortalizada por Miles Davis & Gil Evans em “Miles ahead”). Aliás, Brubeck comenta que até hoje não sabe o motivo de nunca ter gravado um álbum com Davis, já que se admiravam mutuamente e eram contratados da mesma companhia.

Piano crepitante

Em matéria de solos em temas alheios, os destaques ficam por conta das improvisações absolutamente perfeitas em “Someday my prince will come” (do LP “Dave digs Disney”, de 57, sendo que a citação de “You make me feel so young” no último chorus é um verdadeiro “achado”) e nos dez minutos de “Tangerine” que deixaram em estado catatônico os dinamarqueses presente a um show em Copenhagen, em 58. Brubeck faz um solo exemplar pelo minamalismo, insistindo na repetição de algumas notas que aos poucos vão sendo encorpadas por outras até se transmutarem em acordes bárbaros encadeados numa seqüência harmônica em permanente mutação. Prova prática da condição de Dave como um dos pianistas mais originais de todos os tempos, tão criativo quanto Thelonious Monk, Bud Powell e Lennie Tristano.

Se em “Indiana” o jovem Brubeck ainda comandava um trio com o baixista Ron Crotty e o batera Cal Tjader (futuro vibrafonista que se tornaria figura de proa no cenário do latin-jazz), “Perdido” (do célebre “Jazz at Oberlin”, relançado este ano no Brasil pela Fantasy/BMG) já trazia um quarteto com Crotty, Desmond e Lloyd Davis na bateria. O registro esfuziante de “Take the A train” contava com outro batera, Joe Dodge, finalmente substituído por Joe Morello, enquanto Eugene Wright assumia o baixo na formação mais famosa do Dave Brubeck Quartet, que durou de 1958 a 67, gerando a obra-prima “Time out” (59), representada pelas faixas “Three to get ready”, “Blue rondo a la turk” e, claro, a indispensável “Take five”, composta por Desmond sobre o desenho rítmico de Morello.

Sempre disposto a expandir seus horizontes, nosso herói não deitou na fama, conseguindo a proeza de realizar um disco ainda superior, “Time futher out” (61), que originou as doidaças “It’s a raggy waltz” e “Unsquare dance”, esta em 7/4. Uma orquestra regida por seu irmão mais velho, Howard Brubeck, emoldura o bailado de “Kathy’s waltz” (na versão do álbum “Brandenburg gate revisited”), Paul Desmond flutua na ultra-delicada adaptação da canção folk mexicana “La paloma azul” e Gerry Mulligan barbariza no sax-barítono em “Recuerdo”, do último disco de Brubeck na Columbia, em 68, “Compadres”, gravado ao vivo no México um ano após a desintegração do quarteto com a saída de Desmond. Rola ainda o balanço da estilizada “Bossa Nova USA” (irmã menos badalada de “Broadway Bossa Nova”, oficialmente letrada em 1996 por um colaborador da Tribuna da Imprensa cujo nome a modéstia me impede de revelar) e a sofisticada atmosfera novaiorquina inerente a “Autumn in Washington Square”.

Igualmente bem sacadas são as inclusões das faixas com cantores do porte de Carmen McRae (“Travelin’ blues”, redescoberta nos anos 80 por Dianne Schurr naquele Grammyado disco com a Count Basie Orchestra), Tony Bennett (“That old black magic”, que o fabuloso cantor usaria, trinta anos depois, para abrir o “MTV Unplugged”, divisor de águas em sua carreira), Jimmy Rushing (“There’ll be some changes made”) e, surpresa!, Louis Armstrong, num pungente duo de piano & voz em “Summer song”, do disco-manifesto “Then real ambassadors” (61). Da fase menos interessante de Brubeck, no selo Concord, temos “Caravan” ao vivo em 79, com Jerry Bergonzi (tenor), Chris Brubeck (baixo elétrico) e Butch Miles (bateria). “Stardust”, um dos standards favoritos de Dave desde “Jazz at Oberlin” surge em safra 91, do disco “Once when I was very young” para o selo MusicMasters, destacando o clarinetista Bill Smith. Legal, mas sem ultrapassar a soberba versão feita com Desmond para o projeto “1975: The duets” na A&M. Por fim, Dave destrincha todas as possibilidades de “Brother, can you spare a dime?” em piano-solo, do disco “Just you, just me” (Telarc, 94) e fecha a compilação com a já citada “Love for sale” (2002), trazendo na linha de frente Bobby Militello, seu atual saxofonista. Por questão de espaço, a caixa “Time for all” fica para a próxima semana. Nesse meio-tempo, saboreie “The essential”.

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