Tuesday, May 22, 2007

Passado inédito do jazz

Passado inédito do jazz
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 17 de Junho de 2003 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Nesses tempos altamente bicudos para a indústria de discos, até mesmo o jazz sofre com a queda nas vendas e, por conseqüência, com a diminuição de investimentos por parte das grandes companhias. Num período em que tanto as chamadas “majors” como os pequenos selos evitam novos projetos, mais uma vez os acervos são revirados em busca de material para relançamento. Mas existe um filão ainda mais lucrativo e de maior apelo comercial: a edição de “tapes” inéditos, de preferência focalizando artistas de boa popularidade. Encontradas as fitas, basta providenciar a masterização, encomendar um texto a algum crítico renomado, preparar uma capa atraente e, pimba, obtém-se lucro certo a um custo mínimo. Os resultados artísticos, porém, variam tremendamente, como mostram os seis CDs – todos resultantes de gravações ao vivo - pertencentes a esta nova safra jazzística.

Noitadas irregulares

Captado durante concerto no famoso Olympia de Paris, em 6 de outubro de 1962, “Paris Blues” (Pablo/64m01s) focaliza Horace Silver liderando um quinteto com Blue Mitchell (trompete), Junior Cook (sax tenor), Gene Taylor (contrabaixo) e Roy Brooks (bateria). Curiosamente, a despeito de seus talentos, tais sidemen nunca obtiveram o merecido reconhecimento. Na verdade, este foi um dos menos badalados conjuntos do pianista/compositor, que em outras fases escalou astros de maior grandeza como Woody Shaw, Art Farmer, Joe Henderson, Billy Cobham, e os irmãos Brecker. Dublê de empresário e produtor, Norman Granz fez o papel de mestre de cerimônias, anunciando Silver em francês para amaciar o publico. O cardápio servido incluiu apenas cinco longas músicas, com destaque para “Filthy McNasty” (perfeita mistura de hard-bop e funky-jazz – nenhuma semelhança com Bonde do Tigrão ou Vai Serginho) e “Sayonara blues”. Mas o craque Silver já teve noites bem mais inspiradas.

Esta última observação serve também para os desempenhos de Gene Ammons & Sonny Stitt em “Left Bank encores!” (Prestige/73m18s), despretensiosa jam-session no Famous Ballroom, de Baltimore, em 24 de junho de 1973. Os dois líderes tentam reviver o espírito das chamadas “tenor battles”, com Stitt mudando para o sax-alto apenas em “They can’t take that away from me”. Muito entusiasmo e pouca sutileza resumem o conteúdo, apesar da qualidade da seção rítmica, que, pasmem, ataca de “Love story”, tentando jazzificar o meloso tema de Francis Lai. Também não dá certo, apesar dos esforços de Cedar Walton (piano), Sam Jones (baixo) e Billy Higgins (bateria). Há longuíssimas versões de standards ultra-manjados como “Autumn leaves” e “Just in time”, além de um fraco “Blues up and down”, no qual Stitt faz um cansativo solo de 47 “choruses”. Salvam-se as duas faixas com a saudosa Etta Jones, em boa forma ao relembrar “Exactly like you” e seu único grande sucesso, “Don’t go to strangers”.

O título “The George Shearing/Cannonball Adderley quintets at Newport” (Pablo/72m25s) tende a despertar excitação e desconfiança, não necessariamente nesta ordem. Armação da gravadora? Ou os dois músicos realmente uniram forças no célebre festival de jazz, hoje rebatizado JVC por questões de patrocínio? Tocaram juntos sim, em 5 de julho de 1957, ainda que apenas em uma música...Nem por isso o disco é desprezível, ainda que a qualidade de som deixe muito a desejar. Nas cinco primeiras faixas, um Cannonball ainda em ascensão, com 28 anos, exibe o fulgor que viria a aperfeiçoar na fase da Riverside. Assessorado pelo irmão Nat (trompete), Junior Mance (até hoje um subestimado pianista), Sam Jones (baixo) e Jimmy Cobb (bateria de lendárias gravações com Miles), passeia com desenvoltura por temas de J.J. Johnson (“Wee dot”) e Quincy Jones (“Hurricane Connie”).

Na seqüência, o inglês George Shearing, então com 38, consagrado desde o estouro de “September in the rain”, em 1949, exibe sedutoras leituras de “There will never be another you” e “It never entered my mind” (entrelaçada à famosa “Gymnopedie #1” de Satie) comandando o vibrafonista Emil Richards, o batera Percy Brike, o já veterano baixista Al McKibbon (de cultuados discos com Teddy Wilson), e um promissor guitarrista belga chamado Toots Thielemans. Súbito, chama os irmãos Adderley de volta ao palco para um ebuliente “Soul station”. Quando não se espera surpresa maior, o congueiro cubano Armando Peraza (um dos gurus de Santana) entra em cena para adicionar tempero latino à “Old devil moon” e “Nothin’ but the best”, inteligente tema-trocadilho assinado por Denzil Best, ex-baterista de Shearing.

Climas latinos

A influência latina aumenta na mesma proporção em que a qualidade de som cai a um nível quase enervante – algumas faixas são monofônicas! - em “Concerts in the sun” (Fantasy/53m51s), que mistura shows de Cal Tjader realizados em 1960 no Havaí (7 de outubro) e na Califórnia (27 de maio). Naquela época, seu grupo incluía futuros ícones do latin-jazz, como Willie Bobo (bateria) e Mongo Santamaria (congas & bongôs), ambos “roubados” da banda de Tito Puente em 57. O pianista Lonnie Hewitt tinha acabado de ingressar no conjunto, no lugar de Vince Guaraldi. No concerto que balançou o Santa Monica Civic Auditorium, o baixista foi Eddie Coleman, substituído em Honolulu por Victor Venegas. O excelente repertório abriga desde a sublime balada “Goodbye”, sucesso de Gordon Jenkins na voz de Sinatra (e gravada maravilhosamente também pelo vibrafonista-mor Milt Jackson) até o incendiário “Cubano chant” (de Ray Bryant, com Willie passando para os timbales). Sem falar de um hino do jazz afro-cubano, “Afro blue”, tema de Mongo posteriormente consagrado por Coltrane. No final, transformam “Day in, day out” num mambo irresistível.

O talento de Mongo Santamaria como band-leader é celebrado ao longo de “Montreux heat!” (Pablo/60m07s), fruto do mesmo show – em 19 de julho de 1980 – que deu origem ao LP “Summertime”, lançado em 81. As oito faixas agora desencavadas pelo produtor Dave Luke demonstram a energia do septeto, que tem no pianista Milton Hamilton um elemento catalisador. Seja preparando uma introdução de sete minutos em “Sofrito” (que deu nome ao melhor disco de Mongo para a Fania Records) ou fornecendo estímulos constantes para os solistas em “Cóme Candela” e “Para Ti”, revezando-se nos pianos acústico e elétrico (um legítimo Fender Rhodes), ele funciona como peça-chave na engrenagem do grupo. E que grupo! Allen Hoist, por exemplo, além de dominar flauta, sax-alto e sax-barítono, ainda arrasa no violoncelo na charanga “Amanecer”, citando “Stompin’ at the savoy” em andamento lento durante seu solo. No primeiro bis impactante, Dizzy Gillespie (trompete) e Toots Thielemans (gaita) ajudam a incendiar “Watermelon man”, de Hancock. O público, claro, vai à loucura.

Delírio maior só mesmo no CD-duplo “Live and unreleased” (Legacy/2h11m38s), documento das diabruras praticadas pelo super-grupo Weather Report durante turnês pelos EUA e Inglaterra entre 1975 e 83. Fundado em 71 por Joe Zawinul e Wayne Shorter, o WR sempre esteve na vanguarda da fusion, originalmente um estilo denso, altamente criativo e hiper-fértil que alguns críticos senis ainda insistem em desqualificar, inclusive tentando confundir leitores incautos ao colocar Miles Davis e Kenny G, ou Return to Forever e Spyro Gyra, como farinha do mesmo saco – algo tão absurdo quanto comparar Paulinho da Viola com Alexandre Pires, ou Época de Ouro com É O Tchan! Os tais puristas-fascistas têm, agora, mais um motivo para espernear em suas fraldas geriátricas, na medida em que as proezas do WR vão sendo incorporadas definitivamente à história do jazz.

Proezas como as selecionadas pelo próprio Zawinul, auxiliado pelo produtor Bob Belden, para este CD magnífico. Não há uma única bola fora, uma única faixa não-fascinante. Jaco Pastorius (“o Charlie Parker do baixo elétrico”, como bem define Christian McBride no livreto) arrasa em todas as músicas de que participa, valendo destacar o número-solo “Portrait of Tracy”, “Teen town” e a pauleira dionisíaca de “Black market”, incrementada pelo desempenho eletrizante de Manolo Badrena nos timbales. Antecessor de Pastorius no WR, Alphonso Johnson igualmente contribui com performances fascinantes em “Freezing fire” e “Cucumber slumber”. Entre os bateras, feras como Chester Thompson, Alex Acuña, Peter Erskine e Omar Hakim. No saxofones tenor & soprano, a presença divina de Wayne Shorter, em telepática comunhão com a dimensão celestial dos teclados de Joe Zawinul. Deus, se resolvesse voltar à terra como músico, talvez pedisse para tocar no Weather Report. Alguns até juram que isso aconteceu.

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