Tuesday, May 22, 2007

O Sax-Vocal de Hank Crawford



O Sax-Vocal de Hank Crawford
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 16 de Julho de 2003 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

“Apesar de ser um saxofonista, vejo-me como um cantor de blues porque meu approach é vocal, como se eu estivesse cantando através do instrumento”, declarou certa vez Hank Crawford, um músico que sempre passeou com desenvoltura pelos territórios do jazz, do blues e de variantes do pop, não raro mesclando elementos de todos esses estilos. Três discos agora relançados em CD – “Help me make it through the night”, “Wildflower” e “I hear a symphony” – mostram os resultados heterogêneos dessa mistura, amaldiçoada pelos puristas, mas que lhe rendeu longevidade artística e ótimos índices de vendagem. Além da admiração de nomes como David Sanborn, seu mais famoso fã e discípulo.

Nascido em 21 de dezembro de 1934, em Memphis, Tennessee, Bernie Ross Crawford é dono de uma das mais inconfundíveis sonoridades de sax-alto na história da música – uma qualidade encontrada também em Johnny Hodges, Charlie Parker, Phil Woods e Paul Desmond, estilistas reconhecíveis em poucos segundos. Começou tocando piano e passou para o sax na adolescência, apaixonado por Hodges, Parker, Louis Jordan e Earl Bostic. Ainda na época de “high school” já organizava jams com Booker Little, George Coleman, Harold Mabern e Phineas Newborn, Jr. Logo estava tocando nas bandas de Ike Turner e Tuff Green, acompanhando B.B. King, Bobby Bland e Junior Parker. Em 1953 teve suas primeiras experiências como arranjador, escrevendo para a “dance band” do Tennessee State College em Nashville.

A grande chance veio em 58, quando Ray Charles passou pela cidade e convidou Hank para substituir o saxofonista Leroy Cooper. Detalhe: Leroy tocava sax-barítiono! Mas Crawford encarou o desafio e se deu bem, garantindo o emprego e conquistando definitivamente a admiração do chefe. Tanto que, em 59, quando Cooper voltou ao grupo, Hank foi remanejado para o sax-alto. Dois anos depois, o grupo se transformou numa big-band, com Charles oferecendo a Crawford o cargo de diretor musical & arranjador. Ao desligar-se da banda para formar seu próprio septeto, em 1963, já tinha angariado prestígio por conta de vários discos para o selo Atlantic, pelo qual lançou doze álbuns antes de assinar com a etiqueta Kudu em 71, a convite do produtor Creed Taylor.

Cardápio romântico

Hank apareceu com destaque no disco de inauguração da Kudu Records, “Breakout”, do organista Johnny Hammond, gravado em junho de 71. No mês seguinte, logo após participar do show que deu origem ao álbum-duplo “California Concert”, começou a preparar seu LP de estréia-solo na nova companhia, finalizado somente em janeiro de 72. Da primeira sessão de gravação, Creed salvou apenas o tema “Ham”, composição e arranjo de Alfred “Pee Wee” Ellis numa pulsação funky, utilizando abrasivo naipe de metais. Optou então por dar outro rumo ao projeto, selecionando canções de sucesso pop, recrutando um diferente time de músicos, e encarregando Don Sebesky de escrever os arranjos para orquestra de cordas, visando acentuar o “romantismo” inerente à sonoridade de Crawford.

Os puristas chiaram, chamaram o LP de “meloso”, mas, para (não) variar, o público adorou, consumindo mais de 100 mil copias em poucos meses. Os acertos começaram com a faixa escolhida para dar título ao disco, “Help me make it through the night”, primeira gravação do cantor country (e futuro astro de cinema de Hollywood) Kris Kristofferson, um estouro também na versão da cantora Sammi Smith, que chegou ao Top 10 da parada pop da Billboard. Hank adicionou buliçoso tempero “soul” àquela balada erótica, adornada por inspirados desempenhos do guitarrista Cornell Dupree e do saudoso organista Richard Tee. O departamento de baladas incluiu desde o hino pacifista “Imagine” (John Lennon) até o tema de Michel Legrand para o filme “Brian’s song” (rebatizado “The hands of time” depois que o casal Marilyn & Alan Bergman adicionou letra).

Mais: a canção-título do primeiro 12 polegadas de Frank Sinatra na Capitol, “In the wee small hours of the morning”, orquestrada por Nelson Riddle em 1954; “Go away little girl”, uma pérola de Carole King da fase áurea da parceria com seu então marido Gerry Goffin; e um sucesso de Ray Charles chamado “The sun died”, na verdade a francesa “Il est mort le soleil”, incorporada ao repertório jazzístico após a gravação de Betty Carter em 1969, e recriada pela diva Shirley Horn em seu disco-tributo a Charles em 93, “Light out of darkness”. Vale ainda destacar o groove adicionado pelo batera Bernard Purdie a “Go away little girl”, o improviso bluesy de Cornell Dupree em “Uncle funk” (também conhecido como “Bow full o’blues”), as sutis intervenções do vibrafonista Phil Kraus em “In the wee small hours”, e os arpejos da harpa de Margaret Ross na melodramática “Brian’s song”.

Fórmula infalível

Creed Taylor reprisou a união Crawford-Sebesky no disco seguinte, “We got a good thing going”, relançado em 87. Mas para o terceiro projeto, “Wildflower”, agora reeditado pela Sony/Legacy nos EUA, optou por convocar outro arranjador, Bob James. Sem deixar de lado o romantismo do saxofonista, revelava a intenção de realizar algo mais na linha fusion, dando tanta ênfase aos grooves quanto às melodias. Captado em junho de 73, chegou a ser lançado em vinil no mercado brasileiro, sendo esculhambado pela crítica. Enquanto isso, o historiador Leonard Feather sentenciava: “o estilo de Crawford ajudou a consagra-lo não apenas como um dos gigantes do jazz contemporâneo, mas sobretudo como um músico que, com uma única frase, traz aos ouvintes um tipo de genuína alegria que poucos artistas conseguem proporcionar”.

No texto para o livreto do CD, o produtor Didier Deutsch reproduz este comentário de Feather, que ajuda a explicar a mágica de faixas como “Good morning heartache”, a pungente balada imortalizada por Billie Holiday e aqui tão bem “cantada” pelo sax de Crawford. Isso depois dele se esbaldar na pegada precisa de “Mr. Blues”, amostra típica do que os jazzmen chamam de um balanço “in the pocket”. Sob a pulsação baloiçante do batera Idris Muhammad, atrelado ao baixo de Bob Cranshaw, Hank e o guitarrista Joe Beck arrepiam em atmosfera festiva de boogaloo pós-moderno. Escolhida para puxar o disco nas rádios, “Wildflower”, uma adocicada balada fraquinha, fraquinha, com simplória vocalização, acabou não acontecendo. Em compensação, os programadores fizeram a festa com duas ótimas recriações da seara pop, ambas de inequívoco sabor latino reforçado pelas orquestrações de Bob James: “Corazón”, de Carole King, com o nosso Rubens Bassini usando até cuíca, enquanto Phil Kraus ataca de marimba, e “You’ve got it bad girl”, de Stevie Wonder, movida a congas e agogôs, com Richard Tee no piano elétrico Rhodes.

Crawford e James usaram a mesma fórmula no disco seguinte, “Don’t you worry ‘bout a thing”, inclusive novamente valendo-se do sucesso de Stevie Wonder. Mas na época da gravação do quinto álbum, o cenário musical americano ensaiava uma grande mudança. A “disco-music” iniciava seu reinado, e “I hear a symphony” mostrou Creed Taylor apostando no modismo. Nada que Hank não quisesse ou pudesse encarar, ainda mais com o timaço recrutado para a empreitada: Gary King no baixo, Steve Gadd e Bernard Purdie nas baterias, Richard Tee revezando com Leon Pendarvis nos teclados, Eric Gale na guitarra e Ralph McDonald na percussão, além de sopros & cordas. Desta feita, os arranjos foram entregues a David Matthews, de vasta experiência na banda de James Brown.

Autor de dois petardos sob medida para tomar de assalto as pistas de dança (“Madison” e “Hang it on the ceiling”) que deixaram os executivos da Kudu rindo à toa, Matthews também tratou de atualizar a faixa-título, estourada pelas meninas do grupo The Supremes em 1966, no apogeu da Motown. O próprio Crawford não fez por menos, compondo “Sugar free”, incendiário tema que parece saído de uma trilha de cop-show ao estilo de “Hawai 5-0” ou “Mannix”, com faiscantes riffs de metais. Outro petardo, “The stripper”, antecipa o score de David Shire para “Saturday night fever”, adotado como modelo exemplar na era da discoteca. Na sexta faixa, um refresco na forma de r&b para dançar coladinho: “Love won’t let me wait”, estouro de Major Harris que viria a entrar para a história como uma das melhores performances na discografia de Hank, exalando sensualidade. Para completar a sessão, a releitura de “Baby! This love that I have”, lançada pouco antes pela autora Minnie Ripperton no LP “Adventures in paradise” e agora revivida em clima de trip-hop pelo Desert Eagle Discs. A chama de Hank Crawford continua forte e luminosa, para tristeza dos invejosos e alegria dos liberais.

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