A caixa de todos os tempos e andamentos
Arnaldo DeSouteiro
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 19 de Setembro de 2003 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"
Com lançamento previsto para o dia 7 de Outubro nos Estados Unidos, a caixa de cinco CDs “For all time” capta o Dave Brubeck Quartet no auge da popularidade, entre 1959 e 65. Mais uma vez o selo Legacy, dirigido por Seth Rothstein, responsável por cuidar do acervo jazzístico da Sony/Columbia, capricha na embalagem. Textos minuciosas e fotos raras estão presentes no livreto, que esmiúça as circunstâncias em que foram concebidos os cinco discos da série “Time” em questão. Todos devidamente (muito bem) remasterizados, ampliando as freqüências e transparências sem o excesso de compressão que geralmente destrói nuances e sutilezas. Para deleite dos colecionadores, foram desencavadas faixas inéditas; as capas originais estão reproduzidas no encarte; e o melhor de tudo, cada disco ocupa um CD, sem a costumeira promiscuidade de faixas.
Complexidade rítmica
O carro-chefe, claro, é o álbum “Time out” (38m36s), que estourou puxado pela faixa “Take five” (o single chegou ao Top 25 e o álbum ao segundo lugar na parada pop da Billboard), tornando-se o primeiro LP de jazz a vender mais de um milhão de cópias e consagrando definitivamente Brubeck & Cia. O petardo, que virou item obrigatório em discoteca até de quem não é apaixonado por jazz, abre com outra música de grande popularidade, “Blue rondo a la turk”, uma aula de polirritmia em 9/8, aplicado na forma clássica de rondó, deixando de cabelo em pé os puristas que nada aceitavam fora do costumeiro 4/4. Um dos temas favoritos do tecladista Keith Emerson, já recebeu duas letras diferentes, gravadas por vocalistas de estilos tão diversos como Bette Midler, Al Jarreau e a cantora lírica Frederica von Stade. Mas o registro original de Brubeck permanece insuperável.
Vale lembrar que o disco, gravado entre junho e agosto de 59 nos estúdios da CBS na Rua 30, em NY, quase não saiu. “Eu havia quebrado três regras do meu acordo verval com a Columbia”, revela Dave. “Gravei apenas músicas inéditas, ignorando o pedido feito pela companhia para sempre incluir standards, eles achavam que as músicas eram todas em andamentos muito esquisitos sem apelo dançante, e para completar ainda tive a idéia de colocar uma pintura abstrata de Neal Fujita na capa, coisa que eles abominavam”. O departamento comercial ficou furioso e o caso foi parar nas mãos de Goddard Lieberson, o então todo-poderoso Presidente da CBS, que para surpresa geral amou o disco, autorizando seu lançamento. Mais: mandou que um single com “Take five” e “Blue rondo” fosse mandado imediatamente para as rádios. Ironicamente, o produto taxado de comercialmente inviável permanece um eterno best-seller, um dos disco mais vendidos na história do jazz ao lado de “Kind of blue”, de Miles Davis, coincidentemente gravado naquele mesmo ano para a mesma etiqueta.
“Take five” também catapultou Paul Desmond para a fama. Por mero acaso, já que ele escreveu a melodia quase que obrigado por Brubeck. “Eu inicialmente planejara a faixa como um solo do baterista Joe Morello em 5/4”, relembra o pianista. “Mas Paul sempre ficava se exercitando no sax enquanto Joe ensaiava. Então eu pedi a ele que escrevesse um tema naquele andamento. Ele hesitou, eu insisti, e no final acabou fazendo uma colagem das frases que praticava. Ninguém poderia imaginar o sucesso gigantesco que se sucedeu”. Sucesso tão grande que ofuscou as demais pérolas do disco. Jóias como “Strange meadowlark” (com uma lírica introdução de piano-solo), “Kathy’s Waltz” (perfeito veículo para Desmond destilar sua sensualidade acridoce), “Everybody’s jumpin’” (outro show de Morello, desta vez nas vassouras), o saltitante divertimento “Three to get ready” e um tema que parecia sob medida para Miles, “Pick up sticks”, mas que passou despercebido. Com as complexidades rítmicas jamais emperrando o swing.
Seqüência brilhante
De certa forma, “Time out” ofuscou todos os quatro discos seguintes da série “Time”. O não menos brilhante “Time further out” (47m28s) – gravado em maio e junho de 61 após a releitura de Brubeck para o musical “West side story” de Bernstein em 60 – virou “cult”, mas não vendeu um terço de “Time out” apesar do conceito semelhante, inclusive de arte gráfica. Trazia “Miro reflections” como subtítulo, por ser inspirado no trabalho do pintor espanhol. A faixa de abertura, “Kathy’s waltz” (recentemente recriada por Carlos Barbosa-Lima num arranjo para violão-solo elogiado por Brubeck) bastaria para justificar sua adoração. Porém, há muitos outros momentos notáveis: a corrosiva melancolia de “Bluette” (não confundir com a “Bluesette” de Toots), o 5/4 de “Far more drums” no qual Morello se supera num solo fumegante após diálogo com o piano percussivo do chefe, as surpreendentes mudanças de andamento em “Maori blues”, a doidinha “Unsquare dance” num tribal 7/4, e o estilizado “Bru’s boogie woogie”. Como bonus-tracks, a ultra-cool “Slow and easy” (também conhecida como “Lawless Mike”) e uma versão de “It’s a raggy waltz” ao vivo no Carnegie Hall em fevereiro de 63, com Dave arrancando aplausos no meio de seu eletrizante solo.
O som de tímpanos sinfônicos na introdução da faixa-título de “Countdown: time in outer space” (42m48s), dedicado ao astronauta John Glenn, que traz um quadro de Franz Kline na capa, mostra as saudáveis ambições de Brubeck nos idos de 62. Paul Desmond volta a atacar como compositor em “Eleven four”, clara tentativa de reprisar o sucesso de “Take five”. O baixista Eugene Wright (único negro no conjunto, nomeado Senador honorário pelo governo americano em 58) assina “Why Phillis waltz”. Dave entorta tudo na recriação de “Someday my prince will come” (já explorado no LP “Dave digs Disney” de 57, com outro baixista, Norman Bates), tema do filme “A branca de neve e os sete anões” que logo entraria também para o repertório de Miles. Morello dá mais um showzinho em “Castillian drums” usando as mãos durante o solo, e o conjunto encerra a viagem na auto-explicativa “Back to earth”. A faixa-bonus, “Fatha”, duo de piano & baixo, também dispensa explicações, mostrando mais uma vez o quanto o modernista Brubeck sempre fez questão de manifestar seu apreço por mestres do passado como Earl “Fatha” Hines, o primeiro virtuose do piano jazzístico.
“Time changes” (38m16s), captado entre dezembro de 63 e janeiro de 64, abre com Brubeck (sem Desmond) barbarizando em “Ibéria”, antecedendo a fenomenal “Unisphere”, já com o sax “Martini-seco” de Paul. O batera Morello aparece como autor em “Shim wa”, e, obviamente, tem direito a mais um solo. A turma mostra sua verve na atmosfera cinematográfica de “Cable car”. Dave provoca com o 13/4 de “World’s fair”. Mas a peça-central do álbum, cuja análise daria um livro, chama-se “Elementals”, ambiciosa criação de Brubeck na área da “third-stream music” unindo o quarteto a uma orquestra (de 45 integrantes) regida por Ray Moore. Esta retrospectiva se completa com o álbum “Time in” (46m30s), lançado em outubro de 65. Da vigorosa “Lost waltz” ao dolente “Travellin’ blues”, passando por “Softly, William, softly” (que deu um nova dimensão ao termo “improvisação melódica”), “He done her wrong” (adaptação do tema folk “Frankie and Johnny”), “Lonesome” e “Cassandra”, tudo flui as mil maravilhas, sem deixar transparecer os conflitos internos que levariam a dissolução do quarteto em dezembro de 67. Há três faixas extras: “Rude old man” (tema do baixista Wright), “Who said that?” e “Watusi drums”. Mas nem era preciso, tal a qualidade quantitativa dos álbuns originais. Clássicos porque atemporais. Atemporais porque clássicos.
Com lançamento previsto para o dia 7 de Outubro nos Estados Unidos, a caixa de cinco CDs “For all time” capta o Dave Brubeck Quartet no auge da popularidade, entre 1959 e 65. Mais uma vez o selo Legacy, dirigido por Seth Rothstein, responsável por cuidar do acervo jazzístico da Sony/Columbia, capricha na embalagem. Textos minuciosas e fotos raras estão presentes no livreto, que esmiúça as circunstâncias em que foram concebidos os cinco discos da série “Time” em questão. Todos devidamente (muito bem) remasterizados, ampliando as freqüências e transparências sem o excesso de compressão que geralmente destrói nuances e sutilezas. Para deleite dos colecionadores, foram desencavadas faixas inéditas; as capas originais estão reproduzidas no encarte; e o melhor de tudo, cada disco ocupa um CD, sem a costumeira promiscuidade de faixas.
Complexidade rítmica
O carro-chefe, claro, é o álbum “Time out” (38m36s), que estourou puxado pela faixa “Take five” (o single chegou ao Top 25 e o álbum ao segundo lugar na parada pop da Billboard), tornando-se o primeiro LP de jazz a vender mais de um milhão de cópias e consagrando definitivamente Brubeck & Cia. O petardo, que virou item obrigatório em discoteca até de quem não é apaixonado por jazz, abre com outra música de grande popularidade, “Blue rondo a la turk”, uma aula de polirritmia em 9/8, aplicado na forma clássica de rondó, deixando de cabelo em pé os puristas que nada aceitavam fora do costumeiro 4/4. Um dos temas favoritos do tecladista Keith Emerson, já recebeu duas letras diferentes, gravadas por vocalistas de estilos tão diversos como Bette Midler, Al Jarreau e a cantora lírica Frederica von Stade. Mas o registro original de Brubeck permanece insuperável.
Vale lembrar que o disco, gravado entre junho e agosto de 59 nos estúdios da CBS na Rua 30, em NY, quase não saiu. “Eu havia quebrado três regras do meu acordo verval com a Columbia”, revela Dave. “Gravei apenas músicas inéditas, ignorando o pedido feito pela companhia para sempre incluir standards, eles achavam que as músicas eram todas em andamentos muito esquisitos sem apelo dançante, e para completar ainda tive a idéia de colocar uma pintura abstrata de Neal Fujita na capa, coisa que eles abominavam”. O departamento comercial ficou furioso e o caso foi parar nas mãos de Goddard Lieberson, o então todo-poderoso Presidente da CBS, que para surpresa geral amou o disco, autorizando seu lançamento. Mais: mandou que um single com “Take five” e “Blue rondo” fosse mandado imediatamente para as rádios. Ironicamente, o produto taxado de comercialmente inviável permanece um eterno best-seller, um dos disco mais vendidos na história do jazz ao lado de “Kind of blue”, de Miles Davis, coincidentemente gravado naquele mesmo ano para a mesma etiqueta.
“Take five” também catapultou Paul Desmond para a fama. Por mero acaso, já que ele escreveu a melodia quase que obrigado por Brubeck. “Eu inicialmente planejara a faixa como um solo do baterista Joe Morello em 5/4”, relembra o pianista. “Mas Paul sempre ficava se exercitando no sax enquanto Joe ensaiava. Então eu pedi a ele que escrevesse um tema naquele andamento. Ele hesitou, eu insisti, e no final acabou fazendo uma colagem das frases que praticava. Ninguém poderia imaginar o sucesso gigantesco que se sucedeu”. Sucesso tão grande que ofuscou as demais pérolas do disco. Jóias como “Strange meadowlark” (com uma lírica introdução de piano-solo), “Kathy’s Waltz” (perfeito veículo para Desmond destilar sua sensualidade acridoce), “Everybody’s jumpin’” (outro show de Morello, desta vez nas vassouras), o saltitante divertimento “Three to get ready” e um tema que parecia sob medida para Miles, “Pick up sticks”, mas que passou despercebido. Com as complexidades rítmicas jamais emperrando o swing.
Seqüência brilhante
De certa forma, “Time out” ofuscou todos os quatro discos seguintes da série “Time”. O não menos brilhante “Time further out” (47m28s) – gravado em maio e junho de 61 após a releitura de Brubeck para o musical “West side story” de Bernstein em 60 – virou “cult”, mas não vendeu um terço de “Time out” apesar do conceito semelhante, inclusive de arte gráfica. Trazia “Miro reflections” como subtítulo, por ser inspirado no trabalho do pintor espanhol. A faixa de abertura, “Kathy’s waltz” (recentemente recriada por Carlos Barbosa-Lima num arranjo para violão-solo elogiado por Brubeck) bastaria para justificar sua adoração. Porém, há muitos outros momentos notáveis: a corrosiva melancolia de “Bluette” (não confundir com a “Bluesette” de Toots), o 5/4 de “Far more drums” no qual Morello se supera num solo fumegante após diálogo com o piano percussivo do chefe, as surpreendentes mudanças de andamento em “Maori blues”, a doidinha “Unsquare dance” num tribal 7/4, e o estilizado “Bru’s boogie woogie”. Como bonus-tracks, a ultra-cool “Slow and easy” (também conhecida como “Lawless Mike”) e uma versão de “It’s a raggy waltz” ao vivo no Carnegie Hall em fevereiro de 63, com Dave arrancando aplausos no meio de seu eletrizante solo.
O som de tímpanos sinfônicos na introdução da faixa-título de “Countdown: time in outer space” (42m48s), dedicado ao astronauta John Glenn, que traz um quadro de Franz Kline na capa, mostra as saudáveis ambições de Brubeck nos idos de 62. Paul Desmond volta a atacar como compositor em “Eleven four”, clara tentativa de reprisar o sucesso de “Take five”. O baixista Eugene Wright (único negro no conjunto, nomeado Senador honorário pelo governo americano em 58) assina “Why Phillis waltz”. Dave entorta tudo na recriação de “Someday my prince will come” (já explorado no LP “Dave digs Disney” de 57, com outro baixista, Norman Bates), tema do filme “A branca de neve e os sete anões” que logo entraria também para o repertório de Miles. Morello dá mais um showzinho em “Castillian drums” usando as mãos durante o solo, e o conjunto encerra a viagem na auto-explicativa “Back to earth”. A faixa-bonus, “Fatha”, duo de piano & baixo, também dispensa explicações, mostrando mais uma vez o quanto o modernista Brubeck sempre fez questão de manifestar seu apreço por mestres do passado como Earl “Fatha” Hines, o primeiro virtuose do piano jazzístico.
“Time changes” (38m16s), captado entre dezembro de 63 e janeiro de 64, abre com Brubeck (sem Desmond) barbarizando em “Ibéria”, antecedendo a fenomenal “Unisphere”, já com o sax “Martini-seco” de Paul. O batera Morello aparece como autor em “Shim wa”, e, obviamente, tem direito a mais um solo. A turma mostra sua verve na atmosfera cinematográfica de “Cable car”. Dave provoca com o 13/4 de “World’s fair”. Mas a peça-central do álbum, cuja análise daria um livro, chama-se “Elementals”, ambiciosa criação de Brubeck na área da “third-stream music” unindo o quarteto a uma orquestra (de 45 integrantes) regida por Ray Moore. Esta retrospectiva se completa com o álbum “Time in” (46m30s), lançado em outubro de 65. Da vigorosa “Lost waltz” ao dolente “Travellin’ blues”, passando por “Softly, William, softly” (que deu um nova dimensão ao termo “improvisação melódica”), “He done her wrong” (adaptação do tema folk “Frankie and Johnny”), “Lonesome” e “Cassandra”, tudo flui as mil maravilhas, sem deixar transparecer os conflitos internos que levariam a dissolução do quarteto em dezembro de 67. Há três faixas extras: “Rude old man” (tema do baixista Wright), “Who said that?” e “Watusi drums”. Mas nem era preciso, tal a qualidade quantitativa dos álbuns originais. Clássicos porque atemporais. Atemporais porque clássicos.
Legenda:
Caixa capta o ápice do Dave Brubeck Quartet, reunindo os cinco discos da série “Time”
Caixa capta o ápice do Dave Brubeck Quartet, reunindo os cinco discos da série “Time”
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