Tuesday, May 22, 2007

Coletâneas relembram figuras célebres do jazz


Coletâneas relembram figuras célebres do jazz
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 3 de Outubro de 2003 e originalmente publicado no jornal "Tribuna da Imprensa"

Em tempo de crise que se agrava a cada dia, nem os departamentos de jazz e música clássica – geralmente os menos atingidos por representarem uma fatia mínima do mercado, além de se destinarem a um tipo de público que desconhece recessão – escapam de cortes de orçamento. Enquanto dispensam artistas vivos, reduzindo drasticamente o número de novos projetos, as gravadoras aumentam na mesma proporção a quantidade de coletâneas, geradas a baixo custo e com garantia de lucro imediato. Na mais recente safra que desembarca no mercado destacam-se uma caixa retrospectiva de Count Basie, e compilações focalizando J.J. Johnson, Shirley Scott, John Coltrane e Art Tatum.

Máquina de swing

Apelidada de “requintada máquina de swing”, a orquestra de William “Count” Basie mudou para sempre o padrão das big-bands a partir de meados dos anos 30. A caixa “America’s # 1 Band – the Columbia years”, organizada pelo veterano produtor Orrin Keepnews para o selo Sony/Legacy, reúne nada menos que 90 faixas em quatro CDs, cobrindo o período 1936-1951 de gravações memoráveis para a Columbia. A ausência do termo “Big” no título da caixa permite que o primeiro CD seja devotado à pequenas formações batizadas de Basie’s Bad Boys (incluindo um fascinante “Love me or leave me”), Kansas City Seven (destacando o tenorista Lester Young, autor da auto-referenciada “Lester leaps in” no antológico registro de 1939), Count Basie & His All-American Rhythm Section (devotada ao blues presente em todos os títulos das oito músicas selecionadas, não faltando “St. Louis blues”) e até raríssimas faixas originalmente lançadas em 1936 nos bolachões quebráveis de 78 rotações sob o nome de Jones-Smith Inc., já destacando o saltitante piano econômico do Conde em “Oh, lady be good”.

No segundo CD, as chamadas “small group recordings” continuam marcando presença através do Count Basie Octet impecável em jóias tipo “These foolish things”, “I’m confessin’ that I love you” e a harmonicamente muito à frente de seu tempo “I’ll remember April”. As últimas 15 faixas do CD 2 e todas as 23 do CD 3 já captam a formação completa de big-band da Count Basie Orchestra, cujos arranjadores sabiam preparar scores maravilhosos sem por a perder a espontaneidade e a saliência da seção rítmica, como mostram “It’s sand, man”, “Somebody stole my gal”, “One o’clock jump”, “Little pony” e o petardo “Rambo”. O CD 4 é exclusivamente dedicado a registros ao vivo, sendo 19 deles inéditos, provenientes de shows no lendário clube Famous Door (localizado na não menos famosa Rua 52, em Manhattan), no Savoy Ballroom (indo da balada “Darn that dream” à pauleira de “I got rhythm”) e por fim, em 1941, no Cafe Society Uptown, fechando a tampa com o incendiário “Jumpin’ at the Woodside”. Além dos grandes solistas de apelidos notórios (Pres, Buck, Sweets, Dickie etc), aparecem cantores do porte de Jimmy Rushing, Helen Humes e até Billie Holiday.

Mestres dos sopros

Focalizando o trombonista-mor do bebop – aquele que fez pela evolução da linguagem deste instrumento o mesmo que Parker fez pelo sax-alto – “The J.J. Johnson memorial album” junta 16 faixas gravadas para diversos selos hoje pertencentes ao acervo da Fantasy Records. Em algumas delas, Johnson exibe sua extraordinária fluência na condição de “sideman” de Coleman Hawkins (“I mean you” num registro de 1946), Miles (“Blue ‘n’ boogie”, do célebre LP “Walkin’” de 1957), Benny Golson (“Hymn to the Orient”, também de 57) e Count Basie (“Jaylock”, quando o produtor Norman Granz reviveu o Kansas City Seven em 1980 na etiqueta Pablo). Há momentos da insuperável dupla com Kai Winding (“Bag’s groove”), do quarteto de trombones com Kai, Bennie Green e Willie Dennis (“Chazzanova”, instigante balada de Mingus, talvez a obra-prima do CD) e ótimas gravações dos anos 70 e 80: “Horace” (ao vivo no Japão, com Billy Childs no piano elétrico), as faixas-título dos LPs “Pinnacles” (liderando um timaço com Tommy Flanagan, Ron Carter, Billy Higgins e Joe Henderson) e “Concepts in blue”, encontros com Oscar Peterson e Al Grey, além de duos com Joe Pass. Estranhamente, o texto de Harvey Peaker no livreto não menciona o suicídio de Johnson em 2001, aos 76 anos.

Outros dois mestres, de maior popularidade, são objeto de coletâneas românticas preparadas por Richard Seidel para a Prestige, naquela base de “jazz para quem não gosta de jazz”, que costuma funcionar comercialmente. “Miles Davis plays for lovers” traz entre as 12 faixas as conhecidíssimas gravações de “My funny valentine”, “Easy living”, “In your own sweet way”, “Round midnight”, “Nature boy” realizadas no estúdio do mago Van Gelder entre 1954 e 56, ao lado de nomes como Mingus, Coltrane, Horace Silver, Elvin Jones e Max Roach. Também sem surpresas, indicado apenas para neófitos que não possuem os álbuns originais, “John Coltrane plays for lovers” abriga as pérolas “Invitation”, “Lush life”, “Like someone in love” e a hors-concours “Violets for your furs”. No apoio, os craques Mal Waldron, Donald Byrd, Red Garland e Paul Chambers, entre muitos outros.

Voz e teclas

Mais atraentes são as compilações dedicadas a Ella Fitzgerald, Shirley Scott, Art Tatum e Bud Powell. “The best of the concert years”, fruto de shows idealizados pelo produtor/empresário Norman Granz na célebre padronagem “Jazz at the philharmonic”, começa com Ella esbanjando swing (“Night and day”, “Little white lies”) acompanhada pelo Tommy Flanagan Trio em 72. Retrocede aos idos de 53, com a cantora privilegiando baladas (“Body and soul”, “My funny valentine”) num show em Tokyo, em 53. Pula para 1967 em NY, com o trio do saudoso pianista Jimmy Jones (“It’s only a paper moon”, “Day dream”) e avança para 1983, novamente no Japão, mas agora com outro pianista, o apenas competente Paul Smith, enlouquecendo a platéia nipônica com “Blue moon” (brilhantemente revivida por Tanita Tikaram & Mark Isham nos anos 90) e “All of me”, que a blefista Luciana Souza não teve vergonha de assassinar no recente “North and south”.

Conhecida durante muito tempo como “a esposa de Stanley Turrentine”, a excelente organista Shirley Scott ganha em boa hora uma ótima retrospectiva, atraente especialmente porque a maior parte de seus álbuns está fora de catálogo. Os desempenhos nas 14 faixas (do período 1958-64, quando pertencia ao cast da Prestige) mostram que o título “Queen of the organ” não é um exagero, valendo destacar o standard “It could happen to you”, a negligenciada “The moon of Manakoora”, um balaço de Sonny Rollins chamado “Sonnymoon for two”, “Señor blues” (de um LP dedicado à obra de Horace Silver), “Solar” (com Kenny Burrell estraçalhando no tema de Miles) e “Five after dark”, tema de Benny Golson recriado em uma das muitas sessões divididas com o marido Turrentine, tenorista sub-valorizado pelos “jazz snobs” pesudo-intelectualizados. Convém lembrar que Shirley era um caso raro de organista que preferia tocar com baixistas (em especial com George Duvivier, seu sideman mais freqüente) ao invés de usar a pedaleira do Hammond B-3, ficando assim livre para concentrar-se no teclado, improvisando com extrema desenvoltura e notável senso de dinâmica.

Por fim temos Art Tatum, figura obrigatória em qualquer lista respeitável dos dez maiores pianistas da história do jazz. “The best of the complete Pablo group masterpieces” pesca 12 das 80 faixas pertencentes à uma caixa de 6 CDs previamente lançada pelo selo Pablo. Virtuose acusado de não saber tocar “em grupo” por invejosos caluniadores, quando na verdade o que acontecia era que a maioria dos músicos morria de medo de tocar com o pianista, tal a sua genialidade, Tatum mostra o quanto rendia quando estimulado por jazzmen de primeira grandeza como Benny Carter, Louie Bellson, Buddy DeFranco, Red Callendar, Barney Kessel, Buddy Rich e Lionel Hampton. No cardápio, registrado entre 1954 e 56, merecem especial atenção as releituras de “Memories of you”, da esquecida “Under a blunket of blue” e do standard “Just one of those things”, em versão de tirar o fôlego. Alucinante.

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