Monday, June 11, 2007

Flora Purim: "Flora É M.P.M." - Japan


Flora Purim: “Flora É MPM” [Japan] (2002)
Reissue Produced by Arnaldo DeSouteiro
Artist: Flora Purim
Genre: Jazz, Brazilian Jazz
CD Release Date: June 26, 2002
Total Time: 45:48
Label: BMG Victor
Catalog Number: 37311

Liner Notes written by Arnaldo DeSouteiro:

Apreciador da boa música, atenção! Corra em busca de “Flora é M.P.M.” até a boa loja mais próxima ou compre agora mesmo pela internet, sem precisar sair de casa. Rápido! Afinal, pode ser a sua última chance de conhecer o primeiro álbum da primeira (e até hoje única) brasileira a ser eleita a melhor cantora de jazz do mundo pela Down Beat. Por que a pressa? Bem, não custa explicar. O LP original saiu em 1964, foi mal distribuído (essa história não é nova não) e ficou poucos meses em catálogo. Lembro que levei quase duas décadas até conseguir meu exemplar, em péssimo estado, no saudoso sebo Discadoro, em Copacabana. Pois este discaço demorou 37 anos até ser relançado em CD, por insistência minha junto à BMG, quando fui convidado para produzir algumas reedições para a série “RCA 100 Anos de Musica”, em 2001.

A pequena tiragem inicial (3 mil cópias) esgotou rapidamente pelo mundo, deixando os retardatários à beira da loucura. Afinal, este histórico álbum tem sido objeto da cobiça de colecionadores durante décadas. No início da onda acid-jazz, em fins dos anos 80, chegou a custar 600 dólares nos sebos de Londres, onde acabou pirateado pelo selo Rare Brazil. Comprei outro exemplar em vinil, em 1996, na HMV de Tóquio. Mas as minhas tentativas de reeditar o LP em CD – a primeira delas remonta a 1982, quando produzi o primeiro disco da irmã de Flora, Yana Purim, para a RCA – nunca surtiram efeito. Uma situação absurda, quase surreal, pois nem mesmo na época áurea de Flora, em meados dos anos 70, quando seus LPs para a Milestone eram prensados no Brasil pela RCA, a gravadora havia se interessado em tirar do limbo tão importante registro.

Eram contraditórias as informações sobre as fita matrizes. Corriam boatos de que estariam irremediavelmente danificadas. Outros funcionários, para cortar de cara a conversa, garantiam que o master estava desaparecido. A luz no fim do túnel começou a piscar em 2000, quando aceitei o convite, da BMG alemã, feito através da empresária Cristina Ruiz-Kellersmann, para produzir compilações do acervo de bossa nova da RCA. Solicitei a liberação de duas faixas de “Flora é M.P.M.” e, por milagre, ambas foram encontradas. Era a prova de que as fitas originais ainda existiam. Finalmente, em 2001, Adriana Ramos, então responsável pelo departamento de marketing estratégico da BMG no Brasil, deu sinal verde para o relançamento em CD. Meu antigo endereço de e-mail constava do encarte e, por conta disso, recebi dezenas de mensagens de agradecimento enviadas dos quatro cantos do planeta.


Disco histórico

Afinal, basta o primeiro fraseado de Flora Purim, na introdução da faixa de abertura (“Morte de um Deus de sal”), para comprovar que Flora Purim cantava de um modo completamente diferente de todas as outras cantoras da época. Quase nenhuma influência nem mesmo das intérpretes que admirava, como Sylvia Telles, Alaide Costa e Maysa. Nada da inexpressividade de Nara Leão, equivocadamente considerada “musa” da bossa nova por quem ainda hoje tenta vender a idéia de um “movimento nascido nos apartamentos de Copacabana”, ao invés de entender (e aceitar) a bossa como criação espontânea do baiano João Gilberto. Ou seja: Flora realmente já fazia, em setembro de 1964, data da gravação deste “Flora é M.P.M.”, a Música Popular Moderna originária da sigla estampada no título do hoje histórico LP.

Como o cantar de Flora não se encaixava nos padrões vigentes, o disco foi execrado pela maioria dos críticos. Os mais cordatos apenas trataram de ignora-lo. Nada muito diferente da agressividade manifestada, na década seguinte, após a definitiva consagração internacional da artista, eleita “cantora revelação” pelos críticos da Down Beat – a Bíblia do jazz – em 1974. Naquele mesmo ano, os leitores da mesma revista apontaram a brasileira como a melhor cantora de jazz do mundo, à frente de Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Carmen McRae e Betty Carter! Proeza que, para desespero dos puristas, se repetiu por cinco anos, com um impacto comparável somente ao de Billie Holiday nos anos 40, segundo atestou o historiador Leonard Feather em célebre artigo no jornal Los Angeles Times. Uma fase de sucesso que durou até a chegada da onda retrô, pregada por Wynton Marsalis e seus neo-boppers, que trouxeram de volta ao jazz o conservadorismo, o academicismo e, pior de tudo, o racismo (agora contra os brancos...)

Trajetória brilhante

Filha do romeno Naum Purim (violinista amador, fã de Stephane Grappelli, companheiro de Fafá Lemos e Djalma Ferreira em serestas no bairro do Catete) com a pernambucana Rachel (pianista que incutiu na filha o amor pelo jazz), a carioca Flora nasceu (em 6 de março de 1942) e cresceu ouvindo Erroll Garner, Art Tatum, Oscar Peterson e Thelonious Monk. Dos 8 aos 12, estudou piano clássico. Depois, violão com Oscar Castro-Neves. Ainda adolescente, formou, ao lado da irmã Yana, um conjunto vocal que tinha Luiz Eça, então ilustre desconhecido, como arranjador. Casou-se com o psicanalista Ary Band, tiveram uma filha, Niura, e, para alívio da família, Flora passou apenas a sonhar com música. Até conhecer, numa visita ao Bottle’s Bar, no Beco das Garrafas, o já famoso baterista Dom Um Romão.

A paixão avassaladora fez a cantora romper o casamento – para tristeza da tradicional comunidade judaica - e instalar-se com sonhos & bagagens no apartamento de Dom Um na Rua Domingos Ferreira, no coração de Copacabana. Certa noite, inconformado, o pai de Flora chegou, armado, ao Bottle’s Bar, disposto a acabar com a vida do músico. Por sorte, errou o tiro. Mas não sossegou até internar a filha para fazer sonoterapia, com a esperança de que esquecesse “aquele negro”. Não adiantou. E foi no meio de toda essa turbulência que a moça, depois de um período como crooner da orquestra do Maestro Cipó, conseguiu – por intermédio de Romão e do jornalista Sergio Porto (vulgo Stanislaw Ponte Preta, que assinou o texto de contracapa do LP) – um contrato com a RCA. Em três sessões, em setembro de 64, sob a supervisão de Dom Um (embora os créditos de produção tenham ido para os executivos Paulo Rocco e Roberto Jorge), gravou material suficiente para um LP e um compacto-duplo. Tudo isso reunido na reedição em CD, junto com alternates takes – totalmente inéditos – das músicas “Gente” e “Preciso aprender a ser só”.


Timaço de músicos

“Flora É M.P.M” conta com um dream-team de arranjadores (Cipó, Luiz Eça, Waltel Branco, Osmar Milito, Paulo Moura) e músicos. Para início de conversa, Dom Um convocou seus colegas do Copa Trio: o pianista Dom Salvador (ainda chamado de Salvador Filho) e o baixista Manuel Gusmão. Grupo que, sob a liderança do saxofonista João Theodoro Meirelles, e reforçado pelo trompetista Pedro Paulo, se transformaria no Copa 5, força-motriz do “Samba esquema novo” de Jorge Ben. Meirelles e Pedro Paulo também foram convocados para o disco de Flora, integrando uma big-band com três trompetes (Pedro, Hamilton e Formiga), quatro trombones (Norato, Raul de Souza, Macaxeira, Pala) e seis saxofones (Paulo Moura no sax-alto, Cipó e Meirelles nos tenores, Netinho, Sandoval e Aurino Ferreira nos barítonos).

No repertório do LP, cinco temas da peça “Pobre menina rica”, de Lyra & Vinicius (“Cartão de visita”, “Sabe você”, “Maria moita”, “Samba do carioca”, “Primavera”), três canções de um rapaz que ainda assinava como Eduardo Lobo (“Definitivamente”, “Reza”, “Borandá”), duas parcerias de Menescal & Boscôli (“A morte de um Deus de sal”, “Nem o mar sabia”), e uma composição do hoje esquecido Waldyr Gama (“Se fosse com você”). No compacto, duas dos irmãos Marcos & Paulo Sergio Valle (“Preciso aprender a ser só”, “Gente”), uma de Wilson Simonal & José Luiz (“Jeito bom de sofrer”) e também uma de Lyra & Boscoli (“Barquinho de papel”).

Flora abre os trabalhos com o trio de base acrescido pelas congas de Rubens Bassini no 6/8 de “A morte de um Deus de sal”, abrindo espaço para impecável solo do trombonista Raul de Souza, futuro colega da cantora em jam-sessions no lendário João Sebastião Bar, em São Paulo. Na sequência, o naipe de sopros aparece entortando tudo no arranjo de Paulo Moura para “Cartão de visita”, enquanto Dom Um se esbalda executando as famosas cruzadas de baquetas no aro da caixa, sua marca-registrada. Rosinha de Valença entra em cena com seu violão de balanço classudo em “Sabe Você”, precedendo as engenhosas dissonâncias elaboradas por Luiz Eça em “Definitivamente”. Os metais balançam de forma explosiva, sob a batuta de Cipó, na obscura “Se fosse com você”, marcada por alternâncias de andamento.

Climas de samba-jazz

O fagote de Airton Lima e o clarinete de Paulo Moura alinhavam a introdução de “Maria moita”, bordada pelo piano de Osmar Milito – também incluindo uma passagem demencializante de bateria –, enquanto um clima afro-cubano, evocativo dos scores de Lalo Schifrin para Dizzy Gillespie, prepara a provocativa versão de “Hava Nagila”, tradicional tema judaico. As tumbadoras de Bassini & Jorge Arena, colegas de Dom Um na formação original do supergrupo Os Catedráticos, de Eumir Deodato, estabelecem o groove de “Reza”, antes dos metais voltarem com carga máxima no arranjo de Waltel Branco para “Samba do carioca”. Reduzindo a voltagem, Flora confere irretocável tratamento, balizado pelo violão de Rosinha, a “Primavera”, extirpando qualquer ranço do sentimentalismo barato presente nas melodramáticas interpretações que volta e meia destroem a canção. A flauta de Jorginho (Jorge Ferreira da Silva) segue tecendo comentários em “Borandá” e no 5/4 baloiçante de “Nem o mar sabia”.

Passando para as músicas que “sobraram” para o compacto, novamente Waltel arrasa na orquestração diabólica para “Jeito bom de sofrer” (lançada meses antes por Simonal em seu segundo LP, “A nova dimensão do samba”), com base e sopros em perfeita comunhão. Uma seção de cordas, comandada por Luiz Eça, enfatiza o sutil romantismo de “Preciso aprender a ser só” (faixa incluida na coletânea “Focus on Bossa Nova”, agora também em alternate take) e “Barquinho de papel” (chance para Flora explorar seus belos graves), contrastando com o irresistível balanço samba-jazz da politicamente engajada “Gente”, ouvida em duas versões. A mais “bem acabada”, redescoberta na minha compilação “Focus on brazilian music grooves”, não dispensa o grito de “s’imbora” a la Simonal. Mas a originalmente desprezada, até então totalmente inédita, também tem lá sua graça, apesar de eventuais descompassos da base, permitindo a Flora esboçar sensual scat.

Na verdade, amostras de um talento ainda em fase de aperfeiçoamento, que atingiria sua maturidade nos Estados Unidos, para onde Flora mudou-se em 1967, já com novo amor no coração e na música, o percussionista Airto Moreira. Juntos, integraram a banda de Gil Evans e o grupo Return To Forever, de Chick Corea. Gravaram com Carlos Santana, Duke Pearson, Cannonball Adderley e Lee Oskar. Contratada pela Milestone Records em 73, enquanto Airto brilhava na CTI, Flora gravou seis excepcionais álbuns produzidos por Orrin Keepnews. Jóias do quilate de “Butterfly dreams”, “Stories to tell” e “500 miles high at Montreux”. Depois de cumprir pena por porte de drogas, assinou contrato milionário com a Warner em 76. Nos anos 80, passou pelos selos Concord e Virgin, enveredou pela world-music (com seu grupo Fourth World) e pelo acid-jazz (“Speed of light”) em sessões para a companhia inglesa B&W nos anos 90. Atualmente pertence ao cast do selo Narada Jazz. Em termos discográficos, “Flora é M.P.M.” representa o marco inicial de tão brilhante trajetória, ainda soando moderno e fascinante quarenta e dois anos depois de sua gravação.

2 comments:

J. said...

Lhe devo minha imensa gratidão por essa magnífica resenha e meu excelentíssimo parabéns por tê-la escrito.

acridoce said...

Arnaldo o vovo nasceu numa vila russa, separada da Romenia por um rio...
Bjs DB