As artes do trio
[ 13.Nov.2001 ]
Paulo Roberto Pires
A trio é a grande arte do jazz. Não por acaso, Brad Mehldau, o mais inventivo dos pianista da nova safra, batizou a série que até agora é a principal de sua carreira como “A arte do trio” – cujo volume cinco, “Progressions”, acaba de ser lançado. Quando a bossa nova se descobriu jazz (inventando o samba-jazz) nas míticas boates do Beco das Garrafas também não foi por um acaso que floresceram formações como Bossa Três, Jongo Trio, Tamba Trio, Rio 65, Zimbo Trio, Sambalanço Trio e tantos outros que desapareceram na fumaça do Bottle’s. A vertente mais fértil da série “RCA – 100 anos de música” permite rever o percurso desta formação nas carreiras do fundamental e fundador Tamba Trio (criado no início da década de 60 mas aqui pego em suas derradeiras gravações, já dos 70), do Trio 3D e no atípico “Mário Castro Neves & Samba S. A.”, um trio de cinco.
Neste lote de relançamentos, o modelo mais clássico e também menos conhecido do trio é o excelente 3D. Nascido nos bastidores de “Pobre Menina Rica”, o musical de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, o grupo formado pelo piano de um Antonio Adolfo ainda menino (17 anos) e escoltado pelo Argentino Cacho Pomar (baixo) e por Nelson Serra (bateria) gravou os dois álbuns que saem agora, “Tema” (1964) e “O Trio 3D Convida” (1965) – outros dois sairiam com o nome Conjunto 3-D, desfeito em 1968.
Contando com participações eventuais de Arisio (violão), Claudinho (pistom) e do feríssima Dom Um Romão (bateria), “Tema” esbanja vitalidade em 12 faixas rigorosamente incendiárias que envelheceram rigorosamente nada – com exceção dos vocais de Cacho em “O amor em paz” e “Fly me to the moon”, mas aí os tropeços vão para a conta de uma doce nostalgia de músicos “da noite”. O repertório é o padrão para os grupos da época: standards da bossa nova (“Garota de Ipanema”, “ Consolação”, “A morte de um deus de sal”, “Samba de uma nota só”) alinhadas com músicas próprias (“Tema 3-D”) ou de outros grupos instrumentais que se tornariam, elas próprias, clássicos do samba-jazz como “Clouds” (Durval Ferriera/Mauricio Einhorn). Além de excepcional pianista, Antonio Adolfo assina os intricados arranjos do trio, que no disco seguinte teria como “convidados” ninguém menos que Raul de Souza e Maciel (trombones), Paulo Moura e J. T. Meirelles (saxes) e Eumir Deodato (arranjos), ampliando ainda mais os horizontes musicai so grupo.
O contrabaixista Novelli é o elo perdido entre o 3-D e o grupo de Mário Castro Neves, pianista que vem do clã formado pelos irmãos Iko, Oscar e Pedro Paulo com extensos serviços prestados à música brasileira. Antes de ocupar o lugar de Cacho no grupo de Antonio Adolfo, Novelli formou com Mário, o baixista Normando e as vocalistas Thaís do Amaral e Biba. Trio de cinco? Explico: na trilha aberta pelo Tamba e pelo Jongo, os vocais tinham importância de instrumento, a despeito, com lembra Arnaldo DeSouteiro em seu encarte, dos que achavam que os Cariocas não deveriam tocar e o Tamba não deveria cantar. Conceitualmente, “Mário castro neves & Samba S. A.” é, portanto, um disco de trio.
Uma ouvida rápida nas 12 faixas originais (e três bônus, inéditas) dá para entender porque “Samba S. A.” (1967) virou cult, principalmente no circuito do acid jazz. Esta que é única gravação de Mário no Brasil – desde os anos 70 ele vive nos EUA, como informa o utilíssimo encarte de Souteiro – nasceu de encomenda da RCA pensando no mercado externo, o que explica “Amazonas” (João Donato) e outras faixas e inglês e, principalmente, a experimentação de ritmos e harmonias a partir da base do trio. São irresistíveis “Candomblé”, “E nada mais” e “A morte de um deus de sal”: pancadaria na percurssão e suavidade nos vocais, radicalizando um pouco o Sérgio Mendes do Brasil 66 na medida em que o aproxima do hard bop do samba-jazz.
Oficialmente, o Tamba Trio viveu de 62 a 92. Nestes 30 anos, foi muitos a partir da formação original Luiz Eça (piano), Bebeto Castilho (baixo, flauta e sax) e Hélcio Milito (percussão). Entre idas e vindas – como a brilhante formação do Tamba 4, que nos EUA resultou nos álbuns “We and the sea” (1967) e “Samba blim” (1968) – os discos que saem agora são oficialmente os últimos de sua carreira: “Tamba” (1974) e “Tamba Trio” (1975). Juntos, os álbuns são, sem dúvida alguma, documento da inquietação de músicos geniais, em busca de novas sonoridades para o som do Beco.
“Tamba” é literalmente uma viagem. É tão anos 70 quanto os anteriores são anos 60. A questão é saber o que envelheceu de fato. Aposto nos 70 sem medo de parecer saudosista. O tempo não segura as digressões sintetizadas (em fenders e moogs vovôs dos teclados) dos arranjos de Luizinho, mas mesmo em seus momentos menos felizes ele é mais genial do que a maioria dos músicos de sua época. E tem grandes momentos em “Não tem perdão”, no piradíssimo “Mestre Bimba” e “O homem”, bem como no estilizado medley de sambas (“Pra machucar meu coração”, “Rosa Maria” e “Não tenho lágrimas”). A última faixa, “Infinito”, é uma boa medida do disco: sobre uma improvisação coletiva, conta-se: 1, 2, 3, 4... (reticências necessárias)
O “Tamba” de 1975 é ainda mais radical nos elementos eletrônicos – que definitivamente não funcionam bem. Mas absoluta sofisticação do trio diz presente em “Olha Maria”, no “Chorinho nº1” de Durval Ferreira e nas participações de Toninho Horta solando as suas “Sanguessuga” e “Beijo partido”. Mas tudo isso, que pode parecer depreciativo, tem um sentido muito, mas muito interessante: o Tamba jamais se rendeu ao próprio prestígio e, até o fim, fez da invenção um valor fundamental. O que não é pouco, nem corriqueiro.
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