Monday, September 10, 2007

"Sivuca & Rosinha de Valença" - review by Arthur Dapieve


Review about the CD reissue of "Sivuca & Rosinha de Valença" (reissue produced by Arnaldo DeSouteiro) written by Arthur Dapieve on November 26, 2001, and originally printed on the website "No Mínimo"


A magia do quero-mais

Arthur Dapieve
[ 26.Nov.2001 ]


A tentação é grande. E, como quase toda tentação, inatingível. E, como todas elas, de uma maneira ou de outra, sem exceção, irresistível. Por isso, cedo. No momento, porém, a minha é até bastante humilde: dizer que "Sivuca & Rosinha de Valença – Gravado ao vivo – Espetáculo das Seis e Meia, Teatro João Caetano, Rio" é o melhor de todos os muitos discos de música brasileira remasterizados digitalmente que as gravadoras puseram nas lojas neste 2001. Isso mesmo. Não apenas os da ótima série "RCA – 100 anos de música", na qual este CD se abriga, mas os de todas as outras. E olhe que estamos, ou estivemos, falando de Os Cobras, Raulzinho, Tamba Trio, Trio 3D, Cartola, Jorge Veiga... Mas o breve (menos de 37 minutos) registro do show de duas horas de duração do multinstrumentista paraibano e da violonista fluminense, realizado de 9 a 13 de maio de 1977, no espaçoso teatro da Praça Tiradentes, Centro do Rio de Janeiro, tem qualquer coisa de mágico.

Atualização de um LP hoje disputado a tabefes por colecionadores, o disco é objetivamente muito mais de Sivuca do que Rosinha. Como ela era contratada da EMI-Odeon, pôde tornar-se protagonista de apenas uma faixa ("Tema do boneco de palha") das oito selecionadas pelo produtor Sérgio Cabral no meio do caudaloso roteiro de 27, idealizado pelo falecido Albino Pinheiro e que está impresso no encarte do CD – apenas para nos pôr a sonhar quão bom seria haver um álbum com a íntegra do espetáculo. Ficaram de fora, por exemplo, "Consolação", de Baden Powell, e "Brasileirinho", de Waldir Azevedo. O papel secundário a que Rosinha foi reduzida pela picuinha entre as gravadoras é tanto mais lamentável quando se sabe que a mesma coleção da RCA repôs em circulação "Rosinha de Valença apresenta Ipanema Beat", um constrangedor disco gravado na África do Sul, em 1970. Nele, Rosinha estréia uma nova guitarra elétrica ("Belinha") e toca coisas como "Je t'aime moi non plus", de Serge Gainsbourg, e "A whiter shade of pale", de Keith Reid, do grupo inglês de rock progressivo Procol Harum, à frente de um quarteto que, até pelo órgãozinho, não faria feio numa churrascaria – de carne de zebra, antílope e girafa.

Como destaca o crítico Arnaldo DeSouteiro no novo texto do encarte de "Sivuca & Rosinha de Valença", eles estão juntos em apenas duas faixas, "Asa branca", de Luiz Gonzaga & Humberto Teixeira, e "Lamento", de Pixinguinha. Nas outras cincos, é o sanfoneiro, tecladista e violonista quem arrebenta junto a Raul Mascarenhas (flauta e sax-tenor), Jamil Joanes (baixo), Luiz Carlos (bateria) e Darcy (percussão). Há dez anos, Maria Rosa Canelas, que herdou o sobrenome artístico da cidade do interior do Estado do Rio onde nasceu a 30 de julho de 1941, sofreu um derrame cerebral que a afastou violenta e precocemente do cenário musical brasileira, deixando-a em estado vegetativo. Ainda bem que Severino Dias de Oliveira, o Sivuca, nascido em Itabaiana a 26 de maio de 1930, continua ativíssimo. Sexta-feira próxima, por exemplo, ele estará de volta ao centro do Rio, dessa feita à Sala Funarte/ Sidney Miller, para, a partir das 18h, tocar em duo com o gaitista pernambucano Rildo Hora – também um excepcional produtor de discos – na série "Os novos sotaques da cultura musical popular".

Em 1977, Sivuca estava voltando ao Brasil depois de anos e anos de trabalho na Europa e nos Estados Unidos. Fez uma temporada no teatro do Hotel Nacional, em São Conrado, mas decidiu fazer sua reentrada oficial no show dividido com Rosinha de Valença. Ele abre o disco pilotando sua composição "Homenagem à Velha Guarda", que, com letra de Paulo César Pinheiro, logo estaria sendo cantada por Clara Nunes. Impressiona que, mesmo sem palavras, o sanfoneiro tenha conseguido de fato imprimir um caráter docemente nostálgico à música. O grande momento do CD, porém, vem a seguir, na faixa que quase emenda a valsa "Quando me lembro", de Luperce Miranda, com o clássico frevo, "Vassourinha", de Matias da Rocha & Joana Batista Ramos. Na primeira, Sivuca explica que, na terceira e última parte, vai tentar imitar na sanfona o efeito de dois bandolins juntos pretendido por Luperce. Quando o faz, alcança uma intensidade que lembra a tempestade de verão nas "Quatro estações", de Vivaldi. No segundo, ele mostra seus amplos dotes de showman conversando com a platéia e transformando o tema do bloco de Recife em música da China, dos países árabes, da URSS, da Argentina, da Escócia e de Quarta-Feira de Cinzas em Pernambuco – para desaguar numa Terça-Feira de Carnaval furiosa. É engraçado e inventivo.

Para quebrar o clima de algazarra, a música seguinte é "Reunião de tristeza", expressão tardia do sofrimento do menino de 5 anos de idade com a morte de uma irmãzinha quatro anos mais velha, em 1935, no sertão da Paraíba. É bonito de danar, conforme Sivuca canta (a gente costuma esquecer, mas sua voz é excelente) e toca sozinho ao violão: "Era noite, mãe velha cantava canção de embalar/ Tinha um rio mas água por ele esqueceu de passar/ E mãe triste esperava o seu filho voltar/ Lá-lá-lá-iá-lá lá-lá-lá-iá-lá..." Depois disso, só emendando "Feira de mangaio" (dele e da mulher, Glorinha Gadelha), "Asa branca" (na qual Sivuca explora um órgão Yamaha) e "Adeus, Maria Fulô" (dele e de Humberto Teixeira). São música para bater o pé da melhor qualidade, melodiosa, forte, vigorosa, dançante, a léguas e léguas dessa música nordestina para quem tem preconceito contra nordestino, asséptica, de banho tomado, que anima bailinhos de forró para bem-nascidos e programas de auditório no Sul Maravilha, repetindo o fenômeno do pagode mauriçola, sem sangue ou tesão, ora em vazante.

Para finalizar, cada qual no seu violão, Sivuca e Rosinha dialogam com rigor de concertistas clássicos na sempre empolgante "Lamento" e ela afinal ganha o refletor principal, com "Tema do boneco de palha", de Vera Brasil & Silvan Castelo Neto. Nele, respaldada por Joanes num momento iluminado, Rosinha mostra furor rítmico e criatividade melódica dignos de um – sem exagero – Baden Powell. O que apenas nos faz lamentar ainda mais o pequeno quinhão que coube a ela neste subproduto do show de 1977. Mas deve ser isso a perfeição em geral (e a do disco, em particular), não? O gosto de quero-mais.

No comments: