Thursday, May 24, 2007

As caixas de Bennett e Hancock




As caixas de Bennett e Hancock
Arnaldo DeSouteiro


Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 25 de Novembro de 2004 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Em uma época em que as gravadoras dedicam-se cada vez mais a vasculhar seus catálogos, até mesmo algumas retrospectivas estão sendo recicladas, impulsionadas por estratégias de marketing. Via Sony/Legacy, acabam de chegar ao mercado duas luxuosas caixas. “Fifty years: the artistry of Tony Bennett”, continha quatro CDs quando compilada originalmente por Didier Deutsch em 1997 sob o título “Forty years”. Agora, nesta nova edição revista e atualizada, ganhou um quinto CD, adicionando as gravações mais recentes, num total de 110 faixas. “Herbie Hancock box”, editada em 2002 em tiragem limitada, com futurista embalagem transparente feita em acrílico, ressurge no formato longbox e com preço mais acessível, distribuída em larga escala.

Voz incomparável

Anthony Dominick Benedetto, Tony Bennett para os milhões de fãs mundo afora, continua em grande forma aos 78 anos. Permanece excursionando, tem recebido críticas maravilhosas por seu novo CD (“The art of romance”, a ser lançado em breve no Brasil), e seus discos antigos não param de ser relançados. Quem quiser conhecer um resumo de tão brilhante trajetória tem, em “Fifty years”, a opção mais indicada – outra caixa recente, “The Improv years”, retratando a fase de seu selo independente nos anos 70, hoje pertencente à Concord, nem pode ser comparada à esta monumental realização da Sony. Afinal, foi na antiga CBS-Columbia que Tony construiu sua fama entre 1950 e 1975, e depois a reprocessou ao retornar à companhia em 1986 com a obra-prima “The art of excellence”.

Esta suntuosa caixa da Legacy traz, no livreto de 72 páginas, dezenas de fotos raras, extensos textos assinados por Ralph Sharon, Leonard Feather, Will Friedwald, Jonathan Schwartz e Anthony DeCurtis, a discografia de Tony na CBS, e comentários do próprio cantor sobre todas as faixas. Sem falar dos depoimentos de ícones como Bing Crosby, Duke Ellington, Buddy Rich, Dizzy Gillespie, Gil Evans, e até Frank Sinatra, que não se cansava de proclamar Bennett “o melhor cantor do mundo”. Afinal, glosando o historiador Nat Hentoff, Tony é um caso raríssimo de artista que já ultrapassou seis décadas de carreira mantendo incomparável integridade. Ou, como disse Louis Armstrong da forma mais direta possível: “se você é insensível a Tony Bennett, procure um psiquiatra”!

Vencedor de 12 prêmios Grammy, Tony preparou, em julho deste ano, emocionante texto adicional para a caixa, que ainda reproduz as capas dos LPs originais. O primeiro CD, com 23 faixas, cobre o período 1950-59, começando pelos dois primeiros hits: “The boulevard of broken dreams” e “Because of you”. Não faltam também “Stranger in paradise”, “Lazy afternoon”, “Just in time”, “Lost in the stars” (com a banda de Count Basie) e “September song”, quase todas produzidas pelo controvertido Mitch Miller. No segundo CD, 22 temas gravados entre 1960 e 63, destacando “Tender is the night”, “Until I met you” (com Jo Jones, o batera predileto de Fernando Sabino), “A taste of honey” (de outro saudoso amigo, Bobby Scott), “The good life”, “Tender is the night”, “I wanna be around”, a suntuosa balada “When Joanna loved me” e, claro, o futuro carro-chefe “I left my heart in my San Francisco”, em arranjo de Marty Manning.

“Nobody else but me”, “It had to be you”, “Fly me to the moon”, “The shadow of your smile”, “Emily” e “A Time for love” despontam entre as 21 faixas do terceiro CD, com as preciosas colaborações, entre 1964 e 67, de Johnny Mandel (com quem voltou a gravar em “The art of romance”), Al Cohn, Ralph Sharon, Tommy Flanagan, e o produtor mais frequente de Tony naquele período, Ernie Altschuler. No CD nº 4, de 22 faixas, o easy-listening de “For once in my life” (67) junta-se ao jazz-oriented approach do primeiro encontro com Bill Evans em 75 (representado por 3 faixas cedidas pela Fantasy Records), englobando ainda a retomada da associação com a CBS em 86 através de faixas extraordinárias (“How do you keep the music playing?”, “I got lost in her arms” e “Why do people fall in love?”) do não menos magistral “The art of excellence”. Para completar a goleada, a versão a capela (o piano de Sharon só dá o acorde final) de “When I lost you”, do LP “Bennett/Berlin”, de 87.

No quinto CD, o Tony da “geração MTV”, de 1992 à 2002, esbanja categoria em “Steppin’ out with my baby”, “East of the sun”, “New York, New York” (do “Duets”, de Sinatra, em 93), “Speak low”, “Mood indigo”, e os recentes duos com Diana Krall, B.B. King, Ray Charles e k.d. lang. Falhas? Bem, somente a ficha técnica deste quinto disco informa os títulos dos LPs dos quais as faixas foram retiradas, mas omite as datas de gravação citadas nos outros quatro CDs. Em matéria de seleção de repertório, lamenta-se a exclusão da música brasileira, leia-se bossa nova, tão apreciada por Tony e gravada em discos como “The movie song album” e “Songs for the jet set” com as canjas de Luiz Bonfá (este pelo menos ganhou uma foto no livreto), Dom Um Romão, Carlos Lyra e Hélcio Milito.

Mago dos teclados

Outra jóia, “Herbie Hancock box” traz, espalhadas em quatro CDs, 34 faixas extraídas de 25 discos – muitos deles fora de catálogo -, cobrindo o período 1972-1988. No livreto de 60 páginas, Herbie comenta quase todas as músicas em depoimento ao crítico Chuck Mitchell. Há apenas uma faixa inédita: uma versão meio atabalhoada, em andamento excessivamente rápido e pouco balançado, de “Red clay”, clássico do trompetista Freddie Hubbard, gravado com a participação do autor no tempo do quinteto VSOP, com Ron Carter, Tony Williams e Wayne Shorter.

Os outros momentos do VSOP são sublimes, extraídos dos discos como “Tempest in the colosseum”, “Five stars” e “Live under the sky” (recentemente comentado neste espaço, ao ser finalmente lançado mundialmente, depois de três décadas restrito ao mercado japonês). Petardos tipo “Eye of the hurricane”, 18 minutos de “musical bravura”. Na parceria de Miles & Ron Carter em “Eighty-one”, o baixista rouba a cena com um solo em que é acompanhado apenas pelas palmas da platéia. “Diana” - etérea balada de Shorter composta para seu LP-solo “Native dancer” - ficaria melhor numa coletânea do saxofonista, já que a participação de Herbie é secundária. Aliás, a ficha técnica cita Hubbard, mas o trompetista não toca nesta faixa. Ainda com o VSOP, mas trocando o piano acústico pelo elétrico Yamaha CP-70, Herbie revisita “Maiden voyage”.

Apenas num trio com Carter & Williams, passeia por “Dolphin dance” e “Milestones”, relendo “The sorcerer” com a ajuda de um endiabrado (e ainda não mascarado) Wynton Marsalis em 81. A porção acústica completa-se com “Harvest time” (piano-solo), “Liza” (brilhante duo com Chick Corea em 78), e a gravação de “’Round midnight”, para a trilha do filme de Bertrand Tavernier em 85, que deu a Herbie seu primeiro e único Oscar. Para quem não se lembra, Bobby McFerrin transforma sua voz num trompete assurdinado, sem histrionismos.

Igualmente contagiante, embora longe de ser homogênea, a parte eletrônica inclui curiosidades (o tema do filme “Death wish”), duas maravilhas (“Butterfly”, “Actual proof”), momentos corriqueiros (“Come running to me”) e bobagens robotizadas como “Rockit”. Duas faixas do LP “Mr. Hands” (1980) são notáveis, especialmente graças aos baixistas Ron Carter (“Calypso”) e Jaco Pastorius (“4 am”). Do disco “Headhunters” (73), divisor de águas na carreira de Hancock, que despertou a ira dos tradicionalistas pela adesão ao funk, foram pinçados os hits “Watermelon man” e “Chameleon”, cujo riff gruda no ouvido. Divirtam-se!


Legendas:
“Tony Bennett: 110 faixas do maior intérprete do Great American Songbook”
“Herbie Hancock: versatilidade levando os puristas ao desespero”

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