Thursday, May 24, 2007

Veranico de coletâneas jazzísticas







Veranico de coletâneas jazzísticas
“Gravações de Barney Kessel, Art Tatum e Bud Powell são revisitadas em atraentes compilações”
Arnaldo DeSouteiro



Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 10 de Setembro de 2004 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Em pleno veranico, mais uma tempestade de coletâneas chega ao mercado. Ao contrário do que geralmente ocorre nas compilações de MPB, repetitivas e paupérrimas em conteúdo informativo, as jazzísticas são cuidadosamente preparadas por experts. Bem embaladas em capas luxuosas, costumam trazer ficha técnica, fotos e até elucidativos textos. Nesta fornada, há jazz para todos os gostos e níveis de exigência. Barney Kessel e Blue Mitchell são focalizados na série “Plays For Lovers”, da gravadora Fantasy, responsável também por inventariar registros dos geniais pianistas Art Tatum e Bud Powell. O catálogo da Verve é examinado no passado glorioso (“When love goes wrong”) e no presente duvidoso ainda a ser julgado (“Verve today 2004”). O acervo do selo MPS surge tanto no original (“Jazzworks”) como em versão remix (“Jazz reworks”), mirando sempre nas pistas de dança do cenário europeu de “dancefloor-jazz”, mas com resultados nem sempre satisfatórios.

Romantismo cool

Depois dos disquinhos dedicados à Coltrane e Miles, agora é a vez de Barney Kessel e Blue Mitchell serem os novos escolhidos de uma série da Fantasy Records que tem os neófitos como público-alvo. Ou seja, o manjado caso de “jazz para quem não gosta de jazz”. No caso de “Blue Mitchell plays for lovers” (61m67s), o “underrated” trompetista (1930-1979) tem sua faceta de emérito baladista enfatizada nas 13 faixas pertencentes a álbuns originalmente produzidos por Orrin Keepnews para o selo Riverside, entre 1958 e 1962. No encarte, o texto do crítico Zan Stewart disseca o rendimento de Mitchell em temas como “The nearness of you” (numa curta, mas linda, orquestração para cordas & sopros de Tadd Dameron), “When I fall in love” (formação de quarteto, com Wynton Kelly ao piano), “I can’t get started” (arranjo de Jimmy Heath), e uma das raras composições de Frank Sinatra, “I’m a fool to want you” (score de Benny Golson).

Trazendo elucidativos comentários de Jim Ferguson, “Barney Kessel plays for lovers” (67m32s) deve alcançar expressivo índice de vendagem. Afinal, desde o antológico encontro com Julie London em 55 (“Julie is her name”, gerador do hit “Cry me a river”), o guitarrista (1923-2004) sempre gozou de grande popularidade. Fora de circulação há doze anos, vitimado por um derrame com graves seqüelas, Kessel faleceu em maio último, deixando vasta discografia. Este CD capta gravações do período 1953-1988, produzidas por Lester Koenig no selo Contemporary. Entre as 16 faixas, irretocáveis sessões do trio Poll Winners com o baixista Ray Brown e o batera Shelly Manne (“Angel eyes”, “Satin doll”, “You go to my head”), duos com o inconfundível baixista Red Mitchell (“Laura”, “My old flame”), bombástica releitura de um tema de Burt Bacharach (“This guy’s in love with you”, impulsionado pela bateria fumegante de Elvin Jones) e até uma viagem pelo impressionismo de Claude Debussy (“My reverie”).

Teclas mágicas

Coube a Stuart Kremsky compilar os 20 números do CD “The best of the complete Pablo solo masterpieces” (77m08s), frutos da célebre maratona de 125 faixas de piano-solo realizada pelo virtuose Art Tatum, entre 1953 e 55, e agrupadas em 13 LPs, sob os auspícios de Norman Granz. Cego de um olho, autodidata, Tatum (1910-1956) criou um estilo tão brilhante quanto incomparável. Concertistas como Horowitz e Gieseking estavam entre os seus maiores fãs, mas ainda assim, sua assombrosa técnica permanece longe de ser uma unanimidade, a ponto do crítico do NY Times, Ben Ratliff, no livro “The New York Times essential library of jazz”, afirmar que seus discos são cansativos e interessam apenas a pianistas. O tratamento dispensado a jóias como “Too marvelous for words”, “Stardust”, “Body and soul”, “Cherokee”, “Night and day” e “Tea for two” permitirá ao ouvinte tirar suas próprias conclusões.

Outro fenômeno, Bud Powell (1924-1966), pode ser apreciado através de uma compilação intitulada simplesmente “Bebop” (77m43s). São 14 faixas do selo Mythic Sound, criado pelo anjo-da-guarda de Powell em seu exílio parisiense, Francis Paudras, cujo livro sobre a amizade com o pianista encontra-se documentado no livro “Dance of the infields”, base para o roteiro do premiado filme “’Round midnight”, de Bertrand Tavernier. Paudras cometeu suicídio em 1997, aos 62 anos, e a Fantasy adquiriu o seu arquivo. As seis primeiras músicas deste CD foram captadas ao vivo em 1948, no clube novaiorquino Royal Roost, conhecido como “the Metropolitan bopera house”, com Bud comandando um grupo de dez músicos – entre eles, Lee Konitz, J.J. Johnson, Buddy DeFranco e Max Roach, formidáveis na longa jam “Ornithology”. Pierre Michelot (baixo) e Kenny Clarke (bateria) atuam nas faixas (“Blues in the closet”, “Now’s the time”, “Confirmation”) gravadas em Paris, em 59 e 60, enquanto o tenorista Johnny Griffin destrói numa versão de 18 minutos de “Hot house”, de 64.

Jazz de verve

O vastíssimo catálogo do selo Verve, fundado por Norman Granz em 1956 e hoje pertencente à Universal Music, permanece extremamente rentável. A bem bolada compilação temática “When love goes wrong/Songs for the broken-hearted” (53m59s), idealizada por Ken Druker, alterna relíquias esquecidas e escolhas óbvias nesta trilha para embalar dor-de-cotovelo. Começa com a célebre gravação de Billie Holiday para “Good morning heartache”, passando por Peggy Lee (“A woman alone with the blues”), Sarah Vaughan (“But not for me”), Helen Merrill em duo com o piano de Dick Katz (“Here’s that rainy day”), Dinah Washington (“I’m a fool to want you”), Ella Fitzgerald (“Reaching for the moon”, com a orquestra de Paul Weston) e Shirley Horn (“I fall in love too easily”, assessorada por Ron Carter e Al Foster). Entre os homens, Chet Baker envolve “Born to be blue” no costumeiro feitiço sussurrado, enquanto Billy Eckstine solta o vozeirão em “What will I tell my heart”. Similar variação de timbres ocorre na comparação entre a androginia vocal de Little Jimmy Scott (“Everybody’s somebody’s fool”) e o másculo barítono Johnny Hartman (“It never entered my mind”), enquanto a voz aveludada de Mel Tormé (“Gloomy sunday”, com a big-band de Marty Paich) rouba a cena facilmente.

Infelizmente, o atual cast da Verve está longe de rivalizar com o de sua fase áurea. Prova disso, o CD “Verve today 2004” (78m05s) até começa bem, com a faixa-título do badaladíssimo álbum de estréia do pianista/cantor inglês Jamie Cullum, “Twentysomething”, uma espécie de versão mais hard de Harry Connick Jr. (ou Norah Jones, dependendo do ponto de vista). Al Jarreau, que agora tenta voltar ao jazz depois de anos desperdiçando seu talento em descartáveis discos pop, faz bonito em “I’m beginning to see the light”, extraída de seu novíssimo “Accentuate the positive”. O pianista Kenny Barron, liderando um quinteto com o vibrafonista Stefon Harris, atreve-se a encarar “Hallucinations”, de Bud Powell, e perde feio para a recriação de Eliane Elias. O trio formado por John Scofield (guitarra), Steve Swallow (baixo elétrico) e Bill Stewart (bateria), ao vivo no Blue Note de NY em dezembro último, tira leite de pedra na inexpressiva “It is written”.

A porção européia da coletânea tem seus pontos altos no trompetista/cantor alemão Till Bronner (fã declarado de Chet Baker) em “Ready or not”, e seu fiel colaborador Frank Chastenier, pianista influenciado pelo lirismo introspectivo de Bill Evans, evocado nas sutilezas harmônicas de “Mensch”, com a participação de Bronner (usando surdina) emoldurada por seção de cordas. Os ingleses do Matt Bianco, ouvidos em “Ordinary day”, mantiveram o charme do tempo da new-bossa, mas perderam a criatividade. A tecno-bossa infantilizada da cantante portuguesa Helena Noguerra (“Je t’aime salaud”), o enervante remix de Forss para “Speech craft” do veterano pianista Horst Jankowiski, e o marasmo estético do tecladista sueco Ketil Bjornstad (“Tidal waves”) são de lascar. Mas nada supera o topete do duo Illumination em assassinar “Cry me a river”.

Hoje também administrado pela Universal, o selo alemão MPS, criado por Hans Georg Brunner-Schwer, tem seu acervo examinado em dois CDs voltados para o mercado de acid-jazz, No disco “Jazzworks: the original MPS sessions” (62m27s), estão as versões originais. Em “Jazzreworks: the new MPS sessions” (77m45s), as remixagens feitas por DJs e músicos europeus para faixas há muito incensadas nesta seara. “Mathar”, do vibrafonista Dave Pike, aqui reprocessada por The Frank Popp Ensemble, e “Terra samba”, do pianista Fritz Pauer (reconstruída pelos mancebos do Soul Patrol), já adquiriram o status de “dancefloor classics” desde meados dos anos 80. Nem tudo funciona a contento, até porque a fonte de idéias desta turminha dá claros sinais de esgotamento, e os irritantes clichês bjorkianos começam a ser repetidos à exaustão. Ainda assim, salvam-se as instigantes reciclagens de duas faixas de George Duke – “Feel” e “Tzina” – a cargo de Spacek e King Britt, além de “Morning song”, do saxofonista Don Menza (com o DJ DSL), e “Anima Christi”, petardo da pianista Mary Lou Williams que a gangue Two Banks of Four revira pelo avesso. Coisa de louco.

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