Sunday, May 27, 2007

DualDiscs de Miles e Brubeck



DualDiscs de Miles Davis e Dave Brubeck
“Discos históricos inauguram nova mídia criada pela Sony-BMG”
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 24 de Fevereiro de 2005 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Várias novas tecnologias vêm sendo estudadas para encontrar a nova mídia que poderia vir a substituir os CDs. Primeiro apostou-se no SACD, o SuperAudio CD, reproduzida somente em equipamentos especiais. Depois foi desenvolvido o SACD híbrido, que também pode ser tocado em CD-players. Outras empresas jogaram suas fichas no DVD-Áudio, mas o alto preço continuou não animando os compradores. Agora a Sony-BMG acaba de lançar, nos EUA, os dois primeiros títulos que inauguram um novo formato no qual as empresas estão depositando suas esperanças: o DualDisc.

Quem quiser saber detalhes desta nova maravilha tecnológica, deve surfar em www.sonybmg.com/dualdisc. Mas, em resumo, trata-se do seguinte: CD de um lado, DVD do outro. No mesmo disco! E você não precisa comprar um equipamento específico de reprodução, desde que o seu DVD-player também reproduza CDs – coisa que quase todos os modelos, mesmo os mais baratos, fazem. Para o mercado, a grande vantagem é que inúmeros títulos, ao serem reeditados em DualDisc, seduzirão mais compradores do que se relançados num CD convencional. Isto porque, no “lado DVD”, o conteúdo musical vem ampliado pela parte visual que pode incluir clips, entrevistas, galeria de fotos etc. Tudo isso com som surround, já que as remixagens (sempre que multi-track tapes estejam disponíveis) serão remixados para sistema 5.1, proporcionando uma trip sonora tri-dimensional.

Para inaugurar os lançamentos em DualDisc, o selo Legacy, dirigido por Seth Rothstein, responsável por cuidar do acervo jazzístico da Sony/BMG, escolheu as obras-primas “Kind of blue”, de Miles Davis, e “Time out”, de Dave Brubeck. Mais uma vez caprichando na embalagem. Textos minuciosos e fotos raras estão presentes nos livretos, que esmiúçam as circunstâncias em que foram concebidos os dois discos mais vendidos na história do jazz. Ambos devidamente remixados e remasterizados em 5.1 pelo engenheiro Mark Wilder, ampliando as freqüências e transparências sem o excesso de compressão que geralmente destrói nuances e sutilezas. Para alívio dos colecionadores, as capas originais, com suas respectivas liner-notes, foram preservadas, reproduzidas no encarte juntamente com os novos textos.

Jazz transcendental

No caso de “Kind of blue”, isto significa que o “ensaio” quase filosófico concebido por Bill Evans para a contracapa do LP, produzido por Irving Townsend, aparece junto com posteriores anotações do crítico Robert Palmer. Mas muito mais relevante é saber que Mark Wilder remixou esta jóia a partir das fitas originais de três canais, usando uma máquina valvuda Presto, corrigindo um erro grotesco de rotação. Explica-se: nos anos 50 e 60, os engenheiros da Columbia (a gravadora, não a nave espacial) usavam simultaneamente duas máquinas de gravação no estúdio da Rua 30, em NY. Na primeira sessão de “Kind of blue”, em 2 de março de 1959, que gerou as três faixas escolhidas para ocupar o lado A do LP (“So what”, “Freddie freeloader”, “Blue in green”), uma das máquinas estava com defeito. Rodava mais lentamente e, por conseqüência, gravou tudo com uma diferença de afinação. Como o técnico Fred Plaut não perecebeu o problema (na verdade nem ninguém notou!), as fitas de rolo usadas na prensagem do lado A foram exatamente aquelas, com o erro perpetuado inclusive nas primeiras reedições em CD.

Na segunda sessão, em 22 de abril de 59, Miles e seus comparsas (John Coltrane no sax tenor, Cannonball Adderley no sax alto, Paul Chambers no baixo, Jimmy Cobb na bateria e Bill Evans, no piano) completaram o projeto – um marco do conceito modal, que fez a cabeça de toda uma geração – gravando “All blues” e “Flamenco sketches”, esta última a única presente também num alternate-take tão notável quanto a versão oficial. As demais foram todas gravadas “de primeira”, em um único take. E Miles chegou no estúdio trazendo apenas esboços das músicas, desenvolvendo-as com a ajuda de Bill Evans, que já havia deixado o conjunto do trompetista, mas aceitou retornar apenas para gravar o disco – o novo pianista de Miles, Wynton Kelly, tocou somente no blues “Freddie freeloader”, destoando da atmosfera lírica predominante.

No excelente documentário (de 25 minutos) “Made in heaven”, dirigido por Chris Lenz & Ashley Kahn, o título vem da afirmação do batera Jimmy Cobb, único sobrevivente da sessão, de que o disco soa como se tivesse sido “feito no céu”. Afinal, nenhum álbum se transforma no disco de jazz mais vendido de todos os tempos (10 milhões de cópias, ainda hoje vendendo uma média de 5 mil cópias por semana) por acaso. “É um disco muito sexy, eu comprei três exemplares”, comenta com riso maroto a cantora Shirley Horn. Outro devoto, Herbie Hancock, mostra, no teclado de seu estúdio caseiro, a frase impressionista tocada por Bill Evans em “All blues”, e analisa até o clima criado pelas pratadas de Cobb em “So what”.

Há também depoimentos de Horace Silver, Jackie McLean, Eddie Henderson, John Scofield, do historiador Ira Gitler (chamá-lo de crítico é uma ofensa imperdoável), do comediante Bill Cosby e do apresentador Ed Bradley (do programa de TV “60 Minutes”), além das figuras pra lá de esquisitas de Me’ Shell NedgeOcello e Q-Tip, representando a geração hip-hop. Fotos das sessões de gravação mostram Miles acarinhando Bill Evans, ouvido numa entrevista de rádio em 1979.

O som do sucesso

“Time out”, coincidentemente gravado no mesmo ano de “Kind of blue” (dois meses depois de Miles concluir o álbum) para a mesma Columbia, com o mesmo engenheiro Fred Plaut, sob a produção de Teo Macero (futuro produtor de Davis), não ficou atrás em termos de impacto provocado no cenário jazzístico. Estourou puxado pela faixa “Take five” (o single chegou ao Top 25 e o álbum ao segundo lugar na parada pop da Billboard), consagrando definitivamente Dave Brubeck & Cia. O petardo, que virou item obrigatório em discoteca até de quem não é apaixonado por jazz, abre com outra música de grande popularidade, “Blue rondo a la turk”, uma aula de polirritmia em 9/8, aplicado na forma clássica de rondó, deixando de cabelo em pé os puristas que nada aceitavam fora do costumeiro 4/4. “Durante uma viagem à Turquia, ouvi um músico local tocando naquele andamento. Ele se chamava June 8, porque tinha nascido em 8 de junho”, relembra Brubeck, 84 anos de sabedoria, no vídeo.

Vale lembrar que o disco, gravado em três sessões entre junho e agosto de 59, quase não saiu. “Gravei apenas músicas inéditas, ignorando o pedido feito pela companhia para incluir standards”, revela Dave. Eles achavam que as músicas eram todas em andamentos muito esquisitos, sem apelo dançante, e não gostaram da idéia de colocar uma pintura abstrata de Neal Fujita na capa”. O departamento comercial tentou boicotar o disco, e o caso foi parar nas mãos de Goddard Lieberson, então Presidente da CBS, que para surpresa geral amou o LP, autorizando seu lançamento. Mais: mandou que um single com “Take five” e “Blue rondo” fosse mandado imediatamente para as rádios. Ironicamente, o produto taxado de comercialmente inviável transformou-se em um best-seller de atemporal poder de fascinação.

“Take five” também catapultou Paul Desmond para a fama. Por mero acaso, já que ele escreveu a melodia praticamente obrigado por Brubeck. “Eu inicialmente planejara a faixa como um solo do baterista Joe Morello em 5/4”, relembra o pianista no documentário de meia-hora (filmado em sua casa na cidadezinha de Wilton, em Connecticut) produzido por Judd Frankel para o DualDisc. “Mas Paul sempre ficava se exercitando no sax enquanto Joe ensaiava. Então eu pedi a ele que escrevesse um tema naquele andamento. Ele dizia que não era capaz, eu insisti, e no final acabou fazendo uma colagem das duas frases que praticava. Ninguém poderia imaginar o sucesso gigantesco que se sucedeu”.

Sucesso tão grande que ofuscou as demais pérolas do disco, com as complexidades rítmicas jamais emperrando o swing. Jóias como “Strange meadowlark” (com lírica introdução de piano-solo), “Kathy’s Waltz” (perfeito veículo para Desmond destilar sua sensualidade e sonoridade “dry martini”), “Everybody’s jumpin’” (“Morello toca a melodia usando as vassourinhas!”, regozija-se Brubeck), o saltitante divertimento “Three to get ready” (na seção “Interactive Piano Demonstration” – com recurso interativo de tomadas em vários ângulos que o espectador pode escolher usando o botão “angle” do controle remoto do DVD –
Dave mostra em seu velho Baldwin como a música evolui de uma valsa para um fox-trot em 4/4), e um tema que parecia sob medida para Miles, “Pick up sticks”, mas passou despercebido. O vídeo traz ainda imagens de Brubeck andando a cavalo, aparecendo nos programas de TV “Jazz casual” (do jornalista Ralph Gleason), “The lively ones” e “Play back”, além de cenas de performances em Vicenza e Moscou. Emoção do primeiro ao último minuto, com a alta definição sonora & visual do DualDisc.

No comments: