Wednesday, May 30, 2007

Havana Carbo e Lou Lanza brilham em novos CDs



Vozes mágicas e transcendentais
Havana Carbo e Lou Lanza brilham em novos CDs
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 01 de Dezembro de 2005 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Em meio a tantos pastiches e armações de Jamies e Madeleines, devem ser recebidos com missa de ação de graças os novos trabalhos de Havana Carbo e Lou Lanza. De gerações distintas, abençoados com vozes privilegiadas, têm em comum não apenas a qualidade interpretativa e a originalidade de seus estilos, mas também um apurado e incorruptível senso estético que privilegia a beleza no seu sentido mais literal, em um tempo pautado pela inversão de valores. Transcendendo rótulos e estilos, mostram salutar ousadia criativa, ungindo-nos com um bálsamo sonoro multi-dimensional.

Desde “Street cries”, gravado em 1990 para o selo italiano Soul Note, Havana Carbo conquistou um cult-following que sabe estar diante de uma artista singular, dona de timbre incomparável, personalíssimo. O charme, a sutileza e a sofisticação que fizeram de “So I’ll dream you again” (1997) um dos meus “desert island discs”, aparecem novamente neste segundo CD para o selo CAP, “Luna de varadero” (43m42s). A diferença está na instrumentação: enquanto, no álbum anterior, flautas, sax, trompete, guitarra e a percussão do brasileiro Valtinho complementavam o grupo de base, o novo disco alicerça-se somente no excelente trio formado por Dario Eskenazi (pianista argentino, da nobre linhagem de Bill Evans), Nilson Matta (baixista brasileiro radicado em NY há quase vinte anos, com quem tive a honra de trabalhar no CD “The Bonfá Magic”, de Luiz Bonfá, em 1991) e o baterista Vince Cherico (do grupo de Ray Barretto).

Não se trata de um trio acompanhando uma cantora, mas de um quarteto com destaque para uma voz “lovely, warm and intimate”, na síntese perfeita de Ira Gitler, o maior historiador de jazz na atualidade. A cubana Havana, que cresceu e ainda hoje reside em NY, respira junto com os demais músicos. Sensação reforçada pela mixagem, que coloca todos no mesmo plano, optando por um som amplo, quente, “antigo” (no bom sentido), sem compressão, privilegiando a transparência de todas as freqüências e deixando a bateria soar realmente “acústica”. Os arranjos, em sua maioria assinados por Eskenazi (ouvido com Mongo Santamaría, Paquito D’Rivera e o Caribbean Jazz Project), são bem estruturados e funcionais. Para quem não dispensa comparações, Havana poderia ser colocada em patamar similar ao de Helen Merrill (mas com maior carga de sensualidade) e Shirley Horn (sem sofreguidão).

Performances sublimes

Ao longo das 13 faixas deste álbum sublime, Gladys Havana Carbo faz do ouvinte seu cúmplice, acariciando sua alma, convidando-o para aconchegar-se através do antológico “Acércate más”, de Oswaldo Farrés. Popularizado nos EUA por Nat King Cole, raramente recriado por jazzistas (Zoot Sims nos presenteou com uma bela interpretação sob o título de “Come closer to me”), reaparece aqui em luxuosa levada de bossa-bolero. A carga de sensualidade aumenta ainda mais em “No me platiques más”, do mexicano Vicente Garrido. Mrs. Carbo segue deslizando por “Moon and sand”, de Alec Wilder, que ganhou novos fãs após a gravação de Chet Baker na trilha de “Let’s get lost”. Por falar em Chet, outro tema emocionante, “The wind”, escrito por seu pianista Russ Freeman e regravado por, pasmem!, Mariah Carey, ganha nova dimensão na voz de Havana. O batera Vince Cherico contribui para o efeito hipnótico, usando “mallets” até o início do solo de Eskenazi.

No standard “I fall in love too easily” (tema da dupla Jule Styne-Sammy Cahn para o filme da MGM “Anchors Aweigh”), Havana dá conta do recado em 2m49s, com espaço ainda para um solo de Nilson Matta. Na faixa-título, “Luna de varadero”, de Bobby Collazo, Vince troca a bateria pelo bongô. O clima torna-se ainda mais intimista nos duos de voz & piano em “Aquellas pequeñas cosas”, do espanhol Joan Manuel Serrat, e “Atrás da porta”, de Francis Hime & Chico Buarque. Outra música brasileira no repertório, também com arranjo de Nilson, “Bonita” é cantada como uma “bossa up-tempo” com a letra em inglês de Ray Gilbert para a jóia lançada por Jobim em seu “The Wonderful World”, com arranjo de Nelson Riddle em 65. O pianista Eskenazi realiza um de seus melhores solos, aliando o lirismo de Bill Evans ao balanço econômico de Tom, citando “O barquinho” durante a tag, enquanto Vince usa as vassouras com a costumeira categoria.

Carbo, cuja intimidade com a bossa nova vem desde o tempo em que atuava com o batera Edison Machado, retorna às baladas emendando “I wish I knew” (com delicadeza comparável ao tratamento de Keith Jarrett) à “In the wee small hours of the morning” (imortalizada por Sinatra), antes de mostrar sua face autoral na valsa “Paris”, aberta pelo assobio de Eskenazi, e de letra nostálgica, inspirada em um verão de passeios por Montmartre. No boleraço cubano “Contigo en la distancia”, de Cesar Portillo de la Luz (o mesmo de “Tu, mi delirio” gravado por Astrud e pelo Azymuth), sucesso de Lucho Gatica, Olga Gullot e, agora, Christina Aguilera, Carbo chega ao ponto máximo de emoção à flor da pele. Tema de encerramento, “No dejes que te olvide” (Ignacio Villa), remete às noitadas de seu principal intérprete, o lendário Bola de Nieve, no clube Tropicana, de Havana, cantando as dores de amor sem desespero nem melodrama. Fecho ideal para um disco perfeito, apaixonado e apaixonante.

Ousadas recriações

Mark Murphy, Tony Bennett, Michael Leonard, Allan Harris, Bill Watrous e o saudoso Henry Mancini estão entre os maiores incentivadores da carreira de Lou Lanza. Ainda um cult-singer, por conta da limitada distribuição de seus primeiros discos – os notáveis “The road not taken” (95), “Corner pocket” (97) e “Shadows and echoes” (98) –, Lou, natural da Phildelphia onde seu pai é violonista da famosa orquestra local regida durante muitos anos por Eugene Ormandy, lançou um álbum que tem tudo para ser um divisor de águas em sua carreira. Projeto que consumiu quatro anos de trabalho, “Opening Doors – a jazz tribute to the Doors” (53m09s), distribuído via Cexton Records, representa a realização de várias proezas. A maior delas, claro, explicitada no título, de jazzificar o “book” de uma das melhores bandas de rock de todos os tempos.

Árdua e arriscada missão, ao contrário de tantas recentes favas-contadas como a série do Great American Songbook gravada por Rod Stewart, dentro do padrão que os americanos chamam de “tried and tested formulas”. Com ousadia e determinação, Lanza, 35 anos, definido pelo renomado crítico Alex Henderson, do All Music Guide, como um cantor que une o melhor de Mel Tormé, Mark Murphy e Jon Hendricks, além do charme de Chet Baker em sua fase juvenil, aventura-se por um território cheio de perigos. Para felicidade geral, escapa lépido e fagueiro, conseguindo o milagre de reler, de forma altamente criativa e sem maluquices deturpadoras, a obra de Jim Morrison e seus comparsas Ray Manzarek, Robbie Krieger e John Desmonre, que compuseram, juntos, a grande maioria do repertório do quarteto.

Os dez temas selecionados por Lou tiveram arranjos dele próprio, com o guitarrista Rob Budesa cuidando dos charts para os metais empregados em “Love me two times” e “Wintertime love”. Um dos pontos altos, “Break on through”, aparece em duas versões diferentes: uma calcada no órgão Hammond (com o “baixo” executado nos pedais, mais guitarra, bateria e o sax tenor de Ron Kerber) e outra no piano Fender Rhodes, com baixo elétrico, guitarra, bateria, sax e trompete. Ambos os teclados pilotados, neste tema, por Dan Zank, irrepreensivelmente fumegante ao longo do CD. Lou usa a introdução de “Manteca”, de Dizzy Gillespie, como ponto de partida para a sua bem-sucedida reinvenção, e segue barbarizando de forma destemida, assessorado por jovens músicos de grande potencial, livres de purismos ou outros frescuras.

Na verdade, bastariam “Break on through” e a faixa inicial, “Riders on the storm”, levada em 5/4 com precisa contribuição de John Swana no trompete com surdina, para fazer deste álbum um item indispensável para qualquer jazzófilo que se preze – id est, que não esteja servindo de “massa de manobra” para mentirosos compulsivos. E as duas também seriam suficientes deixar patente a inventividade de Lanza, cujo mergulho em “Light my fire”, batido mega-hit do LP de estréia “The Dors”, em 67, equivale a tirar leite de pedra. Atiçado desde a intro pelo trompete de Swana, Lanza apronta impecável scat sobre o groove mortal do batera Byron Landham, que tem direito a seu momento de solo.

“Hello, I love you” vem recheada por inesperadas alternâncias de andamento, com guitarra distorcida e improviso de Orrin Evans no Hammond. “Touch me” transcorre influenciada pelas harmonias do Steely Dan. Percussão, soprano, Rhodes e baixo acústico fornecem, em “Wintertime love”, a moldura exata para a faceta baladista do cantor, lânguido no “Roadhouse blues” e de fraseado cortante em “Spanish caravan”, aberta por violão espanholado e picotada pela guitarra com pedal wah-wah. A bateria endiabrada de Lou Jordan puxa “Love me two times”, com solo (Bensoniano) de Rob Budesa, e Dan Zank no órgão a la Jimmy McGriff. Completando a tarefa hercúlea, “People are strange”, balizada pelo inefável charme do Rhodes, começa como balada e evolui para saboroso mid-tempo, com novo scat irretocável de Lanza. Muito superior a Kurt Elling, Michael Bublé, Peter Cincotti e Jamie Cullum, já se encontra, apesar da diferença de idade, no mesmo nível de expressividade de Mark Murphy, Al Jarreau e Andy Bey. E talvez o problema esteja justamente aí: tanto Havana Carbo como Lou Lanza situam-se em um patamar muito acima da mediocridade reinante no mercado. Haverá solução?

Legendas:
1. “Havana Carbo une jazz e bolero em um disco apaixonante”
2. “Lou Lanza apresenta jazzificada releitura de hits do grupo The Doors”

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