Thursday, May 24, 2007

Miles Davis a sete passos do paraíso




Miles Davis a sete passos do paraíso
“Lançada esta semana, a caixa Seven Steps documenta as proezas de Miles em 1963 e 64”
Arnaldo DeSouteiro


Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 30 de Setembro de 2004 e originalmente publicado no jornal "Tribuna da Imprensa"

O espetacular trabalho de arqueologia musical sobre a obra de Miles Davis (1926-1991), em sua fase na Columbia (atual Sony, futura Sony-BMG), já mereceu nada menos do que nove prêmios Grammy. Na eleição dos críticos da Down Beat, em agosto deste ano, a caixa “The complete Jack Johnson sessions” (abrigando 42 faixas em cinco CDs) faturou o prêmio de melhor “Jazz Reissue”, e é considerada uma barbada para a votação dos leitores, em dezembro. Êxito completo também em matéria de vendas, como aconteceu com o lançamento anterior, “In Person/Complete at the Blackhawk” (versão integral da temporada de Miles no clube Blackhawk em 1961), que ficou em terceiro lugar na opinião dos críticos votantes na revista.

Tais tesouros, documentando a longa associação de Miles (de 1955 a 1984) com a Columbia começaram a ser lançados em 2000. Tivemos “The complete Miles & Coltrane” (58 faixas em seis CDs, documentando os cinco primeiros anos de Miles na Columbia, depois da fase na Prestige), “Miles Davis & Gil Evans: the complete Columbia studio recordings” (116 faixas em seis CDs, 116 faixas, do período 1957-60), “The complete Plugged Nickel” (a antológica temporada de dezembro de 65), e “The complete Miles Davis Quintet”, com todas as pauleiras gravadas (em estúdio, note-se bem) por Miles ao lado de Herbie Hancock, Ron Carter, Tony Williams e Wayne Shorter entre janeiro de 65 e junho de 68. Da fase fusion, “The complete in a silent way sessions” e “The complete bitches brew”, pedra-fundamental do jazz-rock.

Esta semana, dando seqüência à tão fantástico processo, o selo Legacy - dirigido por Seth Rothstein & Steve Berkowitz – coloca no mercado mais uma preciosidade: “Seven steps/The complete Columbia recordings of Miles Davis 1963-1964”. Graças à riqueza de detalhes informativos e ao grande número de faixas extras, torna-se indispensável até mesmo para os fãs que possuem os CDs individuais, cujos tapes foram remixados (quando encontrados os multi-tracks em três canais) e remasterizados (em 24bits) pelo engenheiro Mark Wilder especialmente para esta coleção. Traduzindo em números: 46 petardos distribuídos em sete CDs, sendo 8 faixas inteiramente inéditas e 3 outras pela primeira vez mixadas na íntegra, sem os cortes empregados nos LPs originais.

Mais uma vez a embalagem (projeto gráfico de Giulio Turturro) é de altíssimo luxo, em capa-dura com lombada em metal. O livreto de 92 páginas inclui mais de uma dezena de fotos raras, um texto introdutório assinado por Michael Cuscuna (co-produtor da caixa, ao lado de Bob Belden), e detalhado ensaio do crítico Bob Blumenthal, da Down Beat, que analisa imparcialmente a trajetória de Miles, dissecando faixa por faixa. Musicalmente, fascina por mostrar o trompetista num período de transição, depois da associação com Coltrane, retratando as variadas tentativas de montar um novo conjunto, experimentando diversos músicos até chegar ao célebre quinteto com Shorter, Hancock, Carter e Williams, o melhor grupo da história do jazz.

“Teste de fidelidade”

Em março de 1963, o iconoclasta Miles viu-se subitamente sem banda. A seção rítmica formada por Wynton Kelly, Paul Chambers e Jimmy Cobb, atuante em obras-primas como “Kind of blue” (59), transformou-se no trio de Kelly. Desde a saída de Coltrane, em abril de 60, vários saxofonistas (Hank Mobley, Sonny Stitt, Rocky Boyd, Sonny Rollins) e até o trombonista-mor do bebop, J.J. Johnson, além de Frank Rehak, haviam passado pelo grupo. Por variadas razões, como incompatibilidade de temperamentos e agendas, mas principalmente falta de afinidades estéticas, o entrosamento total não rolava. Com shows marcados em San Francisco, no Blackhawk, um de seus clubes prediletos, Miles acatou a sugestão de Coltrane para contratar o tenorista George Coleman. Este, por sua vez, recomendou Harold Mabern (pianista que tocou no Rio, em 2003, com Eric Alexander no Chivas Jazz) e Frank Strozier (sax-alto). Por indicação de Paul Chambers, veio Ron Carter. Miles já estava de olho em Tony Williams, mas o baterista ainda estava compromissado com Jackie McLean. Então, no lugar de Cobb, para os shows no clube Renaissance, entrou o classudo Frank Butler.

Terminada a temporada, Strozier e Mabern foram dispensados. Miles desistiu provisoriamente de encontrar um novo saxofonista, e chamou Victor Feldman, já famoso no meio jazzístico californiano, para o piano. Em 16 & 17 de abril de 63 entraram no estúdio da Columbia, em Los Angeles, para iniciar o que viria a ser o álbum “Seven steps to heaven”. O primeiro CD desta nova caixa traz a íntegra dessas sessões, incluindo dois takes inéditos de “Seven steps to heaven” (tema de Feldman ao qual Miles deu um acabamento), Joshua (outro excelente tema de Victor), o standard “Summer night” (aproveitado no controvertido LP “Quiet nights” que abalou a amizade entre Miles e seu melhor produtor, Teo Macero), duas antiguidades inusitadas (“Basin street blues”, “Baby won’t you please come home”), a swingada “So near so far” e uma soberba interpretação da balada “I fall in love too easily” (sem sax e muito sexy).

A paixão à primeira ouvida, de Miles por Feldman (harmonicamente mais sofisticado do que Wynton Kelly, e influenciado por Bill Evans) não foi correspondida pelo pianista. Estabilizado no circuito de gravações em Hollywood, usufruindo de confortável situação financeira, o gentleman inglês preferiu não trocar o certo pelo duvidoso, recusando o convite para ingressar oficialmente no grupo. Miles decidiu completar o disco em NY, mantendo Carter e Coleman, e finalmente trazendo Tony Williams (ainda com 17 anos!) e Hancock. Ensaiaram por dois dias na casa de Miles, que ficou ouvindo tudo sem sair de seu quarto, sem tocar uma nota sequer, limitando-se a informar que no dia seguinte, 14 de maio de 63, eles entrariam em estúdio. Curiosamente, Miles regravou “Joshua”, “Seven steps to heaven” e “So near, so far”, escolhidas para o LP ao serem consideradas superiores às gravações de Los Angeles. Pelo menos no caso de “So near, so far”, discordo totalmente, lembrando a emoção causada pela primeira audição do take gravado com Feldman, revelado ao mundo em 1981, no álbum-duplo “Directions”, somente com gravações até então inéditas de Davis.

Shows memoráveis

Devido à briga com Teo Macero, a quem culpava pelo lançamento do LP “Quiet nights”, Miles passou a evitar os estúdios para não ter que se encontrar com o produtor. Para cumprir as obrigações contratuais com a Columbia, autorizou que vários shows fossem transformados em discos. O primeiro deles, gravado em 27 de julho de 63 no Festival de Jazz de Antibes, em Juan-les-Pins, e lançado exatamente um ano mais tarde sob o título “Miles Davis in Europe”, deixou em êxtase o público francês.

Revelado na íntegra pela primeira vez, traz impactantes versões de “Autumn leaves” (anteriormente gravada por Miles somente no LP “Somethin’ else”, de Cannonball Adderley, em 58, conta com fascinante solo de Ron Carter usando o arco), “Milestones” (que Miles voltou a tocar a pedido de Williams, apaixonado pelo tema), “I thought about you” (surpreendentemente explosivo solo de trompete sem surdina), “Joshua” (grande momento de Coleman, com Tony encaixando pulsação latina na bridge), “Walkin’” (a mil por hora) e “All of you” (excelentes solos de piano e sax).

O registro inédito de “Bye bye blackbird” (última gravação de Miles para este tema) mesclado a “The theme”, somando 23 minutos de pura magia, é um caso à parte. Todos os músicos se superam, a começar pela introdução impressionista de Hancock. Coleman, explorando os registros mais agudos do tenor, soa mais emocionado (e emocionante) do que de costume. Tony Williams quebrando tudo na bateria, passeia por provocadoras levadas de rock e funk no duelo com Miles, que, em estado de graça, cita “One mint julep” e “Watermelon man” demonstrando a renovação de energia criativa gerada pelos novos sidemen.

Segue-se um concerto ainda melhor, no Philharmonic Hall (atual Avery Fisher Hall) em 12 de fevereiro de 64, NY, originalmente dividido em dois discos: “My funny valentine” (lançado em 65) e “Four & more” (66). O engenheiro de som Mark Wilder restabelece o concerto “comme il faut”, na seqüência correta das músicas.. Pouco antes, nos bastidores, Davis anunciou que estava doando seu cachê (e o dos músicos!) para um fundo de ajuda aos direitos civis dos negros, o que deu ao evento também importância política. Detalhe: os músicos não haviam sido consultados, e entraram em cena espumando.

“Quando caminhamos para o palco, todos iam putos da vida uns com os outros, e eu acho que essa raiva criou um fogo, uma tensão que entrou na música, e talvez tenha sido um dos motivos por que tocaram com tanta intensidade”, comenta Miles em sua autobiografia. “Nós arrasamos naquela noite, era grande a tensão criativa. Muitas das músicas eram sincopadas, mas ninguém atravessou, nem uma vez. George Coleman tocou melhor do que eu jamais o ouvira tocar”. O quinteto saiu logo sentando o sarrafo numa versão inédita (preciosos 10m40s) de “Autumn leaves”, seguindo-se “So what” (estimulada pelas chicotadas de Tony no prato de condução), “Stella by starlight” (notável improviso de Miles), “Walkin’” (outro solo modelar de Williams, calcado nas variações no bumbo), “All of you” (superando a versão de Antibes por conta do entrosamento telepático da banda) e “Go-go”, vinheta de encerramento.

Na segunda parte do concerto, a fúria até pode ter diminuido. Mas o fogo não abrandou. Quem duvidar que ouça, após a intervenção do pianista Billy Taylor como MC, a pauleira em “All blues” (desenvolvido em 6/8), “My funny valentine” (Miles sem surdina flutua sobre a base, que parece levitar), “Joshua” (sempre um momento de “bravura” musical para Williams), “I thought about you” (balizada pelo baixo infalível de Carter enquanto Coleman novamente se supera), “Four” (abrigando diálogo entre Miles e Tony em uma troca de oito compassos), “Seven steps to heaven” (o quinteto parece levantar vôo!), e “There is no greater love” (Davis usa a surdina), levando a platéia ao êxtase.

Igual ou maior delírio nota-se no primeiro show de Miles no Japão, no Kohseinenkin Hall, de Tokyo, na histórica data de 14 de julho de 64. Também é evidente que Davis mandou Tony Williams “pegar leve”, para não assustar o público japonês – afinal, tinha perfeita noção de quanto já era avançada a sua concepção naquela época. Para demonstrar sua deferência aos jazzófilos nipônicos, não saiu do palco durante os solos dos outros músicos, obrigados a trajar smoking. A platéia uiva de delírio logo ao ouvir o piano de Hancock na introdução de “If I were a Bell”, e suspira quando Miles ataca “My funny valentine” numa respeitosa abordagem, citando a intro de “I’ve got a crush on you” no final de seu primeiro “chorus”. Os solos prosseguem bem-comportados – até mesmo por parte do vanguardista Sam Rivers, substituto de Coleman) – em “Walkin’” e “All of you”. “Go-go” fecha a tampa do show, lançado em LP somente cinco anos depois, e apenas no Japão, sob o título “Miles in Tokyo”.

Completando a caixa, temos o primeiro concerto gravado (originalmente para uma transmissão radiofônica) com Wayne Shorter assumindo o posto de tenorista. Nascia, então, o quinteto que viria a estabelecer um novo patamar na carreira de Miles – e na história do jazz, de um modo geral, redefinindo conceitos de textura, dinâmica e improvisação coletiva. Neste show, em 25 de setembro de 64, lançado em 69 na Alemanha (“Miles in Berlin”), temas como “Milestones”, “Autumn leaves”, “So what” (Shorter mostrando seu fraseado oblíquo, Hancock respondendo com um solo cheio de dissonâncias), uma versão inédita de “Stella by starlight” e “Walkin’” adquirem nova dimensão, compensando a deficiente qualidade do som mono. Logo logo, Shorter começaria a compor especialmente para o grupo, tornand-se peça-chave numa das melhores fases da multifacetada carreira de Miles – a mais dinâmica, revolucionária e obsessivamente criativa que o jazz conheceu.

Legenda:
“Nova caixa documenta importante capítulo na evolução musical do trompetista”

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