As teclas mágicas de Hancock, Ellington e Evans
“Discos raros e gravações inéditas de mestres do piano”
Arnaldo DeSouteiro
“Discos raros e gravações inéditas de mestres do piano”
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 3 de Novembro de 2004 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"
O selo Legacy, divisão de projetos especiais da Sony Music, vem dando sucessivos presentes aos jazzófilos. Desta vez, a grande surpresa fica por conta de dois discos raríssimos de Herbie Hancock, até então editados apenas em vinil no mercado japonês, em tiragem limitada, nos anos setenta. Ambos são verdadeiras obras-de-arte, agora finalmente disponíveis em larga escala e trazendo várias faixas inéditas. Os puristas não precisam se preocupar: tudo acústico, na linha mainstream, sem resquícios de fusion. Bonus-tracks também valorizam ainda mais dois relançamentos do mestre Duke Ellington (mais admirado como compositor e band-leader do que por seus dotes como pianista) e uma compilação do não menos genial Bill Evans.
Geniais improvisos
Para desespero dos tradicionalistas, que adoram patrulhar, rotular e limitar, Herbie Hancock sempre transitou por diversas correntes sem perder a majestade. Com igual habilidade, vai do bop ao funk, do fusion ao hip-hop, com a mesma categoria. Em meados dos anos 70, após o estouro de vendas de “Chameleon”, na liderança do eletrificado conjunto Headhunters, voltou-se novamente para o “straight-ahead jazz”, criando o supergrupo acústico VSOP em 1976. Na verdade, tratava-se basicamente do memorável quinteto de Miles Davis dos anos 60, com Hancock, Ron Carter, Tony Williams e Wayne Shorter. Mas com uma diferença fundamental: no lugar de Miles, então fora de cena por problemas de saúde, estava um Freddie Hubbard no auge da forma. Onde Miles era “cool”, sutil e insinuante, Freddie era “hot”, viril, explosivo.
Por diferentes motivos, o VSOP fez apenas uma turnê pelos EUA, em julho de 77, documentada em “The quintet”, único álbum lançado no mercado americano. “O grupo, considerado avançado demais pelos puristas e tradicional demais pelos modernistas, enfrentou críticas pesadas; seus integrantes eram vistos como traidores que não tinham direito de retornar ao mainstream, e por isso a gravadora nunca se interessou em lançar os discos subseqüentes nos Estados Unidos”, explica Bob Belden no texto do livreto. E assim, mais uma vez, os felizardos japoneses foram os únicos a ter o privilégio de colecionar maravilhas como “Tempest in the Colosseum” e este “Live under the sky” (77m57s/76m24s), gravado em 79 no famoso festival ao ar-livre, em Tokyo, hoje desativado.
No CD-duplo, às 7 faixas do LP original (documentado em 26 de julho) somam-se 11 inéditas do concerto da noite seguinte. Arrebatadores improvisos em alucinadas versões de “Eye of the hurricane” (renovando os preceitos do hard-bop), “Para Oriente” (tema de Williams misturando elementos de blues, boogaloo, bop e swing) “Tear drop”, “Fragile” (duas refinadas composições de Carter), “Domo”, “Pee Wee”, e uma homenagem de Hubbard à Miles, “One of another kind”. Todos descem o sarrafo, mas os mais abismantes solos são cortesia de um endomoniado Freddie Hubbard, incessantemente “provocado” pela frenética polirritmia de Tony Williams, quebrando tudo na bateria.
“Foi uma noite fenomenal, inesquecível”, escreve o próprio Herbie nas liner-notes escritas em maio de 2004. “Pela primeira vez estava sendo usado um equipamento de gravação digital tão sensível que captou os pingos da chuva torrencial (e que podem ser ouvidos nos momentos de maior calmaria musical, como os solos de Ron Carter). Na hora do bis, a banda estava tão exausta que somente eu e Wayne encontramos forças para voltar ao palco”. Isto explica porque, depois da introdução de Herbie em “Stella by starlight”, Wayne erra o tom ao fazer sua entrada no sax tenor. Esperto, disfarça com uma firula e compensa o vacilo com arrebatadora leitura da linda balada de Victor Young, levando a platéia a urrar de prazer.
Herbie segue brilhando em “The piano” (52m15s), captado em 25 & 26 de outubro de 78 no estúdio da Sony em Tokyo, no sistema “direct-to-disc”. Ou seja: gravação direta para o acetato, sem edição posterior. No entanto, a performance-solo zen, translúcida e plácida de Hancock foi gravada “ao vivo” para um equipamento digital ainda em fase de testes, uma espécie de protótipo do CD desenvolvido por Toshi Doi, criador do walkman, grande fã de Herbie e idealizador do projeto. Duas suítes formavam o LP original. No lado A, três standards associados a Miles: “My funny valentine”, “On Green Dolphin Street” e “Someday my prince will come”, abordadas em clima introspectivo, sem afetações ou melodramaticidade. No B, quatro jóias de Hancock: “Harvest time” (sublime balada que tive a honra de produzir, com Herbie, para um LP de Yana Purim em 87), “Sonrisa”, “Manhattan island” e “Blue Otani”. Quatro alternate-takes, inéditos, foram adicionados ao CD. Indispensável para quem acredita em Brad Mehldau, Uri Caine e Papai Noel.
Poemas sonoros
Figura emblemática, rara unanimidades perante jazzófilos de todas as tribos, Duke Ellington (1899-1975) tem dois títulos reeditados via Legacy, supervisionados por Michael Cuscuna. “Piano in the background” (64m09s), de 1960, traz releituras de hits tipo “What am I here for”, “Perdido” e “Take the A train”, com arranjos de Gerald Wilson (atuante também como trompetista) e Bill Matthieu. Os grandes solistas da orquestra – Jimmy Hamilton, Paul Gonsalves, Harry Carney, Johnny Hodges, entre outros – se esbaldam, enquanto Duke, menos discreto do que habitualmente como pianista, toca um instrumento de 99 teclas, ao invés das 88 usuais. Sem falar das canjas de Billy Strayhorn e Juan Tizol (trombone). O LP continha 9 faixas, mas no CD temos 14, incluindo dois takes de “Lullaby of Birdland” (cartão de visitas de George Shearing) e um inédito “Harlem air shaft”.
O outro CD, “Blues in orbit” (61m36s), creditado a Ellington and his Award Winners, gravado em 1958 e 59, conta com um cardápio menos batido, embora trazendo “In a mellow tone” e o desgastado “C-Jam blues”. Mais vale saborear “The swinger’s jump”, “Sweet & pungent”, a parceria de Duke & Strayhorn em “Smada” (com Billy ao piano) e a faixa-título, de tintas impressionistas e clima spaced-out, também ouvida num take inédito agrupado entre as 8 bonus-tracks que se somam às 11 do LP original. Novamente coube a Mark Wilder remixar tudinho, aprimorando tremendamente a qualidade de som.
E por falar em impressionismo, Bill Evans, um dos grandes adoradores de Debussy & Ravel, ganha a coletânea “Piano player” (72m16s), compilada por Orrin Keepnews, incluindo gravações com Miles Davis (“My funny valentine” ao vivo em 58) e o vibrafonista Dave Pike (“Besame mucho”, “Vierd blues”). Dentre as 8 faixas inéditas, a suíte “All about Rosie” (com a orquestra de George Russell em 57, bem diferente da versão gravada dez dias depois para o LP “Modern jazz concert”), “Fun ride” (uma “sobra” do LP “The Bill Evans album”, de 71) e seis duos com Eddie Gomez captados durante “ensaios” em 1970. Bill às vezes soma piano acústico e Fender Rhodes – com ótimos resultados, vale dizer –, enquanto a experiência de Eddie no baixo elétrico não deu muito certo, limitando-se a apenas uma música. “Django” (tributo de John Lewis ao cigano Reinhardt), “Comrade Conrad” e “Gone with the Wind” estão entre os melhores momentos. Pura poesia.
Legenda:
“Herbie Hancock em preciosa sessão de piano-solo”
O selo Legacy, divisão de projetos especiais da Sony Music, vem dando sucessivos presentes aos jazzófilos. Desta vez, a grande surpresa fica por conta de dois discos raríssimos de Herbie Hancock, até então editados apenas em vinil no mercado japonês, em tiragem limitada, nos anos setenta. Ambos são verdadeiras obras-de-arte, agora finalmente disponíveis em larga escala e trazendo várias faixas inéditas. Os puristas não precisam se preocupar: tudo acústico, na linha mainstream, sem resquícios de fusion. Bonus-tracks também valorizam ainda mais dois relançamentos do mestre Duke Ellington (mais admirado como compositor e band-leader do que por seus dotes como pianista) e uma compilação do não menos genial Bill Evans.
Geniais improvisos
Para desespero dos tradicionalistas, que adoram patrulhar, rotular e limitar, Herbie Hancock sempre transitou por diversas correntes sem perder a majestade. Com igual habilidade, vai do bop ao funk, do fusion ao hip-hop, com a mesma categoria. Em meados dos anos 70, após o estouro de vendas de “Chameleon”, na liderança do eletrificado conjunto Headhunters, voltou-se novamente para o “straight-ahead jazz”, criando o supergrupo acústico VSOP em 1976. Na verdade, tratava-se basicamente do memorável quinteto de Miles Davis dos anos 60, com Hancock, Ron Carter, Tony Williams e Wayne Shorter. Mas com uma diferença fundamental: no lugar de Miles, então fora de cena por problemas de saúde, estava um Freddie Hubbard no auge da forma. Onde Miles era “cool”, sutil e insinuante, Freddie era “hot”, viril, explosivo.
Por diferentes motivos, o VSOP fez apenas uma turnê pelos EUA, em julho de 77, documentada em “The quintet”, único álbum lançado no mercado americano. “O grupo, considerado avançado demais pelos puristas e tradicional demais pelos modernistas, enfrentou críticas pesadas; seus integrantes eram vistos como traidores que não tinham direito de retornar ao mainstream, e por isso a gravadora nunca se interessou em lançar os discos subseqüentes nos Estados Unidos”, explica Bob Belden no texto do livreto. E assim, mais uma vez, os felizardos japoneses foram os únicos a ter o privilégio de colecionar maravilhas como “Tempest in the Colosseum” e este “Live under the sky” (77m57s/76m24s), gravado em 79 no famoso festival ao ar-livre, em Tokyo, hoje desativado.
No CD-duplo, às 7 faixas do LP original (documentado em 26 de julho) somam-se 11 inéditas do concerto da noite seguinte. Arrebatadores improvisos em alucinadas versões de “Eye of the hurricane” (renovando os preceitos do hard-bop), “Para Oriente” (tema de Williams misturando elementos de blues, boogaloo, bop e swing) “Tear drop”, “Fragile” (duas refinadas composições de Carter), “Domo”, “Pee Wee”, e uma homenagem de Hubbard à Miles, “One of another kind”. Todos descem o sarrafo, mas os mais abismantes solos são cortesia de um endomoniado Freddie Hubbard, incessantemente “provocado” pela frenética polirritmia de Tony Williams, quebrando tudo na bateria.
“Foi uma noite fenomenal, inesquecível”, escreve o próprio Herbie nas liner-notes escritas em maio de 2004. “Pela primeira vez estava sendo usado um equipamento de gravação digital tão sensível que captou os pingos da chuva torrencial (e que podem ser ouvidos nos momentos de maior calmaria musical, como os solos de Ron Carter). Na hora do bis, a banda estava tão exausta que somente eu e Wayne encontramos forças para voltar ao palco”. Isto explica porque, depois da introdução de Herbie em “Stella by starlight”, Wayne erra o tom ao fazer sua entrada no sax tenor. Esperto, disfarça com uma firula e compensa o vacilo com arrebatadora leitura da linda balada de Victor Young, levando a platéia a urrar de prazer.
Herbie segue brilhando em “The piano” (52m15s), captado em 25 & 26 de outubro de 78 no estúdio da Sony em Tokyo, no sistema “direct-to-disc”. Ou seja: gravação direta para o acetato, sem edição posterior. No entanto, a performance-solo zen, translúcida e plácida de Hancock foi gravada “ao vivo” para um equipamento digital ainda em fase de testes, uma espécie de protótipo do CD desenvolvido por Toshi Doi, criador do walkman, grande fã de Herbie e idealizador do projeto. Duas suítes formavam o LP original. No lado A, três standards associados a Miles: “My funny valentine”, “On Green Dolphin Street” e “Someday my prince will come”, abordadas em clima introspectivo, sem afetações ou melodramaticidade. No B, quatro jóias de Hancock: “Harvest time” (sublime balada que tive a honra de produzir, com Herbie, para um LP de Yana Purim em 87), “Sonrisa”, “Manhattan island” e “Blue Otani”. Quatro alternate-takes, inéditos, foram adicionados ao CD. Indispensável para quem acredita em Brad Mehldau, Uri Caine e Papai Noel.
Poemas sonoros
Figura emblemática, rara unanimidades perante jazzófilos de todas as tribos, Duke Ellington (1899-1975) tem dois títulos reeditados via Legacy, supervisionados por Michael Cuscuna. “Piano in the background” (64m09s), de 1960, traz releituras de hits tipo “What am I here for”, “Perdido” e “Take the A train”, com arranjos de Gerald Wilson (atuante também como trompetista) e Bill Matthieu. Os grandes solistas da orquestra – Jimmy Hamilton, Paul Gonsalves, Harry Carney, Johnny Hodges, entre outros – se esbaldam, enquanto Duke, menos discreto do que habitualmente como pianista, toca um instrumento de 99 teclas, ao invés das 88 usuais. Sem falar das canjas de Billy Strayhorn e Juan Tizol (trombone). O LP continha 9 faixas, mas no CD temos 14, incluindo dois takes de “Lullaby of Birdland” (cartão de visitas de George Shearing) e um inédito “Harlem air shaft”.
O outro CD, “Blues in orbit” (61m36s), creditado a Ellington and his Award Winners, gravado em 1958 e 59, conta com um cardápio menos batido, embora trazendo “In a mellow tone” e o desgastado “C-Jam blues”. Mais vale saborear “The swinger’s jump”, “Sweet & pungent”, a parceria de Duke & Strayhorn em “Smada” (com Billy ao piano) e a faixa-título, de tintas impressionistas e clima spaced-out, também ouvida num take inédito agrupado entre as 8 bonus-tracks que se somam às 11 do LP original. Novamente coube a Mark Wilder remixar tudinho, aprimorando tremendamente a qualidade de som.
E por falar em impressionismo, Bill Evans, um dos grandes adoradores de Debussy & Ravel, ganha a coletânea “Piano player” (72m16s), compilada por Orrin Keepnews, incluindo gravações com Miles Davis (“My funny valentine” ao vivo em 58) e o vibrafonista Dave Pike (“Besame mucho”, “Vierd blues”). Dentre as 8 faixas inéditas, a suíte “All about Rosie” (com a orquestra de George Russell em 57, bem diferente da versão gravada dez dias depois para o LP “Modern jazz concert”), “Fun ride” (uma “sobra” do LP “The Bill Evans album”, de 71) e seis duos com Eddie Gomez captados durante “ensaios” em 1970. Bill às vezes soma piano acústico e Fender Rhodes – com ótimos resultados, vale dizer –, enquanto a experiência de Eddie no baixo elétrico não deu muito certo, limitando-se a apenas uma música. “Django” (tributo de John Lewis ao cigano Reinhardt), “Comrade Conrad” e “Gone with the Wind” estão entre os melhores momentos. Pura poesia.
Legenda:
“Herbie Hancock em preciosa sessão de piano-solo”
1 comment:
Olá, Arnaldo!
Queria lhe convidar a conhecer meu blog sobre polirritmia: www.takadime.com
Um abraço,
Gustavo Gitti
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