Tuesday, May 22, 2007

Tom e Tamba na bossa do vinil


Tom e Tamba na bossa do vinil
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 5 de Junho de 2003 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Depois das supostas benesses do Plano Real, que permitiu aos cultos admiradores de É O Tchan e afins se endividarem comprando CD-players em 18 vezes sem juros - enriquecendo breganejos e pagodeiros, e ajudando a empobrecer mais um pouquinho a música brasileira - o vinil virou coisa do passado, comercializado em sebos empoeirados. Tá certo, os jovens “antenados” da geração ecstasy até sabem da existência do bolachão graças aos DJs, cuja profissão ganhou outro significado, estimulada por tramóias e patifarias. (Para quem não sabe, DJ antigamente era um termo usado no tempo distante em que as rádios eram programadas por disc-jockeys e não pelo departamento comercial oficializador do jabá). Mas tem criança que se assusta quando vai ao cinema e vê o trailer de “Durval Discos”. “Aquele troço preto, com um buraco no meio, tocava música?”, perguntam-se assustadas as gatinhas da geração Kelly Key.

Enquanto isso, em terras de além-mar, o vinil cambaleou mas não tombou. As gravadoras mais inteligentes continuaram realizando lançamentos simultâneos em CD e LP (sim, meninada, o tal do vinil antigamente chamava-se LP, que significava long-playing, e felizmente não há espaço para explicar o surgimento do termo). Firmas como a Technics (alguém se lembra?) seguiram fabricando “toca-discos”, também chamados de “vitrolas” porque derivavam das “victrolas” patenteadas pela RCA Victor – ah, que nomes deliciosos! Hoje, vinte anos após a invenção dos compact-discs, tem muita gente abominando os CDs, e consumindo exclusivamente LPs. A ponto de várias empresas obterem enorme lucro vivendo exclusivamente do som quente, abrasivo, cheio de “punch”, dos abençoados vinis. Entre elas, a Speakers Corner Records (www.spearkerscorner.de), que nem precisa criar material próprio para faturar horrores.

Sediada em Gettorf, Alemanha, vive de licenciar maravilhas de catálogos alheios, negligenciados por tubarões preocupados apenas com o mercadão. A mais recente safra da Speakers Corner consta de quatro pérolas pinçadas do acervo da A&M Records, outrora poderosa companhia fundada por Herb Alpert & Jerry Moss em meados dos anos 60, hoje reduzida a simples selo dentro da Universal. Em 1967, ao inaugurar um departamento de jazz, a A&M contratou os serviços do produtor Creed Taylor, nascendo assim a CTI (Creed Taylor Incorporation) que mais tarde proclamaria sua independência. Pois os quatro “audiophile vinyls” agora ressuscitados, para antegozo dos connoisseurs, são justamente da parceria A&M/CTI, gerados no estúdio do mago Rudy Van Gelder. Dois deles, sofisticados exemplos da época em que nossos músicos & compositores primavam pela combinação fatal de requinte harmônico, sutileza melódica e irresistível balanço rítmico, influenciando fortemente o jazz. Os outros dois LPs, igualmente antológicos, são frutos da genialidade de jazzmen que ousaram transcender as fronteiras do gênero - para desespero dos puristas bobocas – inclusive assimilando as tais influências brasileiras. Todos os quatro, portanto, cheios de bossa.

Jazz fascinante

Começando pelos jazzistas, temos o maior guitarrista de todos os tempos – Wes Montgomery – barbarizando ao longo de “Down here on the ground”, seu segundo disco para a A&M. Gravado entre dezembro de 1967 e janeiro de 68, marcou uma nova fase na carreira de Wes, ampliando a popularidade conquistada através dos álbuns na Verve, já sob a orientação de Creed Taylor, após a fase inicial de muito prestígio, mas pouca grana, na Riverside de Orrin Keepnews. Autoditada que não sabia ler uma partitura, Wes gravou as bases liderando um timaço formado por Herbie Hancock (piano), Ron Carter (baixo), Grady Tate (bateria) e Ray Barretto (congas). O craque Don Sebesky adicionou sutis orquestrações em oito faixas, com o cardápio mesclando sucessos pop do grupo Tijuana Brass (“Wind song”) e de Burt Bacharach (“I say a little prayer for you”), dois blues do próprio Wes (“Up and at it”, “Goin’ on to Detroit”, esta a música inicialmente escalada para dar nome ao disco) e temas de filmes.

Jóias como “When I look in your eyes” (recentemente regravada por Diana Krall), “The fox” e a faixa-título (do filme “Cool hand luke”), estas duas assinadas pelo argentino Lalo Schifrin. Em “Down here” e “Know it all” (título americano para “Quem diz que sabe”, parceria de João Donato & Paulo Sergio Valle que ficou entre as 12 finalistas do II FIC, entoada pelo Quarteto 004), os arranjos ficaram a cargo de um jovem brasileiro de 25 anos, então iniciando carreira nos EUA graças à generosidade de Luiz Bonfá. Um certo Eumir Deodato, que somou percussão (Bobby Rosengarden no pandeiro), vibrafone (Mike Mainieri), trio de flautas e quarteto de cordas à seção rítmica. Reza a lenda que Eumir havia sido convidado por Creed para orquestrar o disco inteiro, mas recusou, alegando não estar pronto para encarar tamanha responsabilidade. Imaginem se estivesse!

Deodato também participa, ainda que de forma bem mais discreta, do soberbo LP “Summertime”, de Paul Desmond, tocando violão (!) na recriação de “Lady in cement”, tema composto por Hugo Montenegro para o filme homônimo estrelado por Sinatra. Outro brasileiro, Airto Moreira, desempenha papel muito mais expressivo, seja tocando percussão em três faixas (inclusive “Ob-la-di, ob-la-da” dos Beatles, quase transfigurada em xaxado) ou estraçalhando na bateria na melhor faixa do disco, a transformação perfeita do dixie “Struttin’ with some barbecue” (criação de Louis Armstrong no longínquo 1941) em samba de tremenda malemolência. O soberbo repertório – captado entre outubro e dezembro de 68 - abriga também as comoventes baladas “Olvidar” (de Sebesky, a música favorita de Marcos Vasconcellos), “Emily” e “Where is love?”, sob medida para a inimitável sonoridade “dry Martini” de Desmond, o sax-alto mais sensual da história do jazz, ao lado de Johnny Hodges. Na orquestra, mestres do porte de J.J. Johnson, Kai Winding, Urbie Green, Jay Berliner, Bucky Pizzarelli, Joe Beck e Leo Morris (Idris Muhammad, antes da conversão ao Islamismo).

Bossa sedutora

Após o sucesso no Brasil como Tamba Trio, o grupo liderado pelo gênio Luiz Eça tentou conquistar o mundo como Tamba 4. Rubem Ohana substituía Hélcio Milito na bateria, Bebeto continuava na flauta e nos vocais (além de uma eventual tumbadora), mas passou a revezar o contrabaixo com o novato (22 anos!) Dório Ferreira, também excelente violonista. Esta formação gravou, em setembro de 67, “We and the sea”, a estréia no mercado americano. Petardo que deve ser definido como “progressive bossa”, tal a ousadia estética e a densidade do conteúdo: recriações explosivas de “O morro não tem vez” (culminando com um avassalador solo de Ohana a la Gene Krupa), “Consolação” (alucinantes alterações de andamento ao longo de mais de oito rapsódicos minutos) e “Canto de Ossanha”, a singeleza vocal de Bebeto em “Moça flor”, e o minimalismo lírico de “Dolphin”.

Entre março e maio de 1970, Creed Taylor produziu material suficiente para dois álbuns de Tom Jobim. Primeiro saiu “Tide”, um dos últimos da associação do produtor com a A&M. Logo depois chegou ao mercado “Stone flower”, um dos primeiros discos da CTI na sua nova fase de gravadora independente. No auge da criatividade, Jobim lançou diversos temas de saudável tempero jazzístico no exclusivamente instrumental “Tide”, a começar pela suntuosa faixa-títula, uma variação sobre “Wave”. Trouxe ainda as irretocáveis “Caribe”, “Remember” e “Sue Ann” (do filme “The adventurers”), a charmosa “Takatanga”, o groove sedutor de “Rockanalia”, o antológico solo de Hermeto Pascoal na flauta em “Tema jazz”, e a eterna beleza do “Carinhoso” Pixinginha. Tudo com a ajuda inestimável do batera João Palma (perfeita combinação de sutileza e swing, sucessivas aulas de condução no prato), do baixista Ron Carter e do arranjador Eumir, além de Joe Farrell, Jerry Dodgion e tantos outros. Detalhe: os relançamentos reproduzem fielmente as mixagens e as capas duplas originais, com todas as fotos e textos. Mais um motivo para serem cobiçados por quem perdeu (nos dois sentidos) ou “gastou” as primeiras prensagens, e até mesmo pelos que conhecem apenas as reedições em CDs mal remixados. Mãos à web!

Foto: Tom Jobim durante as gravações de “Tide”

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