Tuesday, May 22, 2007

As caixas de Christian e Hancock


As caixas de Charlie Christian e Herbie Hancock
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 8 de Janeiro de 2003 e originalmente publicado no jornal "Tribuna da Imprensa"

Lançadas no mercado americano no apagar das luzes de 2002, as caixas retrospectivas das carreiras de Charlie Christian e Herbie Hancock aparecem agora nas importadoras. Ambas são indispensáveis não apenas para os fãs destes dois grandes artistas, mas também para qualquer jazzófilo interessado em documentos sonoros de valor histórico. Seth Rothstein, diretor de projetos especiais do selo Legacy, da Sony, idealizou as duas caixas, auxiliado pelos produtores Michael Brooks & Michael Cuscuna (Christian) e Bob Belden & David Rubinson (Hancock). As luxuosas embalagens são um caso à parte: a caixa de Christian reproduz um antigo amplificador de guitarra da marca Gibson, enquanto a de Hancock mais parece uma escultura transparente feita em acrílico, espécie de obra de arte contemporânea que dá até pena de ser violada.

Gênio da guitarra

Não há como se referir a Charlie Christian sem usar o velho clichê de “um dos maiores nomes na história do jazz”. Na verdade, a história da guitarra conheceu uma nova etapa com Christian (1916-1942), que em seus 25 anos de vida deixou registradas algumas das mais influentes gravações de todos os tempos. No livreto de 70 páginas estão, inclusive, depoimentos de guitarristas apaixonados pelo gênio – de Barney Kessel a Joe Satriani, passando por B.B. King, John Scofield, Bill Frisell e até Vernon Reid. Há também dezenas de fotos preciosas, um emocionado depoimento de Les Paul, um longo texto biográfico assinado por Peter Broadbent (administrador do acervo do músico e autor de um livro sobre Charlie publicado pela editora inglesa Ashley Mark), e detalhada análise de cada faixa, feita por Loren Schoenberg, que tocou na banda de Benny Goodman e atualmente dirige o Jazz Museum, no Harlem.

Apropriadamente intitulada “The genius of the electric guitar”, a caixa reúne quatro CDs, num total de 99 faixas. Dentre elas, 17 inteiramente inéditas, além de 27 gravações até então nunca editadas nos EUA. Cobrem o período em que Christian trabalhou com o clarinetista Benny Goodman em várias formações – de sexteto à big-band, entre outubro de 1939 a março de 1941. “Já se passaram mais de 60 anos desde que Charlie provou que uma guitarra poderia suingar tanto quanto qualquer outro instrumento de jazz”, resumiu Jude Gold na revista Guitar Player. “Muitas de suas frases imortais ainda têm importante papel na linguagem evolutiva da guitarra. Ele incorporou linhas alternadas, frases cromáticas e arpejos líricos que ouviu enquanto acompanhava instrumentistas de sopro, e habilmente adaptou esses sons para a guitarra. Quando adquiriu uma Gibson ES-150 e um amplificador, passou a projetar seus solos sobre a banda e isso o transformou num sucesso imediato”.

As faixas com o Benny Goodman Sextet mostram Christian ao lado de nomes como o vibrafonista Lionel Hampton e os pianistas Fletcher Henderson, Johnny Guarnieri e Count Basie. São jóias como “Flying home” (a gravação de estréia com Goodman), “Rose room” (abrigando um dos melhores solos de Charlie), “Stardust”, “Soft winds”, “Seven come eleven” (primeira parceria de Christian & Goodman), “The sheik of Araby” e “Shivers”. Entre as raridades, a faixa “Untitled Tune”, de título e autoria desconhecidos! Com a presença do tenorista Lester Young, uma das maiores influências do guitarrista, rola até uma improvisação batizada de “Ad lib blues”. Com o trompete de Cootie Williams, barbarizam em takes inéditos de “Six appeal”, além de “Whooly cats” e “As long as I live”. Reforçado pelo tenor de Georgie Auld, o grupo gravou a célebre “Air mail special” e a deliciosa “Breakfast feud”, também ouvida em vários takes alternativos.

Integrando o Metronome All Star Nine (Gene Krupa na bateria, Harry James no trompete, Jess Stacy no piano, Jack Teagarden no trombone e Benny Carter no sax-alto, entre outros), Charlie aparece em “All star strut”. Com a orquestra de Goodman, arrebenta em “Solo flight”, parceria com Benny e o arranjador Jimmy Mundy. Vale citar ainda, como curiosidades extras, duas longas seqüências do sexteto ensaiando “Benny’s bugle” (incluindo diálogos entre os músicos), e uma jam-session de 21 minutos.

Mestre dos teclados

Outra pancada, “The Herbie Hancock box” traz, espalhadas em quatro CDs, 34 faixas extraídas de 25 discos – muitos deles fora de catálogo -, cobrindo os diferentes períodos em que o mestre dos teclados esteve associado à antiga Columbia, atual Sony. No livreto de 60 páginas, Herbie comenta quase todas as músicas em depoimento ao crítico Chuck Mitchell. Há apenas uma faixa inédita: uma versão meio atabalhoada, em andamento muito rápido e pouco balançado de “Red clay”, clássico do trompetista Freddie Hubbard, gravada com a participação do autor no tempo do grupo VSOP que contava com Ron Carter no baixo, Tony Williams na bateria e Wayne Shorter nos saxofones. Ou seja, o célebre quinteto de Miles nos anos 60, com o mago substituído por Hubbard.

Os outros momentos do VSOP são sublimes. Principalmente as faixas tiradas de discos originalmente gravados e lançados somente no mercado japonês, como “Tempest in the colosseum” (ao vivo em 77), “Five stars” (registro de estúdio em 79) e “Live under the sky” (também de 79, mas ao vivo no antigo festival de jazz que rolava em Tóquio). São petardos tipo “Domo”, “The eye of the hurricane” (18 minutos de “musical bravura”) e “Para oriente” (pauleira composta por Williams). Na famosa parceria de Miles & Ron Carter em “Eighty-one” (lançada no disco “ESP”), o baixista rouba a cena com um solo em que é acompanhado apenas pelas palmas da platéia. “Diana” - plácida balada de Shorter composta para seu LP-solo “Native dancer”, e dedicada à filha de Airto & Flora Purim - ficaria melhor numa coletânea do saxofonista, já que a participação de Herbie é secundária. Aliás, a ficha técnica cita Hubbard, mas o trompetista não toca nesta faixa.

Também fruto de um dos mega-concertos do VSOP no Japão, o medley juntando “Stella by stralight” e “On Green Dolphin street” acaba se constituindo num dos pontos altos da caixa. Hancock & Shorter voltaram ao palco sozinhos para o bis, e armaram esta improvisação ultra-espontânea, provocando urros de êxtase no público tal a densidade emocional da performance. Ainda com o VSOP, mas trocando o piano acústico pelo elétrico Yamaha CP-70, Herbie revisita “Maiden voyage”. Apenas num trio com Carter & Williams, passeia por “Dolphin dance” e “Milestones”, relendo “The sorcerer” com a ajuda de um endiabrado (e ainda não mascarado) Wynton Marsalis em 81. A porção acústica completa-se com “Harvest time” (número de piano-solo), “Liza” de Gershwin (brilhante duo com Chick Corea em 78), e a gravação de “’Round midnight”, de Monk, para a trilha do premiado filme de Bertrand Tavernier em 85, que deu a Herbie seu primeiro e único Oscar. Para quem não se lembra, Bobby McFerrin transforma sua voz num trompete assurdinado, sem macaquices.

Igualmente contagiante, embora não tão homogênea, a parte eletrônica inclui curiosidades (o tema do filme “Death wish”), maravilhas (“Butterfly”, “Actual proof”) momentos corriqueiros tipo “Come running to me” (uma das primeiras gravações em que se fez uso do “vocoder”) e bobagens robotizadas como “Rockit”. Duas faixas do LP “Mr. Hands” (de 1980) são notáveis, especialmente graças as atuações dos baixistas Jaco Pastorius (“4 a.m.”) e Ron Carter (“Calypso”), esta última com a percussionista Sheila Escovedo (na fase pré-Prince) usando até caxixis. Do disco “Headhunters” (73), um divisor de águas na carreira de Hancock, que despertou a ira dos puristas pela adesão ao funk, foram pinçados os hits “Watermelon man” (com uma nova levada rítmica bolada pelo batera Harvey Mason, bem diferente da gravação de Mongo Santamaría) e “Chameleon”, cujo riff gruda no ouvido.

Hancock desdobra-se em um arsenal de sintetizadores analógicos da marca ARP em “Nobu”, o pouco valorizado baixista Paul Jackson e o sumido baterista Mike Clarke roubam a cena em “Actual proof”, mas nada supera a beleza melódico-harmônica de “Butterfly”, que enfeitiçou até mesmo Henry Mancini. O solo de piano elétrico Fender Rhodes é antológico, assim como a sonoridade obtida por Bennie Maupin ao somar saxello (espécie de sax-soprano) com clarone na exposição do tema. Exemplo da máxima que Miles ensinou a Herbie: “o pior erro é o medo”. Falou, tocou e disse.

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