Tuesday, May 22, 2007

Adeus a Juarez Araújo e Zé Bodega


Adeus a Juarez Araújo (foto) e Zé Bodega
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro 8 de Outubro de 2003 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa" e reproduzido, sem autorização, em diversos websites

No intervalo de apenas quinze dias, o Brasil se despediu de dois dos nossos 10 melhores saxofonistas de todos os tempos. Dia 20 de Setembro, aos 80 anos, morreu José de Araújo Oliveira, mais conhecido pela alcunha de Zé Bodega. Dia 5 de Outubro, aos 72, Juarez Assis de Araújo. Ambos pernambucanos e apaixonados por jazz, mas com grande vivência na música brasileira. Partilhavam até o sobrenome Araújo, embora não fossem parentes. Tocaram – em épocas diferentes, obviamente – com Elizeth Cardoso e Roberto Carlos. Foram colegas nas fileiras da Orquestra da Rede Globo, na nem tão longínqua época (os músicos contratados, que se revezavam em três turnos no estúdio Sigla, foram dispensados em meados dos anos 80) em que os maestros da casa eram craques como Cipó (já falecido) e Geraldo Vespar (aposentado). Bons tempos em que as edições das fitas (sim, gravava-se em fitas!) eram feitas na gilete, com precisão cirúrgica, por outro que já partiu, Ieddo Gouveia, livrando-se de ter hoje que se degladiar com programas de edição digital tipo ProTools.

A única coincidência triste foi a redação das duas notícias de falecimento publicadas no “plantão” do site de um grande jornal carioca. Algo assim: “morreu fulano de tal, um dos maiores músicos brasileiros, que gravou com grandes nomes da MPB, lançou vários discos, tocou em orquestras, bares e casas noturnas”. Que conhecimento, hem? Pelo menos os obituários foram um pouco menos ridículos, e com um pouquinho de informação, embora ainda longe de fazerem jus aos mestres. Artigos? Nem pensar. Desde quando morto paga jabá? E me lembrei da tristeza que senti quando da morte de dois amigos não menos brilhantes, Laurindo Almeida e Milton Banana. Liguei para as redações de dois jornais, falei com pessoas que eu, nos meus últimos momentos de inocência, achava que eram interessadas em música (afinal, gabam-se do título de “críticos”), propus matérias e, claro, nada aconteceu. Lembro da desculpa dada pelo herege para não ter que falar sobre Laurindo: “sei pouco sobre o velhinho”. Coloquei, então, meu arquivo à disposição do elemento, que vaticinou: “não adianta insistir, ele era odiado aqui”. Aqui aonde? Na redação do jornal? No país? Boquiaberto, desliguei e desisti.

Com Milton Banana foi mais ou menos a mesma coisa, com uma desculpa pior: “ele morreu num dia ruim, no final de semana não fica ninguém da área de cultura na redação, e agora, já passou do ponto”. O morto ou a notícia? Para variar, nos dois casos – Laurindo e Milton – a Tribuna da Imprensa foi o único jornal a publicar extensos artigos sobre suas brilhantes trajetórias. Recebi emocionadas cartas de leitores que guardo com carinho. E fico pasmo ao ver como, após o tal do samba-jazz virar “cult”, e bossa nova virar coisa de gente “antenada” (baratas?), os mesmos boçais que ignoraram Milton e Laurindo em vida e na hora da morte, hoje tecem loas na maior disfarçatez, numa parlapatice que visa demonstrar erudição e, principalmente, garantir a grana do press-release de algum eventual relançamento.

Sim, porque o mesmo Milton que morreu na miséria, dormindo de favor nos sofás do então reativado Little Club, sem gravadora e sem ver seus discos reeditados em CD, agora conta com diversos títulos recuperados. Neste caso, pelo menos a (falta de) ética que rege os critérios das máfias dos relançamentos, serviu para alguma coisa boa. Neste país tão estranho, cada dia mais abundante em propinodutos, acabamos por torcer que este oportunismo também se manifeste em relação a Bodega e Juarez, pois nenhum deles possui um disco em catálogo.

No caso de Zé Bodega, que raramente gravou como líder, ao menos uma jóia deveria ser reeditada imediatamente: “Um sax no samba”, lançado pela antiga Continental (cujo acervo pertence à Warner, agora conhecida como “a gravadora da Maria Rita”). Neste LP irretocável, o tenorista se fazia acompanhar pela Orquestra de Severino Araújo (seu irmão), na verdade uma versão ampliada da Tabajara, com direito a Waltel Blanco na guitarra e uma poderosa seção de rítmica comandada por Pedro Sorongo e Jadir de Castro. No cardápio, petardos tipo “Água de beber”, “Amor de janela”, a esquecida “Quero morrer no Carnaval” e a famosa “Palhaçada”. Outro item precioso é o 78rpm gravado com Radamés Gnatalli (piano) e Luciano Perrone (bateria) também na Continental, trazendo o choro “Bate papo” e a valsa “Caminho da saudade”. Os discos de Juarez também virariam sucesso instantâneo nas pistas de dança londrinas se redescobertos. Principalmente “Sua Excelência o sax” (o LP de estréia, em 61, ano da famosa participação no Festival Sul-Americano de Jazz de Punta del Este), “Sax maravilha”, “Saxsambando”, “Bossa nova nos States”, “O inimitável Juarez” e o raríssimo “Bossa nova Brasil - autêntico”, lançado nos EUA pelo selo ABC-Paramount, hoje da Universal.

Para quem nada conhece sobre as geniais figuras, breves resumos. Zé Bodega começou a tocar sax-tenor aos 15 anos com o pai, José Severino de Araújo, o popular Sasuzinha, mestre-de-banda (alguém sabe hoje o que é isso?) na cidade de Limoeiro, no interior de Pernambuco. Cresceu na vizinha Ingá, na Paraíba. A partir de 45, quando seu irmão, o clarinetista e band-leader Severino Araújo decidiu trazer para o Rio toda a formação original da Tabajara, ingressou na orquestra – ao lado de mais três manos (clarinetista, saxofonista e líder), Plínio (trompetista que virou baterista), Manuel (trombone) e Jaime (sax-alto) – ocupando o posto de líder da seção de saxofones. A partir dali, sua vida e a estória da Tabajara se misturam para sempre, viajando com a orquestra pela Europa nos anos 50, tocando nas principais rádios do Rio (Mayrink Veiga, Nacional e na Tupi, onde aconteceu a histórica “batalha” com a banda de Tommy Dorsey em 51), e nos anos 60 transferindo-se para a TV Rio, até a banda encerrar suas atividades temporariamente em 1970.

Dentre as dezenas de discos de Bodega com a Tabajara, o primeiro pedido de reedição vai não para os LPs mais antigos, mas para o discaço de 75, na Odeon. Produzido pelo saxofonista Meirelles (outro que amargou tenebroso período no ostracismo até ser “resgatado”, êta termo inglório, pelos mesmos gabolas que o ignoraram durante décadas), reativou a orquestra. No majestoso vinil de inauguração da série “Depoimentos” que durou dois números (mais uma piada sem graça da indústria fonográfica nacional), a orquestra reviveu no lado A seus maiores sucessos (“Espinha de bacalhau”, “Um chorinho em aldeia”, “Saudades do norte”) em arranjos irretocáveis, monumentais, enquanto dedicou o lado B para sambas mais recentes como “Conto de areia” e “No silêncio da madrugada”, tratados de forma igualmente notável. E com mais um detalhe: fantástica qualidade de som, valorizando ainda mais os solos de Zé Bodega no choro-canção (sim, isso existia) “Mirando-te”, no partido-alto “Dente por dente” do campeão Martinho da Vila, e “Se não for por amor”, do patrulhado Benito di Paula.


Pouco depois, tive o privilégio de ver a Tabajara lotando o Teatro João Caetano nos tempos do Projeto Seis e Meia, de Albino Pinheiro, em 76, estopim para uma redescoberta que desaguou nas famosas domingueiras do Circo Voador. Mas sem Zé Bodega, que depois de gravar com meio mundo – de Martinho da Vila a Gilberto Gil (“Refavela”), de Tim Maia a K-Ximbinho (“Saudades de um clarinete”), de Deodato a Tony Bizarro (“Nesse inverno”) – abandonara subitamente a orquestra nos anos 80, após um concerto em São Paulo. Ovacionado após um solo, passou mal ao ver uma multidão de jovens gritando seu nome, achou que ia ter um ataque cardíaco, e decidiu parar de fazer shows. Ainda assim, continuou gravando desde “Amar prá viver ou morrer de amor”, de Erasmo Carlos (82), ao “Chorinho in concert”, do amigo Zé Menezes, em 95. Se o fato tivesse ocorrido com Juarez Araújo, este teria se divertido à beca. Não se estressava nunca, vivia e tocava rindo, em constante felicidade. Dormia, respirava e se alimentava de música. Este ser iluminado tocou até suas últimas forças se esgotarem, ou seja, até o mês passado, encantando os fiéis fãs em jams na Modern Sound e na Brasserie Europa, em duos com o pianista Paulo Sá.

Juarez Araújo, nascido na cidade de Surubim, passou por Recife e Natal antes de desembarcar em Sampa, em 45, trabalhando com Clovis Elly e Sylvio Mazzuca. Tocava clarinete, sax soprano e barítono, mas sua preferência era o tenor. Veio para o Rio em 56, ingressando na orquestra de Osvaldo Borba. Nos anos 60, a carreira como líder floresceu através de vários discos, além do trabalho com o Brazilian Jazz Sexteto. Nunca aceitou os convites para morar no exterior – talvez tivesse ficado milionário. Não se encaixava no padrão de “músico de estúdio”, mas gravou e tocou bastante (inclusive liderando a Orquestra Polyfolia) até os anos 80, com Elizeth (“Cantadeira do Amor”), Gal Costa (“Gal tropical”, “Aquarela do Brasil”), e Elba Ramalho (“Flor da Paraíba”). Suas últimas gravações foram com Rabo de Lagartixa (“Quebra-queixo”), Roberto Marques (“Trombone do Brasil”) e Ithamara Koorax, arrasando no clarinete na faixa “Lígia”, do CD “Love dance”, que tive a honra de produzir. Sua sonoridade aveludada e o fraseado refinado chamaram a atenção de críticos como Ira Gitler.

Também trabalhamos juntos na temporada do quarteto do baterista João Palma no Vinicius Bar, em 1997, filmada para um especial da TV japonesa. Por coincidência, tinha um novo show agendado com Palma para novembro, no Partitura. Superou uma trombose mas não resistiu a um tumor no intestino. Morreu de fato em 5 de outubro de 2003, dois dias antes de completar 73 anos. Mas já havia sido assassinado em 1998 quando a inominável Enciclopédia da Música Brasileira, editada pelo Itaú Cultural, sentenciou em seu verbete: falecido no Rio em 15 de setembro de 1986. Alguns dos músicos presentes ao enterro lembraram do fato, revoltados. Mas, à noite, estavam tocando numa emocionante jam-session no Antonino, organizada para arrecadar fundos para a família. Uma celebração da vida com muito jazz, ao estilo de Juarez Araújo.

2 comments:

ppp said...

Olá Arnaldo.
Sei que já se passou muito tempo desde sua postagem, mas, quem seriam os 10 grandes saxofonistas brasileiros desse Ranking???

Abraços

Arnaldo DeSouteiro said...

Os meus favoritos, além do Juarez Araujo e do Zé Bodega:
Jorginho (Jorge Ferreira da Silva)
Casé
Moacyr Silva
Moacir Santos
Paulo Moura
Victor Assis Brasil
Apenas uma lista. Sem ordem de "classificação" e sem incluir os músicos ainda atuantes (de Aurino Ferreira a Zé Bigorna, de Mauro Senise a Leo Gandelman) na cena contemporânea.
Qual seria a sua lista?
Abs,