De volta ao passado
Arnaldo DeSouteiro
Arnaldo DeSouteiro
(Artigo escrito em 5 de Junho de 2002 e publicado no jornal "Tribuna da Imprensa")
Nem tem mais graça reclamar. Mas, como a situação não muda e quase nada de novo aparece, o jeito é continuar tratando das reedições e compilações que continuam abarrotando as prateleiras. Colocando a culpa na recessão, as gravadoras se recusam a investir em novos projetos, preferindo revirar os acervos. Às vezes até descobrem material inédito, como é o caso de mais um concerto do grupo de all-stars Jazz at the Philharmonic (juntando Ray Brown, Charlie Parker, Shelly Manne, Coleman Hawkins e Fats Navarro, entre outros) captado a apenas... 53 anos! Material fresquíssimo, pois. Esta safra traz também uma irregular antologia de Hank Crawford & Jimmy McGriff, uma boa aventura de McCoy Tyner combinando sopros & vozes, a péssima coletânea “Brisa brasileira”, e duas caixas (cada uma com três CDs) batizadas “Jazz ballads” e “The smooth jazz piano” que são verdadeiras anomalias.
Equívocos monstruosos
Existe algo pior do que executivo de gravadora brasileira fazendo compilação de bossa nova? Parece impossível, mas existe: produtor de gravadora japonesa compilando bossa nova. E entre as piores coletâneas dos últimos tempos, “Brisa brasileira”, assinada por Masato Asoh para a Sony, desponta como a maior aberração possível. O rico infeliz conseguiu a proeza de juntar as gravações mais ridículas que encontrou pela frente. Coisas inimagináveis como “Carcará” (sim, eles pensam que a canção de João do Vale é bossa nova!) cantada em inglês por Nancy Ames. Ou a patética versão para “Mas que nada”, rebatizada “Pow pow pow” pelo grupo The Arbors.
A tragédia prossegue com a orquestra de Percy Faith afogando “O pato”, a dupla Elkin & Nelson na horrenda “Samba samba”, e Edson Conceição professando “Quem tem fé, não sai” de lindíssimo refrão: “Eu conheço gente que morreu e voltou prá me assombrar/Melhor não ter morrido, era mais um prá conversar”. Depois de tamanho baixo astral, a salada prossegue com Claudia Telles na breguice de “Um momento qualquer”, uma tal de Vania (?) atacando de Roberto & Erasmo (“Gabriela, mais bela”), Anne Haigis fazendo um pastiche do fabuloso “Samba Michel” de Flora Purim & Michel Colombier, e a dupla Cynara & Cybele se esforçando em “Na boca da noite”. Um espanto!
O ridículo da caixa de três CDs “The smooth jazz piano” começa no próprio título. Quem esperar uma seleção deste insípido pop-jazz que rola nas rádios americanas tipo CD101FM, vai se decepcionar. Entre as 37 faixas, apenas uma (“Lost voices”, com Bill O’Connell) se encaixa no gênero. Mas o responsável pela compilação, que sequer teve coragem de assinar seu nome, nem quis saber de coerência. E muito menos de ter trabalho preparando ficha técnica. Ironicamente, a seleção deste lançamento do selo alemão Trilogie até que não é ruim. Estão presentes feras como Art Tatum (“You took advantage of me”), Chick Corea (“Seabreeze”), Bud Powell (“Tea for two”), Oscar Peterson (“My heart stood still”), Dave Brubeck (“Take five”) e até Jelly Roll Morton (“King porter stomp”).
Só que tudo misturado, sem nenhuma sequência lógica, alternando gravações antiquíssimas e de baixa qualidade técnica com registros recentes. Poderia servir como um painel dos diversos estilos pianísticos, mas virou uma loucura sem pé nem cabeça. Afinal, fica difícil digerir Meade Lux Lewis mandando ver em “Doll house boogie”, num registro dos anos 30, cheio de ruído, ensanduichado por McCoy Tyner (“Miss Bea”) e Ahmad Jamal (uma performance funkyada de “Na baixa do sapateiro”). Como também não faz o menor sentido colocar o maior pianista do jazz europeu contemporâneo - Jurgen Friedrich na soberba “Summerflood”, gravada em 98 – espremido entre relíquias dos velhos mestres Fats Waller (“Ain’t misbehavin’”) e Nat King Cole (“Fudge wudge”).
O mesmo sacana irresponsável cometeu outro CD-triplo, “Jazz ballads”, de embalagem aparentemente luxuosa. Mas, como bem se sabe, as aparências enganam. Ao abrir a caixa, nada de folheto, nada de ficha técnica. E logo na primeira faixa, o pobre coitado que gastou uma grana na importadora, pensando em relaxar na cadeira de balanço, vai se sentir ludibriado. Mais: vai tomar um tremendo susto com a pauleira “True confessions”, do baixista Mark Egan, com solos diabólicos de Randy Brecker e Bob Berg sobre uma levada pesadona de Dennis Chambers. A música é ótima, claro, mas nunca foi nem será uma balada. Aliás, é preciso muita cara-de-pau para classificar “All blues” (de Miles Davis), “Baby please” (Savoy Brown), “The future is now” (Bobby Murray) e “The tonality of atonement” (frenético hard-bop do saudoso Kenny Kirkland) como “jazz ballads”.
Neste embuste entram ainda baladinhas melosas (“Close the door”, “Too fast”) na linha r&b do saxofonista Donald Harrison, autor do afoxé-fusion “Oshum, Goddess of love”, comandado pelo guitarrista Larry Coryell. Também fora de contexto estão Ernie Watts (“Rituals of swing”), Snowy White (“Looking for somebody”) e Charles Fambrough recriando “Don Quixote”, tema de Cesar Mariano ao qual Milton Nascimento adicionou letra em 88 no disco “Miltons”. Na verdade, o rótulo de balada jazzística cabe a pouquíssimas faixas como “All across the city” (Jim Hall), “Lullaby for Laura” (Steve Laury) e “Beautiful love”, tema do pianista muçulmano Abdullah Ibrahim, mais conhecido como Dollar Brand.
Boas lembranças
Documentado ao vivo na noite de 2 de novembro de 1949, um show do grupo Jazz at the Philharmonic se transformou no CD “Norman Granz’ JATP – Carnegie Hall, 1949” graças ao produtor Eric Miller, que encontrou as fitas e lançou o material pelo selo Pablo. O próprio Granz, no papel de mestre de cerimônias, anuncia o timaço: Charlie Parker e Sonny Criss (sax-alto), Flip Phillips (tenor), Fats Navarro (trompete), Tommy Turk (trombone), Hank Jones (piano), Ray Brown (baixo) e Shelly Manne (bateria). Esta turma se esbalda em três longas faixas – “Leap here”, “Indiana”, “Lover come back to me” -, fazendo a platéia uivar ao final de cada solo. Na segunda parte, a seção rítmica e o genial Navarro ficam no palco para acompanhar o lendário tenorista Coleman Hawkins, brilhando especialmente nas baladas “Sophisticated lady” e “The things last summer”.
Produzido por Bob Porter para a Milestone, “The best of Hank Crawford & Jimmy McGriff” coleta material gravado pela dupla em quatro álbuns no período1986-1998, sempre no estúdio do mago Rudy Van Gelder. A qualidade musical, porém, é irregular, oscilando entre o lirismo pungente de “Because of you” (com George Benson bordando na guitarra) e o groove rasteiro de “Bow legs” (fraca contribuição de Cornell Dupree). Benson atua ainda na despretensiosa “Frim fram sauce”, em clima de jam-session, única faixa com o batera Mel Lewis. Crawford, no sax-alto, exibe sua sonoridade inconfundível em “Second time around”, “One mint julep” e “The river’s invitation”, valorizada pelo piano de Billy Preston. Organista de primeira categoria, McGriff tem bons momentos em “Any day now” e “Jumpin’ with Symphony Sid”, mas nada acrescenta à banal versão de “Mr. PC”.
Recomendado sem restrições, “Inner voices”, concebido pelo pianista McCoy Tyner em 1977, finalmente volta ao mercado através da série Original Jazz Classics, da Fantasy Records. Em fase de intensa criatividade, Tyner escreveu vigorosos arranjos para as irretocáveis cinco faixas que formam uma suite informal, adicionando seção de sopros e um coro (sete vocalistas) que também funciona como um naipe de metais. O efeito é estonteante logo no tema de abertura, “For tomorrow”, apenas com piano, o baixo de Ron Carter e as vozes. O baterista Eric Gravatt (ex-Weather Report) ataca em “Uptown” (solo de Jon Faddis no trompete) e “Opus”, substituido por Jack DeJohnette em “Rotunda” (sem os sopros) e “Festival in Bahia”, de pulsação brasileira reforçada pelo percussionista Guilherme Franco. Em grande forma no violão, Earl Klugh nem parece o músico previsível que vive desperdiçando seu talento em discos medíocres. A convivência com Tyner deve ter ajudado...
Nem tem mais graça reclamar. Mas, como a situação não muda e quase nada de novo aparece, o jeito é continuar tratando das reedições e compilações que continuam abarrotando as prateleiras. Colocando a culpa na recessão, as gravadoras se recusam a investir em novos projetos, preferindo revirar os acervos. Às vezes até descobrem material inédito, como é o caso de mais um concerto do grupo de all-stars Jazz at the Philharmonic (juntando Ray Brown, Charlie Parker, Shelly Manne, Coleman Hawkins e Fats Navarro, entre outros) captado a apenas... 53 anos! Material fresquíssimo, pois. Esta safra traz também uma irregular antologia de Hank Crawford & Jimmy McGriff, uma boa aventura de McCoy Tyner combinando sopros & vozes, a péssima coletânea “Brisa brasileira”, e duas caixas (cada uma com três CDs) batizadas “Jazz ballads” e “The smooth jazz piano” que são verdadeiras anomalias.
Equívocos monstruosos
Existe algo pior do que executivo de gravadora brasileira fazendo compilação de bossa nova? Parece impossível, mas existe: produtor de gravadora japonesa compilando bossa nova. E entre as piores coletâneas dos últimos tempos, “Brisa brasileira”, assinada por Masato Asoh para a Sony, desponta como a maior aberração possível. O rico infeliz conseguiu a proeza de juntar as gravações mais ridículas que encontrou pela frente. Coisas inimagináveis como “Carcará” (sim, eles pensam que a canção de João do Vale é bossa nova!) cantada em inglês por Nancy Ames. Ou a patética versão para “Mas que nada”, rebatizada “Pow pow pow” pelo grupo The Arbors.
A tragédia prossegue com a orquestra de Percy Faith afogando “O pato”, a dupla Elkin & Nelson na horrenda “Samba samba”, e Edson Conceição professando “Quem tem fé, não sai” de lindíssimo refrão: “Eu conheço gente que morreu e voltou prá me assombrar/Melhor não ter morrido, era mais um prá conversar”. Depois de tamanho baixo astral, a salada prossegue com Claudia Telles na breguice de “Um momento qualquer”, uma tal de Vania (?) atacando de Roberto & Erasmo (“Gabriela, mais bela”), Anne Haigis fazendo um pastiche do fabuloso “Samba Michel” de Flora Purim & Michel Colombier, e a dupla Cynara & Cybele se esforçando em “Na boca da noite”. Um espanto!
O ridículo da caixa de três CDs “The smooth jazz piano” começa no próprio título. Quem esperar uma seleção deste insípido pop-jazz que rola nas rádios americanas tipo CD101FM, vai se decepcionar. Entre as 37 faixas, apenas uma (“Lost voices”, com Bill O’Connell) se encaixa no gênero. Mas o responsável pela compilação, que sequer teve coragem de assinar seu nome, nem quis saber de coerência. E muito menos de ter trabalho preparando ficha técnica. Ironicamente, a seleção deste lançamento do selo alemão Trilogie até que não é ruim. Estão presentes feras como Art Tatum (“You took advantage of me”), Chick Corea (“Seabreeze”), Bud Powell (“Tea for two”), Oscar Peterson (“My heart stood still”), Dave Brubeck (“Take five”) e até Jelly Roll Morton (“King porter stomp”).
Só que tudo misturado, sem nenhuma sequência lógica, alternando gravações antiquíssimas e de baixa qualidade técnica com registros recentes. Poderia servir como um painel dos diversos estilos pianísticos, mas virou uma loucura sem pé nem cabeça. Afinal, fica difícil digerir Meade Lux Lewis mandando ver em “Doll house boogie”, num registro dos anos 30, cheio de ruído, ensanduichado por McCoy Tyner (“Miss Bea”) e Ahmad Jamal (uma performance funkyada de “Na baixa do sapateiro”). Como também não faz o menor sentido colocar o maior pianista do jazz europeu contemporâneo - Jurgen Friedrich na soberba “Summerflood”, gravada em 98 – espremido entre relíquias dos velhos mestres Fats Waller (“Ain’t misbehavin’”) e Nat King Cole (“Fudge wudge”).
O mesmo sacana irresponsável cometeu outro CD-triplo, “Jazz ballads”, de embalagem aparentemente luxuosa. Mas, como bem se sabe, as aparências enganam. Ao abrir a caixa, nada de folheto, nada de ficha técnica. E logo na primeira faixa, o pobre coitado que gastou uma grana na importadora, pensando em relaxar na cadeira de balanço, vai se sentir ludibriado. Mais: vai tomar um tremendo susto com a pauleira “True confessions”, do baixista Mark Egan, com solos diabólicos de Randy Brecker e Bob Berg sobre uma levada pesadona de Dennis Chambers. A música é ótima, claro, mas nunca foi nem será uma balada. Aliás, é preciso muita cara-de-pau para classificar “All blues” (de Miles Davis), “Baby please” (Savoy Brown), “The future is now” (Bobby Murray) e “The tonality of atonement” (frenético hard-bop do saudoso Kenny Kirkland) como “jazz ballads”.
Neste embuste entram ainda baladinhas melosas (“Close the door”, “Too fast”) na linha r&b do saxofonista Donald Harrison, autor do afoxé-fusion “Oshum, Goddess of love”, comandado pelo guitarrista Larry Coryell. Também fora de contexto estão Ernie Watts (“Rituals of swing”), Snowy White (“Looking for somebody”) e Charles Fambrough recriando “Don Quixote”, tema de Cesar Mariano ao qual Milton Nascimento adicionou letra em 88 no disco “Miltons”. Na verdade, o rótulo de balada jazzística cabe a pouquíssimas faixas como “All across the city” (Jim Hall), “Lullaby for Laura” (Steve Laury) e “Beautiful love”, tema do pianista muçulmano Abdullah Ibrahim, mais conhecido como Dollar Brand.
Boas lembranças
Documentado ao vivo na noite de 2 de novembro de 1949, um show do grupo Jazz at the Philharmonic se transformou no CD “Norman Granz’ JATP – Carnegie Hall, 1949” graças ao produtor Eric Miller, que encontrou as fitas e lançou o material pelo selo Pablo. O próprio Granz, no papel de mestre de cerimônias, anuncia o timaço: Charlie Parker e Sonny Criss (sax-alto), Flip Phillips (tenor), Fats Navarro (trompete), Tommy Turk (trombone), Hank Jones (piano), Ray Brown (baixo) e Shelly Manne (bateria). Esta turma se esbalda em três longas faixas – “Leap here”, “Indiana”, “Lover come back to me” -, fazendo a platéia uivar ao final de cada solo. Na segunda parte, a seção rítmica e o genial Navarro ficam no palco para acompanhar o lendário tenorista Coleman Hawkins, brilhando especialmente nas baladas “Sophisticated lady” e “The things last summer”.
Produzido por Bob Porter para a Milestone, “The best of Hank Crawford & Jimmy McGriff” coleta material gravado pela dupla em quatro álbuns no período1986-1998, sempre no estúdio do mago Rudy Van Gelder. A qualidade musical, porém, é irregular, oscilando entre o lirismo pungente de “Because of you” (com George Benson bordando na guitarra) e o groove rasteiro de “Bow legs” (fraca contribuição de Cornell Dupree). Benson atua ainda na despretensiosa “Frim fram sauce”, em clima de jam-session, única faixa com o batera Mel Lewis. Crawford, no sax-alto, exibe sua sonoridade inconfundível em “Second time around”, “One mint julep” e “The river’s invitation”, valorizada pelo piano de Billy Preston. Organista de primeira categoria, McGriff tem bons momentos em “Any day now” e “Jumpin’ with Symphony Sid”, mas nada acrescenta à banal versão de “Mr. PC”.
Recomendado sem restrições, “Inner voices”, concebido pelo pianista McCoy Tyner em 1977, finalmente volta ao mercado através da série Original Jazz Classics, da Fantasy Records. Em fase de intensa criatividade, Tyner escreveu vigorosos arranjos para as irretocáveis cinco faixas que formam uma suite informal, adicionando seção de sopros e um coro (sete vocalistas) que também funciona como um naipe de metais. O efeito é estonteante logo no tema de abertura, “For tomorrow”, apenas com piano, o baixo de Ron Carter e as vozes. O baterista Eric Gravatt (ex-Weather Report) ataca em “Uptown” (solo de Jon Faddis no trompete) e “Opus”, substituido por Jack DeJohnette em “Rotunda” (sem os sopros) e “Festival in Bahia”, de pulsação brasileira reforçada pelo percussionista Guilherme Franco. Em grande forma no violão, Earl Klugh nem parece o músico previsível que vive desperdiçando seu talento em discos medíocres. A convivência com Tyner deve ter ajudado...
No comments:
Post a Comment