Monday, June 4, 2007

Obra-prima de Jim Hall volta em CD e LP




Obra-prima de Jim Hall volta em CD e LP
”Concierto”, um marco na carreira do guitarrista, é novamente relançado
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiros em 26 de Outubro de 2006 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Depois de ter sido relançado em dois formatos (SACD e DVD-A) que disputam a preferência dos audiófilos mais antenados, “Concierto”, a obra-prima de Jim Hall, reaparece agora também em CD convencional e vinil, pela primeira vez como um LP-duplo. O CD, editado no Japão dentre os quarenta títulos da série “CTI Timeless Collection”, com distribuição da poderosa King Records, traz as quatro faixas do LP original, que somam 38m06s. Preservando as mixagens originais de Rudy Van Gelder, devidamente remasterizadas pelo engenheiro Seiji Kaneko, teve o preço fixado em 1 mil e 500 ienes. Uma pechincha!

A igualmente luxuosa prensagem em vinil de 180 gramas, realizada pela companhia inglesa Pure Pleasure, que se dedica exclusivamente a realizar relançamentos em vinil de discos antológicos – “Louis Armstrong plays W.C. Handy”, “After midnight – complete session” de Nat King Cole, “We insist! Freedom now suite” de Max roach, e “Get back home in the USA” do bluesman John Lee Hooker também já estão disponíveis – custa 28 libras. Preço salgado mas que se justifica.

Além das faixas do disco original (“You’d be so nice to come home to”, “Two’s blues”, “The anser is yes” e “Aranjuez”), há cinco bonus-tracks mixadas por Danny Kadar. São elas as responsáveis por transformar o álbum simples em duplo, com as faixas extras ocupando o segundo bolachão. No lado C entraram “Rock skippin’”, “Unfinished business” e um alternate-take de “You’d be so nice to come home to”. No lado D, os alternate-takes de “The answer is yes” e “Rock skippin’”. No total, 68m13s de encantamento.

As duas edições se equivalem em termos de apresentação gráfica. Ambos os livretos preservam a foto de capa do inigualável Pete Turner, a ilustração “clean” de Thomas B. Allen (da revista The New Yorker), o “design” original do então diretor de arte da CTI Bob Ciano, e o texto de apresentação assinado pelo insuperável crítico Leonard Feather. No CD, há liner-notes adicionais, em japonês, do crítico Koji Murai. Mas, é claro, o vinil tem um charme especial, inclusive pelas dimensões da capa. Curiosamente, o som se apresenta mais comprimido no “corte” do vinil do que na masterização digital, em 24bits, do CD.

Quando originalmente lançado nos Estados Unidos, em fins de 1975, Concierto” alcançou um modesto 17° lugar na parada de jazz da Billboard. No Japão, tornou-se best-seller instantâneo, chegando a cem mil cópias vendidas em apenas um mês, e permanecendo no topo da parada de jazz da revista Swing Journal por três meses. Fácil explicar: além da soberba qualidade das performances, trazia duas das melodias mais amadas por lá: “You’d be so nice to come home to” e o adágio do “Concierto de Aranjuez”. Para se ter uma idéia de como, ainda hoje, permance cultuado pelos jazzófilos nipônicos, basta dizer que esta é a sua sétima reedição em CD no Japão.

Nos EUA, apesar da vendagem mais modesta, não foram poucas as reedições, tanto em vinil pela própria CTI (em 1979 e 1981, com diferentes artes gráficas) como em CD, via Sony, em 87, e depois com embalagem digipack em 97. Como curiosidade, vale citar que foi também o primeiro disco da CTI a ser relançado em CD na Europa, distribuído pela alemã Metronome Musik, em 1984 – mais uma prova de seu status, mais do que merecido, no mundo do jazz.

Disco antológico

“Concierto” surgiu como fruto de duas únicas sessões de gravação, em 16 e 23 de abril de 1975. Na opinião de nove entre dez fãs de Jim Hall, trata-se da obra-prima do guitarrista. Disco considerado indispensável também para os admiradores de todos os participantes – Paul Desmond, Chet Baker, Ron Carter, Steve Gadd, Roland Hanna e Don Sebesky, captados em desempenhos irretocáveis. Nem mesmo os detratores do produtor Creed Taylor, amaldiçoado pelos puristas por fazer projetos taxados de “comerciais”, conseguem apontar defeitos no álbum.

“Aquele disco nasceu da forma mais espontânea possível. Apenas escolhi o tema de Cole Porter para a abertura, a obra de Joaquin Rodrigo como a peça central, e recrutei os músicos, deixando o resto nas mãos do Sebesky”, comentou Creed, 76 anos de sapiência, em nosso último encontro no escritório da CTI Records, em Nova Iorque. “O melhor LP na história da CTI”, resumiu Ken Dryden no website All Music Guide. “Um clássico, cuja faixa-título é um momento excepcional na história do jazz”, definiu outro historiador de renome, Douglas Payne. “Reúne um grupo de magníficos músicos telepaticamente conectados por seus altamente refinados sensos de lirismo e dinãmica, uma seleção de composições apuradamente equilibrada entre o terreno e o sublime, e a liderança de um mestre-solista no auge da forma”, analisou Steve Futterman.

Na época da gravação, Desmond, o mais velho da turma, estava com 56 anos. Creed e Chet, em mais uma fase de recomeço, tinham 46. Depois vinham Jim (44), Roland Hanna (43), Ron e Don (37), e o caçula da turma, Steve Gadd (30). A integração deu-se de forma mágica, instantânea. Em entrevista à Down Beat, em dezembro de 1976, Hall comentou: “ Desmond e Ron Carter, que faziam parte do cast da CTI, comentaram que Creed Taylor estava interessado em fazer um disco comigo. Fui conversar com ele, Paul me encorajou a aceitar a proposta e acabamos gravando. A princípio, Creed queria algo de Villa-Lobos, mas Don Sebesky recomendou Aranjuez, do espanhol Joaquin Rodrigo”. No ano seguinte, Jim voltaria a gravar para a CTI, lançando “Big blues” em dupla com Art Farmer. Em 82, novamente com Chet, nasceu “Studio Trieste”, reprocessado como “Youkali” em 92.

Êxito completo

Em termos artísticos, “Concierto” repetiu o fenômeno verificado, em 73, com a adaptação de Eumir Deodato para “Also Sprach Zarathustra”. O poema sinfônico de Richard Strauss já recebera dezenas de regravações pop após a inclusão na trilha do filme “2001, Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick, e dava sinais de esgotamento. Ainda assim, transformou-se subitamente, graças ao arranjo fusion de Eumir, em mega-hit mundial. O célebre segundo movimento, Adágio, do “Concierto de Aranjuez”, havia sido integrado ao mundo do jazz por Miles Davis & Gil Evans no memorável “Sketches of Spain” (1960) e posteriormente por Laurindo Almeida e o Modern Jazz Quartet em “Collaboration” (1964).

A versão de Miles durava 16m19s. A de Laurindo com o MJQ, 11m50s. Jim Hall e seus alquimistas assistentes fizeram a magia durar 19m20s, ocupando o lado B inteiro do LP, superando o tempo máximo de 16 minutos por face estipulado por Creed e Rudy Van Gelder para os discos da CTI, a fim de evitar perda de qualidade dos microsulcos. Entretanto, Creed, que assim como Teo Macero costumava divertir-se fazendo edições durante as mixagens, decidiu nada cortar no álbum “Concierto”, mantendo todas as faixas intactas, exatamente como haviam sido gravadas no estúdio de Van Gelder, em New Jersey.

Encontros memoráveis

Jim Hall e Paul Desmond eram velhos amigos, tendo o guitarrista participado de alguns LPs do saxofonista para a RCA nos anos 60. Com Ron Carter, Jim tinha gravado “Alone together” em duo para a Milestone em 72. Mas “Concierto” foi o primeiro registro de Hall com Chet Baker. “Eu só havia estado com Chet uma única vez, nunca tínhamos tocado juntos, e isso me deixou um pouco apreensivo, principalmente por saber que Chet e Paul, pessoas de temperamentos distintos, estariam juntos nas mesmas faixas”, revelou ao saudoso Leonard Feather. Mas o guitarrista logo se tranqüilizou ao ver o saudável clima de alto-astral reinante no estúdio.

Na primeira sessão, em 16 de abril de 75, Creed Taylor procurou deixar Hall à vontade sugerindo a gravação de dois temas de origem familiar. “Two’s blues”, de autoria do líder, mostra Chet (então voltando à ativa, via CTI, após um de seus longos períodos de afastamento para tratar da dependência de drogas) em irrepreensível forma técnica, expondo o tema em contraponto com as frases de baixo e guitarra. O trompetista parte para um solo vibrante, de surpreendentes frases rápidas, seguido por um improviso de guitarra mais “hot” do que “cool” para os padrões de Hall. Steve Gadd, que começara nas vassourinhas, muda para as baquetas durante os improvisos, e também faz um curto solo, preparatório para a volta ao tema.

Seguiu-se “The answer is yes”, de Jane Hall, esposa do guitarrista e cantora amadora que chegou a participar do disco seguinte do marido, “Commitment”, para o selo Horizon, de John Snyder. Após a introdução despretensiosa de Jim, que reduz a amplificação de seu instrumento ao mínimo, Chet expõe a melodia e esquenta o clima, deixando-o na temperatura ideal para o solo do líder. O piano de Roland Hanna surge “out of the blue” durante o segundo “chorus” de Hall, de uma forma tão inesperada e espontânea que dá a sensação de que Roland se atrasou e entrou no estúdio naquela hora. E, obviamente, também arrasa em seu improviso, assim como Chet, atiçados pela dobradinha Carter-Gadd.

Pura magia

Uma semana depois, Jim retornou ao estúdio, desta vez com Paul Desmond adicionado ao grupo. Começaram gravando, como aquecimento, “You’d be so nice to come home to”, standard de Cole Porter em clima “straight-ahead”. A passagem do solo de Paul para o de Chet, quando o trompetista começa a se insinuar no final do improviso do saxofonista, obtendo singulares efeitos contrapontísticos, é um momento ímpar, de extrema genialidade. Chegam todos ao ápice na transcendental interpretação do Adágio de “Aranjuez”, cuja adaptação aparentemente simples (não confundir com simplista) de Sebesky, dispensando as grandiosas orquestrações típicas da CTI, proporcionou aos solistas um tapete mágico para vôos melódicos de imenso lirismo, ao elaborar uma nova estrutura harmônica dividida em quatro segmentos de oito, dez, oito e dezesseis compassos.

Os solos – Jim, Paul (destilando a essência da sonoridade “dry martini” de seu sax-alto), Chet (num dos melhores improvisos de sua vasta carreira discográfica), Roland (o Chopin do jazz, unindo romantismo e swing de modo singular) e Jim novamente – sucedem-se com extremo requinte e sutileza, como se todos estivessem um palmo acima do chão, flutuando. Ron, com seu toque aristocrático, garante a infalível base de segurança, enquanto Gadd esbanja criatividade ao fornecer, para cada solista, um “groove” diferente, estimulando-os incessantemente. Trata-se, vale frisar, da única faixa com “overdubbing”, pois Jim Hall acoplou um violão clássico, sem prejudicar a fluência da performance. E tudo transcorre sem atropelos, de forma límpida e translúcida, fazendo da faixa uma autêntica obra-de-arte.

A edição em vinil-duplo traz as seguintes faixas-bônus: alternate-take mais lento e mais curto de “The answer is yes”, com solos apenas de Chet e Jim, com Roland Hanna usando discretamente um piano elétrico Fender Rhodes; dois takes da deliciosa parceria de Duke Ellington & Billy Strayhorn em “Rock skippin’”, executado por Hall em andamento médio, sem os sopros, somente com a seção rítmica; uma variação de Jim, Ron & Desmond sobre a canção folclórica mexicana “La paloma azul”, previamente jazzificada por Dave Brubeck, e erroneamente identificada na fita-master como “Unfinished business” porque Creed não sabia o nome da música, gravada na base da brincadeira durante um intervalo da sessão; e um alternate-take de “You’d be so nice to come home to”, quase tão bom quanto o “oficial”, não fosse pelas imprecisões nos ataques dos sopros. Pura magia.


Legendas:
“A nova reedição em CD traz a mixagem original e o desenho feito por Thomas B. Allen, da revista The New Yorker”
“O álbum-duplo, prensado em vinil virgem de 180 gramas, inclui cinco faixas-extras”

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