Sunday, June 3, 2007

Charlie Parker, Roland Kirk & The Creed Taylor Orchestra em coletâneas temáticas





Coletâneas temáticas no inverno jazzístico
Sensualidade, suspense e clima “lounge” em ótimas gravações
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 6 de Julho de 2006 e publicada originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Neste início de inverno chuvoso, mais uma tempestade de coletâneas chega ao mercado. Ao contrário do que geralmente ocorre nas compilações de música brasileira, repetitivas, “organizadas” por incompetentes e paupérrimas em conteúdo informativo, sendo merecidamente vistas como produtos de quinta categoria, as jazzísticas aparecem cuidadosamente preparadas por experts. Bem embaladas em capas luxuosas, costumam trazer ficha técnica, fotos e até elucidativos textos.

Nesta fornada da Universal, há jazz para todos os gostos e níveis de exigência, mostrando o potencial de vendas das coletâneas temáticas. Da sensualidade de “Tease! The beat of burlesque” (o escrete vai de Charlie Parker a Roland Kirk, passando pela Creed Taylor Orchestra) ao clima de suspense em “Thriller jazz” (reunindo Lalo Schifrin, Quincy Jones e Sarah Vaughan), o catálogo do selo Verve é também revirado no passado glorioso (“Bar jazz”) e no presente duvidoso ainda a ser julgado (“Verve today 2006”).

Jazz afrodisíaco

Um selo colado na capa frontal anuncia “Tease! The beat of burlesque” (38m05s) como “titilating streaptease music”, destinada a afastar as inibições e trazer à tona desejos escondidos. Como resume o carimbo junto ao código de barras, trata-se de um produto de “shimmy and shake jazz”. O encarte desta deliciosamente sedutora compilação, organizada por Joey Altruda sob a supervisão de Ken Druker, traz lindas fotos da modelo Anna “The Ace” Curtis, uma louraça cujas curvas devem provocar alergia nos esclerosados puristas mitômanos entrincheirados nos seus clubinhos de inveja e difamação. Na contracapa, a lista do repertório somada à visão do irretocável derrière da moça, envolto por uma calcinha de renda, pode gerar brados de revolta por parte dos conservadores que zelam pelos bons costumes do “jazz puro, verdadeiro e sem concessôes”.

À exceção de “You did it, you dit it”, gravada em 1961 pelo multi-instrumentista Roland Kirk “humming” na flauta antes da fase Rahsaan, todas as outras faixas são dos anos 50. Os mais antigos registros datam de 1952: Slim Gaillard soltando a voz rascante em “St. Louis blues” (originalmente batizada “The Memphis itch” por William C. Handy em 1914) e Charlie Parker arrepiando em “Funky blues”, de um colega de instrumento, Johnny Hodges, de estilo e sonoridade inteiramente distintos. Lenda-viva do jazz, o conguero cubano Candido Camero (ainda ativo aos 85 anos recém-completados) ataca de “Blue prelude”, enquanto o saudoso guitarrista Barney Kessel mostra sua versatilidade em “Honey rock”.

Entre as raridades desencavadas, destacam-se temas dos maestros Elmer Bernstein (“Toots Shor’s blues”) e David Rose (“The stripper”), além de duas faixas da Creed Taylor Orchestra comandada pelo genial produtor em sua fase na ABC-Paramont, às vésperas de fundar o selo Impulse! O sinuoso sax-alto de Phil Woods, principal solista da banda, deita e rola em dois temas do cultuado LP “Lonelyville - The nervous beat”, de 1959, ainda inédito em CD: a faixa-título, com Dick Hyman ao piano, assinada pelo arranjador Kenyon Hopkins, e “St. James Infirmary”, de Joe Primrose, impulsionada por George Duvivier (baixo) e Don Lamond (bateria). Também nas fileiras da orquestra, músicos do porte de Jerome Richardson, Jimmy Cleveland, Barry Galbraith e Joe Venuto, omitidos da ficha técnica da compilação.




Clima de tensão

Depois desta coleção de jazz afrodisíaco, o clima permanece quente no CD “Thriller jazz” (52m31s), concebido por Matthias Kunnecke para provocar frêmitos auditivos através dos explosivos arranjos de alta densidade. Creed Taylor também continua presente, como produtor de várias faixas. No repertório, alguns temas de filmes e muitos dos seriados televisivos chamados, nos EUA, de “cop series”. Lalo Schifrin, um dos maiores autores de trilhas sonoras em todos os tempos, aparece em dose tripla, como compositor e intérprete de “Dirty Harry”, arranjador de “Charade”, de Henry Mancini, na medida para o sax-tenor aveludado de Stan Getz (com Hank Jones, George Duvivier, Mel Lewis e Kenny Burrell na base), e autor de “Missão impossível”, aqui na gravação do organista Jimmy Smith, orquestrada por outro ás da matéria, Oliver Nelson.

Sarah Vaughan aparece em raríssima versão com letra de “Peter gunn” (Mancini novamente), com Bud Shank no sax-alto e orquestração frenética de Bill Holman. Count Basie vem com tudo em “M-Squad” (arranjo de Chico O’Farrill), Quincy Jones barbariza em “Iron side” (sintetizadores imitando sirenes, solos de Hubert Laws na flauta, Jerome Richardson no soprano e Freddie Hubbard impecável no flugelhorn), John Gregory relembra o score de Nelson Riddle para “Os Intocáveis”, Roland Shaw revisita “The James Bond theme”, Alfred Hause preserva o estilo da gravação original de “Shaft” (de Isaac Hayes) e Robert Delgado aciona os metais faiscantes em “Hawai 5-0”.

Os grupos Rhythm Heritage (“SWAT”, do esquecido maestro Barry DeVorzon) e Button Down Brass (“French connection”, do trompetista Don Ellis) acentuam a atmosfera de eletrizante saudosismo, que se torna mais sofisticada graças ao sax-alto inconfundível de Paul Desmond no tema principal do filme “Lady in cement”, estrelado por Frank Sinatra no papel do detetive Tony Rome. A música, do craque Hugo Montenegro, surge abrasileirada pelas presenças de Airto Moreira (bateria) e Eumir Deodato (tocando violão!) neste registro de 1968 arranjado por Don Sebesky, cujo nome é inexplicavelmente deletado da ficha técnica. Sammy Davis Jr. canta a letra de Morgan Ames para “Keep your eye on the sparrow”, criação de Dave Grusin para o seriado “Baretta”, gravado até por Ron Carter. O registro mais recente traz o organista inglês de acid-jazz James Taylor revivendo, em 1988, “Gotcha”, o tema de Tom Scott para “Starsky & Hutch”.

Aperitivos sonoros

De fronteiras mais amplas e menos definidas, “Bar jazz” (65m49s), também compilado pelo renomado produtor alemão Matthias Kunnecke, não tem faixa alguma ruim. Começa com o samba-jazz “Captain Bacardi” de Tom Jobim (Ron Carter no baixo, Dom Um Romão na bateria, Bobby Rosengarden na cuíca, Urbie Green no trombone) e logo entra no predominante clima lounge através da belíssima “Dreamsville” de Mancini, com a organista Shirley Scott acoplando seu Hammond ao vibrafone de Gary McFarland. O cantor Mel Tormé vem com uma seção de cordas, regida por Russell Garcia, em “Moonlight cocktail”, seguido pelo guitarrista Kenny Burrell (“Rose room”) e pelos tenoristas Ben Webster & Coleman Hawkins que se encontram na romântica “Cocktails for two”. Webster atua também ao lado de Billie Holiday na célebre canção “One for my baby”, sob medida para a temática desta coletânea.

O sabor brasileiro retorna ao cardápio através do solo de violão do fantástico Bola Sete, então integrante do grupo de Dizzy Gillespie ao lado do pianista Lalo Schifrin, na leitura bossanovista de “In a shanty in old shanty town”. O baloiçante órgão de outro exilado ilustre, o pernambucano Walter Wanderley, aplica seu estilo único a “The bobo” (Francis Lai & Sammy Cahn), assessorado por Dom Um (bateria), José Marino (baixo), Affonso de Paula (percussão), Bucky Pizzarelli (guitarra) e Jerome Richardson (flauta). Meu saudoso amigo Gerry Mulligan (falecido antes que pudéssemos finalizar um belo projeto iniciado em NY através de John Snyder) deixa o barítono de lado e concentra-se no piano – ao lado de Art Farmer, Bob Brookmeyer e Jim Hall – na requintada “Night lights”, antecedendo o despojamento da cantriz Ruth Cameron, apoiada pelo marido Charlie Haden, em “Something cool”.

Vale ainda destacar o lendário acordeonista Art Van Damme na deliciosa “Cheers”, a orquestra do espanhol Xavier Cugat balançando ao sabor de “Daiquiri” (da dupla Djalma Ferreira & Luiz Antonio, arranjo de Hal Mooney), o trio The Three Sounds em “After hours”, Freddy Cole pedindo “Waiter, ask the man to play the blues”, Oscar Peterson mostrando seus dons como compositor (a vigorosa “The strut” na companhia de Ray Brown & Ed Thigpen) e, fechando o bar, a doidona Anita O’Day dividindo os holofotes com o vibrafonista Cal Tjader (“The party’s over”).

Presente preocupante

Infelizmente, o atual cast da Verve está longe de rivalizar com o de sua fase áurea. Prova disso, o CD “Verve today 2006” (74m18s), bolado para dar uma panorama dos recentes lançamentos, funciona apenas como soporífero, abrigando sucessivas decepções. Basta ouvir a faixa de aberura, “God bless the child” na voz de Gladys Knight, mais uma equivocada tentativa de tentar ressuscitar a carreira de uma cantora pop mergulhando-a em águas jazzísticas. Gladys berra e faz contorcionismos vocais, mas vai alcançando um resultado mais patético a cada segundo. O esforçado trompetista Roy Hargrove apresenta a confessional “Nothing serious”, e Toots Thielemans recebe a bela voz de Oleta Adams em respeitosa versão de “Stormy weather” (do tributo do gaitista a Harold Arlen).

Till Bronner, excelente trompetista alemão, erra feio com a soturna e monótona “A distant episode”. Bem pior é a bonitinha Rebekka Bakken com irritante sonoridade de cantora country em “Any pretty girl”, desperdiçando a (cara) presença da Filarmônica de Viena. O disco segue ladeira abaixo por conta de Elvis Costello & Allen Toussaint (“The sharpest thorn”), cabendo ao tenorista Chris Potter retardar o naufrágio via “The wheel”. Mas logo entra em cena a porção moderninha: The Mungolian Jet Set, RH Factor (grupo pseudo-fusion liderado por Roy Hargrove) e Richard Bona, afundado pelo rapper Davi Vieira, apesar das presenças de Marcos Suzano e Marcelo Martins. Até o veterano Salif Keita pisa na bola (“Karmoukie”), deixando para a cantora Torun Eriksen, talentosa beldade norueguesa, a tarefa de mostrar, na última faixa, que nem tudo está perdido no presente. Resta saber se resistirá ao futuro.

Legendas:
“Charlie Parker, Roland Kirk e Creed Taylor brilham em clima sedutor”
(capa do CD “Tease!”)
Grandes maestros e geniais solistas presentes em “Thriller jazz”
“Verve today 2006: panorama desalentador da cena jazzística”

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