Sunday, June 3, 2007

Basie, Corea, Ella Fitzgerald & Eric Clapton at Montreux



Mainstream e fusion em Montreux
De Count Basie a Chick Corea, passando por Ella Fitzgerald e Eric Clapton
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiros em 22 de Junho de 2006 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

As gravadoras reclamam que o mercado de DVDs sofreu, no mercado brasileiro, uma queda significativa em relação aos dois anos anteriores. Mesmo assim, o número de lançamentos segue crescendo, a ponto de algumas empresas priorizarem o formato, deixando os CDs em segundo plano. O selo paulista ST2 é um dos principais exemplos, apostando principalmente no vasto arquivo do Festival de Montreux, licenciado da americana Eagle Rock Entertainment. Tanto que, dentre mais de quarenta títulos já editados de shows captados no badalado festival criado por Claude Nobs, pouquíssimos (George Clinton e Jeff Healey, entre eles) saíram também em CD. E venderam bem menos do que as edições em DVD.

Uma nova fornada reflete a variedade estilística que fez de Montreux o mais famoso e controvertido festival de jazz do planeta, atraindo para a paradisíaca cidade suíça fãs dos mais diversos gêneros. O jazz mais conservador aparece geralmente na série “Norman Granz’s Jazz in Montreux”, dedicada às noitadas produzidas pelo empresário que, volta e meia, organizava caravanas dos artistas pertencentes ao cast do selo Pablo. Nada menos que dezesseis DVDs gerados durante shows e jam-sessions organizadas por Granz já estão disponíveis, incluindo várias apresentações de astros como Count Basie e Ella Fitzgerald.

O conde e a diva

Os mais recentes lançamentos de ambos foram filmados em 1977 e previamente editados em LP (via Pablo), CD (pela Fantasy) e LaserVideodisc (Pioneer). Depois da “Basie jam”, com o Conde liderando um sexteto em 1975, e do encontro com Ella no aclamado “The perfect match” de 79 – com a lendária banda mas quase todo sem o piano do líder, que toca somente na última música – o DVD “Count Basie Big Band”, com duração de 56 minutos, traz o mestre atuando em tempo integral como pianista e band-leader. Presença marcante, o guitarrista Freddie Green destaca-se centrando nas dissonâncias de “Freckle face” (de Sam Nestico), enquanto o tenorista Eric Dixon esbalda-se em “Spankly” (Neal Hefti). Outros belos solos: Al Grey no trombone de vara (“The more I see you”), o saudoso Waymon Reed, então marido de Sarah Vaughan, no flugelhorn (“Night in Tunisia”) e o sax-tenor de Jimmy Forrest em sua balada “Bag of dreams”, com uma coda muito aplaudida.

“I needs to bee’d with” tem piano saltitante na intro, apenas com seção rítmica, antes da banda explodir guiada pelo trombone (com surdina) de Grey, preparando os fãs para o clima sensual de “Lil’ darlin’” no sofisticado arranjo do autor Neal Hefti. Devido a problemas no vídeo original, não temos as versões integrais de “Jumpin’ at the Woodside” (começa em fade-in) e “Fantail” (cortada no início do solo de bateria – ademais, o título correto é “Whirly-bird”, também de Hefti), que aparecem mutiladas. Um curto bis, “One o’clock jump” manda a platéia para casa. Burocrático, mas divertido. A lamentar que nem a capa nem o livreto (com texto de Nat Hentoff) tragam os nomes dos autores, arranjadores e músicos. Portanto, serviço de utilidade pública do BIS: John Duke (baixo), Butch Miles (bateria), Danny Turner, Bob Plater e Charlie Fowlkes (saxes), Sonny Cohn, Lyn Biviano e Bobby Mitchell (trompetes), Bill Hughes, Danny Wilson e Mel Wanzo (trombones), além dos anteriormente citados. Ah, a faixa “Hittin’ Twelve”, do vinil, não consta do DVD.

Aulas de scat

Filmado na véspera (14 de julho de 77) do concerto de Basie, “Ella Fitzgerald & The Tommy Flanagan Trio” reúne, em apenas 47 minutos, dez músicas. A de abertura, “Too close for comfort”, é o ponto alto, seguida por “I ain’t got nothin’ but the blues”, a balada do repertório de Billie Holiday “My man” (com bonita intro do sempre discreto pianista Tommy Flanagan), uma versão meio burocrática, em andamento médio, de “Come cain or come shine”, e uma up-tempo de “Day by day”. Ella anuncia a balada “Ordinary fool”, de Paul Williams, como “Only a fool”, antes de disparar em um de seus scats alucinantes na performance sem letra para “Samba de uma nota só”, de Tom Jobim & Newton Mendonça, obviamente omitidos da ficha técnica, como infelizmente virou praxe nos DVDs.

“I let a song go out of my heart” serve como gancho para Ella promover o disco “Fitzgerald & Pass…again”, então recém-lançado. Provocando risos na platéia, um desajeitado roadie entra no palco para, sabe-se lá o motivo, trocar o microfone da cantora antes de “Billie’s bounce”, um tour-de-force que inclui imitação de trombone com surdina em outra aula de scat-singing. No único bis, aplausos entusiasmados assim que Ella inicia “You are the sunshine of my life”, a estilizada bossa de Stevie Wonder. Keter Betts (baixo) e Bobby Durham (bateria) têm atuação segura, mas sem momentos brilhantes, ajudando a fazer deste vídeo o menos interessante DVD de Ella nesta série, inferior às performances da diva nos anos de 1969 (ainda em preto & branco, em sua entusiasmada estréia em Montreux durante a turnê de divulgação do LP “Sunshine of your love”) e 79 (o Grammyado “A perfect match”).

Fusion reciclada

Aguardado com ansiedade – afinal marcou o primeiro reencontro do grupo em onze anos –, “Chick Corea Elektric Band live at Montreux 2004” decepciona. O show muito longo (duas horas e quarenta minutos) peca pela falta de entusiasmo. A primeira parte, inteiramente dedicada ao repertório do CD “To the stars”, inspirado no livro homônimo do guru de Chick, L. Ron Hubbard, inventor da cientologia (chamada no Brasil de dianética), consegue a proeza de render menos no palco do que no disco, soando cerebral em excesso. Os arranjos são muito bem escritos, repletos de passagens intrincadas executadas com maestria; há momentos de intenso lirismo, mas tudo isso em um plano superficial, sem transparecer emoção. O inegável virtuosismo dos músicos, plenamente integrados, não compensa a indisfarçável falta de tesão, exceto no caso do baixista John Patitucci, sempre vibrante.

Dave Weckl exibe sua técnica impressionante, acoplando bongôs (tocados com baquetas) ao enorme kit de bateria, com dois bumbos. O guitarrista australiano Frank Gambale está fisicamente irreconhecível, parece cansado e mostra um fraseado menos inventivo do que no apogeu do conjunto. No sax-alto, Eric Marienthal continua longe de ser brilhante, com improvisos de conteúdo ralo e uma sonoridade metálica. Corea pilota, com precisão costumeira, um pequeno arsenal de teclados que inclui piano acústico, piano elétrico Fender Rhodes e sintetizador Yamaha.

Na segunda parte, o rendimento melhora bastante, graças às excelentes composições “CTA” (abreviatura de Chicago Transity Authority, tema do saxofonista Jimmy Heath), a linda “Eternal child” (“música que nasceu de um sonho”, revela Corea) e o petardo “Got a match?”, sensacional tema dedicado a Joe Farrell no LP de estréia da Elektric Band em 86, aqui ensejando um ótimo solo do líder no sintetizador portátil, e faiscantes passagens executadas em uníssono por todos os músicos. Na recriação a meia-bomba de “Spain” – um dos maiores clássicos do jazz fusion, revelado em “Light as a feather”, obra-prima do Return to Forever (grupo que, pasmem!, nunca tocou em Montreux) – rola desnecessário “diálogo” com a platéia, convocada a responder as frases tocadas por Chick no Rhodes. No bis, “Blue Miles”, do disco “Paint the world”, de 93. Último comentário: nem um ET conseguiria ler o texto da contracapa do DVD, com letras verdes em fundo cinza.

Quinteto mágico

Bem menos pretensioso, “Legends live at Montreux 1997” (110 minutos) documenta o showzaço de um time de all-stars idealizado pelo baixista Marcus Miller para atuar na noite de abertura (4 de julho) do Festival com a seguinte formação: Eric Clapton, Steve Gadd, Joe Sample e David Sanborn. O resultado é surpreendente, sem ego-trips, com nítida camaradagem no palco, ótima interação e salutar clima de espontaneidade. E que som eles tiram de seus instrumentos! Ouve-se cada nota de Miller, responsável por armar grooves irresistíveis. Sanborn, o sax-alto mais imitado (e invejado) na história da música, possui uma “pegada” inconfundível que seus imitadores jamais conseguiram igualar. Gadd tem a execução mais limpa de bateria que já se ouviu, cria levadas diferentes para cada solo dos colegas, é a perfeição em pessoa. Sample é outro de approach inconfundível, seja no piano acústico, no Rhodes ou no Wurlitzer, dono de um balanço que não se aprende na escola.

Clapton completa o quinteto com uma atuação impecável, priorizando sua faceta como guitarrista, deixada em segundo plano nos últimos anos desde a fase “Unplugged” de “Tears in heaven”. Tanto que Eric só canta pela primeira vez na quinta música, o blues “Going down slow” (com Sample no piano elétrico Wurlitzer), depois de arrasar nos petardos instrumentais “Full house” (ótimo solo de guitarra a la John Tropea), “Groovin’”, “Ruthie” e “Snakes”. Também merecem destaque “The peeper”, “In case you hadn’t noticed” (Clapton no violão, Sample no piano acústico e Miller no baixo de seis cordas criando uma cativante atmosfera acústica), e “Put it where you want it”, sucesso de Joe na fase áurea de seu grupo Crusaders, encerrando o show.

No bis, Joe volta matando a pau no piano-solo de “Shreveport stomp”, relíquia de Jelly Roll Morton (1890-1941), desmontando a ridícula teoria dos haplosporídios puristas mitômanos (igualmente ridículos) de que músico revelado na cena fusion não conhece as “raízes do jazz”. Bobagem típica de quem mente tanto que já acredita na própria mentira, acha que publicou livros que nunca escreveu etc (“o mentiroso compulsivo tem baixa auto-estima e, através das falas fantásticas e dos acontecimentos inventados procura a admiração dos outros; vaidosa, maligna e perversa, a mitomania é típica de pessoas inseguras e covardes, associada ao ímpeto de tirar vantagem”, explicam os psicólogos). Depois, Miller retorna ao palco tocando clarone em duo com Sample no clássico Ellingtoniano “In a sentimental mood”, emendando com “Layla”, o mega-hit de Clapton que serve como “deixa” para o retorno dos outros músicos. O bis final acontece com Eric entoando o contagiante “Everyday I have the blues”, perante uma platéia em delírio. Por motivos que não necessitam de explicação psicológica.

Legendas
“Count Basie comanda sua afiada big-band em show de 1977”
“Eric Clapton é um dos astros reunidos no grupo de all-star Legends, em 1997”

No comments: