Sunday, June 3, 2007

Gene Bertoncini: "Quiet Now" em SACD





O delicado charme da sutileza
“Gene Bertoncini em bela aula de refinamento estético”
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 16 de Fevereiro de 2006 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Na contramão do exibicionismo gratuito, espalhafatoso e barulhento adotado por tantos artistas, um jazzman do porte do violonista Gene Bertoncini ainda opta pela sutileza decorrente de um alto nível de refinamento estético. Não freqüenta a parada de jazz da Billboard e seus discos tocam pouquíssimo nas rádios do gênero, hoje divididas entre devotos do smooth-jazz e do mainstream involutivo da linha Marsalis. Os trabalhos de Bertoncini não se encaixam em nenhum desses padrões, pois o delicado charme de suas requintadas performances passa longe do marasmo do smooth, e mais distante ainda da arrogância engravatada dos neo-boppers adorados sexualmente pelos “jazz snobs”. Se este artigo estivesse sendo escrito para uma publicação aqui dos EUA, um título preciso seria “The art of subtlety”, para honrar os mestres dessa linha de sofisticação que tinha na saudosa Shirley Horn o ponto máximo de referência.

Alta resolução

“Quiet now” (41m26s), mais recente disco-solo de Gene Bertoncini, lançado em Super Audio CD, vem no formato “SACD Hybrid”. Ou seja, roda em aparelhos de CD, DVD e SACD de todos os tipos (e preços). Claro que, ao degustar esta edição híbrida de “Quiet now” em um CD-player convencional, perde-se bastante da alta fidelidade inerente ao padrão UHR (leia-se Ultra High-Resolution) de 44.1kHz/16bits, obtido no estúdio novaiorquino AlgoRhythms pelo expert A. T. Michael MacDonald usando o sistema GAIN 2 (Greater Ambient Information Network) de masterização digital. Porém, para desfrutar de toda a gama sonora de freqüências de alta definição, é preciso ouvi-lo num DVD-player que também reproduza SACDs ou em equipamento específico de SACD, dotado de decodificador DSD (Direct Stream Digital).

Matéria de capa na edição deste mês da revista 20th Century Guitar, Bertoncini conta a Robert Silverstein todo o processo de elaboração de “Quiet now”, sua mais recente obra-de-arte. Para quem pensa que um disco de violão-solo é tarefa fácil e rápida, totalmente improvisada, vale transcrever alguns comentários do artesão de sons: “Não escolhi as canções, foram elas que me escolheram”, brinca. “Este disco representa, antes de tudo, um processo de arranjo para violão-solo. À medida em que as canções me vinham à mente, eu começava a colocar nas partituras as idéias que iam surgindo: clusters, open string voicing, arpejos, as linhas de baixo etc, ao mesmo tempo em que procurava analisar cada aspecto da harmonia. Enfim, um processo realmente demorado, no qual misturei elementos do jazz e da música clássica para mostrar o violão como uma pequena orquestra”.

A sensação de espontaneidade vem do clima da gravação “ao vivo” no estúdio da Ambient Recording Company, em Connecticut, com o engenheiro Mark Conese (co-produtor do disco, ao lado de Bertoncini) usando apenas dois microfones. Nada de overdubs. Portanto, se em algum momento tivermos a impressão de que há mais de um músico atuando, esta sensação deve ser creditada ao virtuosismo introspectivo de Gene. Aos 68 anos de idade e 61 de carreira (“comecei a tocar aos sete anos, em um programa de TV chamado The Children’s Hour, na rede NBC”), ele relembra ter estudado com Johnny Smith (o guitarrista favorito de Luiz Bonfá nos anos 50), Chuck Wayne e dois professores clássicos: Albert Valdez Blaine e Alexander Bellow. Hoje, transmite seus ensinamentos às novas gerações lecionando na William Patterson University e na Eastman School of Music, além das aulas particulares.

Brilhante carreira

Freqüentemente os alunos chegam trazendo alguns dos mais de duzentos LPs dos quais Gene participou, principalmente em seu período de maior atividade nos estúdios de NY, nos anos 60 e 70, quando registrou discos antológicos como sideman de Clark Terry, Benny Goodman, Ron Carter, Paul Desmond (“Skylark”), Hubert Laws (“Afro-classic”, “Rite of spring” e “Carnegie hall”, todos na fase áurea da CTI), Wayne Shorter, Havana Carbo, Lalo Schifrin (o histórico “Marquis de Sade”), Lena Horne, Tony Bennett, Michel Legrand (tanto no contexto de small-combo em “After the rain” como integrando uma grande formação orquestral no brilhante “Twenty songs of the century”, tocando guitarra em ambas as ocasiões), Burt Bacharach, Astrud Gilberto e Luiz Bonfá, grande amigo e admirador que o convidou a atuar como “rhythm guitarist” nos discos “Sanctuary”, “The new face of Bonfá”, “Non-Stop to Brazil” e “The Bonfá Magic”, que tive a honra de produzir em 1991. Durante a parte gravada em NY, no estúdio de Eumir Deodato, sugeri a Bonfá que, pela primeira vez, Gene deveria não apenas fazer a base, mas também ter um “solo spot” na música “Menina Flor”. Não por acaso, tornou-se a faixa mais executada do CD nas rádios de jazz dos EUA.

Gravou também com Mark Murphy, Ronnie Foster, Louie Bellson, Bette Midler, Nancy Wilson, Herbie Mann, Nnenna Freelon, Chet Baker, Morgana King, Stanley Turrentine e Grover Washington Jr. Os álbuns de Bertoncini como líder – jóias do porte de “Bridges”, “Close ties”, “Strollin’” e “Two in time”, em duo com o baixista Michael Moore, e “O grande amor”, em trio completado pelo mitológico baterista Edson Machado – não alcançaram as paradas de sucesso, mas são cultuados como obras-primas e referências básicas do violão jazzístico. O mesmo pode ser dito dos discos-solos (“Someone to light up my life”, “Body and soul”) e dos duos com os guitarristas Kenny Poole (“East meets midwest”), Frank Vignola (“Meeting of the grooves”) e Jack Wilkins (“Just the two of us”). Sem falar da inusitada parceria com o trombonista Jiggs Whigham em “Jiggs & Gene”. Todos bancados por pequenos selos tipo Stash, Azica, Chiaroscuro e o finado Omnisound, de Bill Goodwin.

Concepção arquitetônica

O repertório de “Quiet now” fala por si: da singela balada “My one and only love” ao romantismo cinematográfico Jobiniano de “Olha Maria” (composta em 1969 para a trilha do filme “The adventurers”), passando pela faixa-título de Denny Zeitlin, tudo aparece envolto em clima de magia. Curiosamente, não há composições de guitarristas, mas vários temas de pianistas. De Bill Evans, que por sinal amava “Quiet now”, Gene uniu “Waltz for Debby” e “Very early”. De Billy Strayhorn, juntou “Lush life” e “Isfahan”. Outros medleys reunem os standards “So in love” (Cole Porter) e “The more I see you” (Harry Warren), e dois temas essenciais do jazz atemporal: “Giant steps” (John Coltrane) e “On a misty night” (Tadd Dameron), amalgamados pela idêntica linha melódica inicial notada pelo violonista. “Sempre fui fascinado pelo tema de Coltrane”, explica Gene, “por causa de sua progressão harmônica e não pela velocidade. Tanto que optei por toca-la mais lenta, como uma jazz-waltz”.

A suave jazzificação de peças clássicas, uma das aventuras prediletas de nosso herói, desta vez se processa através das adaptações de “Traumerei” (Robert Schumann) e “Nessun dorma” (célebre ária do terceiro ato da ópera “Turandot”, de Giacomo Puccini). Quando tudo já parecia dito, revela-se a surpresa preparada por Gene para a última faixa, o tema principal (assinado por Stephen Lawrence) do filme “Bang the drum slowly” (baseado no livro de Mark Harris e dirigido por John Hancock em 1973), talvez o ponto alto do disco em termos de concepção arquitetônica, com efeitos percussivos e contrapontísticos de grande impacto somados à pulsação jazzística. Evidencia-se, então, mais do que em qualquer outro momento, a fusão das influências de Barney Kessel, Andres Segovia, Tal Farlow e Julian Bream, reprocessadas com tremenda elegância.

Santo Graal

A embalagem digipack, em capa dura, traz contemplativo texto do pianista Fred Hersch, que qualifica o disco como “o Santo Graal da performance-solo jazzística”. Prossegue ele: “Além do mais, a pristina qualidade, transparência e profundidade desta gravação, ao mesmo tempo íntima e poderosa, permite apreciar as sutilezas do estilo de Gene, e seu total domínio do instrumento. Termos nossos ouvidos lavados pelo som maravilhoso e pela sabedoria musical de um artista no auge de sua forma, torna-se um evento especial em muitos níveis. Após sucessivas audições, descubra toda a intensidade e beleza que este projeto tem a oferecer”.

Embora saiba tirar um som mágico de sua guitarra D’Asquito em outras ocasiões, neste impecável “Quiet now” Bertoncini se concentra unicamente em dedilhar um violão da marca Buscarino, com encordoamento de nylon LaBella, obtendo uma sonoridade ultra-macia, quente e “redonda”, jamais estridente, sem usar palheta. Exatamente o som elegante que hipnotizava os freqüentadores do saudoso Zinno, em NY (onde tive o privilégio de assistir Gene inúmeras vezes nos anos 80 e 90, em duos com os baixistas Michael Moore e Steve LaSpina) e que agora fascina os freqüentadores do restaurante La Madeleine (Rua 43 entre Nona e Décima Avenida) nas noites de domingo e segunda. Parada obrigatória para quem quiser conhecer uma das maiores delícias musicais da Big Apple.

Legendas:
“Quiet now”: virtuosismo instrospectivo em SACD
“Gene Bertoncini: violão mágico em concepção arquitetônica”

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