Monday, June 4, 2007

Antonio Mello, Dexter Payne & Thiago de Mello unidos em "Inspiration"


Três mestres unidos em “Inspiration”
Antonio Mello, Dexter Payne e Thiago de Mello lançam CD em recital no Planetário
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiros em 5 de Setembro de 2006 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Radicado nos EUA desde 1966, o maestro, compositor, arranjador e multi-instrumentista Gaudêncio Thiago de Mello, irmão do poeta Amadeu, vem aos poucos se aproximando cada vez mais do mercado fonográfico nacional. Em 2005, lançou dois discos aclamados pela crítica – “Bem brasileiro, com alguns sotaques” e “The right seasons”, este em dupla com o violonista Daniel Wolff – e já tem um terceiro em fase de prensagem, “Amor mais que perfeito”, todos pelo selo carioca Ethos Brasil, com distribuição a cargo da empresa paulista Tratore. Um outro disco ao lado de Wolff e do clarinetista alemão Wilfried Berk, “Coisas da vida”, está saindo agora pelo selo mineiro Karmim, responsável também pelo belíssimo “A criação do mundo”, encontro dos irmãos Amadeu e Gaudêncio, lançado em junho.

Tal aproximação com o mercado brasileiro vem se dando, felizmente, também através de shows. Agora mesmo – depois de se apresentar, em julho, no primeiro Amazonas Jazz Festival, em Manaus, e voltar a Nova Iorque para ministrar um curso de percussão orgânica – Gaudêncio retornou ao Brasil, semana passada, para um ansiosamente aguardado concerto na Mostra Internacional de Música em Olinda, ao lado da virtuose Sharon Isbin, freqüente colaboradora e o maior nome em matéria de violão clássico na atualidade.

Thiago também atuou em Olinda, e no Auditório do IBEU no Rio de Janeiro, ao lado de dois outros parceiros constantes: o violonista Antonio Mello e o clarinetista norte-americano Dexter Payne. Neste domingo, dia 10, dentro do projeto “Música nas Estrelas”, idealizado no Planetário da Gávea pela produtora Lu Araújo, eles voltam a se reunir para promover o irretocável álbum “Inspiration”, produzido pelo também músico Flavio Goulart para o selo Ethos Brasil (www.ethosbrasil.com.br) e distribuído nos EUA pela Dexofon Records. O recital acontece ao meio-dia, com entrada franca, mediante retirada de senhas uma hora antes.

Em um momento de indolente indigência na música brasileira, a aparição de um trabalho do altíssimo nível deste “Inspiration” merece uma missa de ação de graças. Quando assisto, preocupadíssimo, ao crescimento de uma nova onda de xenofobia rancorosamente misturada a provincianismo cultural, com direito a argumentos fascistas em favor de uma suposta “música pura” – algo felizmente impossível num país miscigenado por natureza –, a obra de Antônio Mello surge como uma benção. Dispensando planfetagem nacionalista, mostra ser possível universalizar o quintal sem abrir mão da essência brasileira.

Compositor de grande nobreza estética, e violonista cujo virtuosismo jamais descamba para malabarismos gratuitos, Antônio Mello revela um toque sempre preciso sem soar mecanizado, seguro sem resvalar na aspereza. Os momentos de lirismo passam longe da melosidade, assim como as passagens mais intrincadas escapam da tecnicidade pretensiosa e do rebuscamento gratuito. No caso de Antônio, a formação clássica não levou ao academicismo, nem tampouco brecou o balanço lusco-fusco. Neste sentido, aproxima-se da linhagem nobre de mestres como Laurindo Almeida, o grande patriarca do violão brasileiro de alta classe, e dos fenomenais Sérgio & Odair Assad, também expoentes internacionais.

Sérgio Assad, aliás, avaliza o álbum no texto escrito para a contra-capa: “Antônio é um dos grandes exemplos do imenso talento que flui naturalmente do músico brasileiro. Fiquei comovido com o CD...As peças deste disco refletem, indiscutivelmente, o seu amadurecimento como compositor e instrumentista”. Nessa jornada, Antônio tem a companhia de excelsas figuras, a começar por Dexter Payne, clarinetista de fasciante límpida sonoridade, extrema fluência e – para espanto geral dos que ainda pensam que “americano não sabe suingar quando toca música brasileira” – , dono de um fraseado de incrível malemolência; defini-lo como uma mistura de Artie Shaw com Severino Araújo, ou de Buddy DeFranco com Paulo Moura, não seria exagero algum. Em 2004, foi eleito o oitavo melhor clarinetista do ano pelos leitores da revista DownBeat.

Outro luminar, Gaudêncio Thiago de Mello, morubixaba da percussão orgânica, atua com a costumeira argúcia. Verdadeiro alquimista de sons, vai muito além do tempero rítmico, colorindo as faixas de que participa com sua lógica arquitetônica, de concepção orquestral, mostrando porque já foi apontado pela DownBeat, em 2000, 2004 e 2005, como um dos dez melhores percussionistas do mundo. Sua associação com Antônio Mello é o mais recente capítulo de uma série de memoráveis colaborações com outros notáveis violonistas – Luiz Bonfá, Carlos Barbosa-Lima, Daniel Wolff e Sharon Isbin - que lhe renderam aclamação mundial, com direito a indicações ao Grammy pelos discos com Sharon (“Journey to the Amazon”, “Dreams of a world”) e Paul Winter (“Earth – voices of a planet”).

Seja na brejeirice de “Coração Latino”, no lamento da evocação agreste de “Nordestina nº 2” (na qual Dexter troca o clarinete pelo sax-alto, às vezes assemelhando-se ao oboé nas passagens pelas regiões mais agudas), ou no sedutor romantismo de “Rapsódia in choro”, nossos heróis estampam seus talentos ínclitos, que fizeram o álbum ser contemplado com quatro estrelas pelo crítico Alex Henderson, no website All Music Guide. Seguem enlevando corações & mentes através da oblíqua “Marte”, com uso do violão com cordas de aço, e da sinuosa linha melódica de “Infinitivamente” (duos de Antônio & Dexter), além da dolente “Obrigado Paulinho da Viola”.

Há ainda a atmosfera etérea de “Canto dos Pássaros” e o encanto reflexivo de “Inspiração”, pontuada pela intervenção de berimbau mais sutil da história da música! Completando o cardápio, surgem o choro “Radamés y Pelé” (revelado por Jobim em seu disco derradeiro, o Grammyado “Antônio Brasileiro”, de 94) e “Mais uma Vez”, de um certo Sebastião Barros (1917-1980), craque hoje praticamente esquecido (afinal, morto não tem como pagar jabá...) conhecido pela alcunha de K-Ximbinho, homenageado no contagiante pulsar da faixa derradeira, “Tema para K-Ximbinho”, com a voz de Thiago transformando-se em uma percussão extra. Proezas de três sábios unidos pela paixão à música.

No comments: