Sunday, June 3, 2007

Live in Rio: as proezas sonoras de Santana



As proezas sonoras de Carlos Santana
“Guitarrista mexicano, lenda-viva do rock, se apresenta hoje no Rio”
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiros em 16 de Março de 2006 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

No excelente documentário “Viva Santana!”, lançado em 1988, o depoimento de Carlos na parte final do vídeo falava de seu sonho em entrar para a gravadora CBS, depois Sony Music, atual Sony-BMG. “Era a casa dos meus artistas favoritos: Miles Davis, Bob Dylan, Janis Joplin...eu queria estar perto deles e consegui”, relembra. Pois bem: o casamento do guitarrista com a CBS foi dos mais felizes, duradouros e prolíficos na história do mercado musical. Durou 22 anos: de 1968 até 1990, gerando uma discografia fabulosa de 25 títulos (se contabilizarmos “Live at Fillmore 1968”, inédito até 1997). Após o divórcio, provocado mais pela falta de entrosamento com os novos chefões da Sony do que pela queda nas vendas, Carlos teve efêmeros relacionamentos com a Polydor e a EMI, até despertar o interesse da Arista, dirigida pela raposa Clive Davis, ex-todo-poderoso da CBS na fase áurea da banda.

O disco “Supernatural”, lançado em junho de 1999 repleto de convidados especiais do cenário pop MTV (de Lauryn Hyll a Rob Thomas, passando por Eagle-Eye Cherry), explodiu nas rádios e nas paradas de sucesso em todo o mundo. Tanto o álbum quanto o single “Smooth” chegaram ao primeiro lugar na Billboard, revitalizando por completo a carreira de Santana. Com mais de dez milhões de cópias vendidas, recebeu onze indicações para o Grammy, faturando oito categorias em 2000 – incluindo “gravação do ano” (por “Smooth”) e “álbum do ano”. O projeto seguinte, “Shaman”, de 2002, obviamente não repetiu a façanha e teve um desempenho decepcionante, como sempre acontece após um estouro de tamanha proporção. Agora, Santana e a Arista voltam a jogar pesado em “All that I am”, lançado nos EUA em novembro de 2005 incluindo canjas de Joss Stone, Mary J. Blige e Michelle Branch. A turnê mundial desembarcou esta semana ao Brasil e, hoje, a banda faz uma apresentação única no Rio, na Praça da Apoteose.

Embora a divulgação seja centrada no novo disco, que chegou ao segundo lugar na Billboard, espera-se que Santana, 58 anos, não deixe de tocar os antigos sucessos que o consagraram nos anos 70. De qualquer modo, a grande notícia para os fãs de longa data é que vários daqueles antológicos álbuns para a CBS estão novamente disponíveis em CD, através de relançamentos impecáveis feitos pelo selo Legacy, retornando remasterizados a partir das fitas originais e com faixas-bônus inéditas. Seja como uma “esticada” para quem for assistir aos shows e quiser prolongar os momentos de encantamento, ou como excelente alternativa para quem preferir ficar no remanso do lar, tais pepitas são altamente recomendadas.

Latin-rock

A primeira boa surpresa neste lote de reedições é a “expansão” do disco de estréia oficial da banda, conhecido como “Santana I”. As nove faixas do LP original, gravado em maio e lançado em agosto de 1969 causando um impacto renovador no mundo do rock, foram acrescidas de treze outtakes inéditos, gerando um CD-duplo. Há versões alternativas dos primeiros sucessos – “Evil ways”, “Jingo”, “Persuasion”, “Soul sacrifice” – gravadas tanto em estúdio (em sessões embrionárias de janeiro de 69, antes da entrada de Michael Shrieve e Jose Chepito Areas) como ao vivo, trazendo o set completo da banda no Festival de Woodstock, na histórica data de 16 de agosto de 69. Tudo isso em luxuosa embalagem, com encarte de vinte páginas e fotos raras, além de excelente texto de Hal Miller.

O consagrador “Abraxas”, para muitos fãs a obra-prima em matéria de latin-rock, provocou impacto ainda maior, disparando os dois maiores hits de Santana na fase Columbia: “Black magic woman” (para sempre acoplada a “Gypsy queen”, do guitarrista húngaro Gabor Szabo, um dos musos inspiradores de Carlos ao lado do violonista brasileiro Bola Sete como atestado no vídeo “Santana influences”) e brilhante releitura de “Oye como va”, do timbalero-mor Tito Puente. Lançado em outubro de 1970, continha ainda temas do porte de “Incident at Neshabur” e “Samba pa ti”. Esta reedição traz três faixas inéditas captadas ao vivo no Royal Albert Hall de Londres, em 18 de abril de 70, durante uma folga nas gravações de “Abraxas”, que permaneceu seis semanas no topo da parada pop da Billboard – e mais de um ano nas vitrines das lojas, graças à maravilhosa pintura psicodélica do alemão Abdul Mati Klarwein, o mesmo de outro disco seminal da CBS naquela época, um certo “Bitches brew”, de Miles Davis.

O tecladista Gregg Rolie, o baixista David Brown, o batera Michael Shrieve e o conguero Mike Carabello ganharam o reforço do percussa Coke Escovedo e do guitarrista Neal Schon (na opinião de Sérgio Vid, que já abriu um show de Santana no Maracanã nos anos 90, Schon era superior a Carlos em termos técnicos) no discaço conhecido como “Santana III”. Vários convidados, incluindo a seção de sopros do Tower of Power em “Everybody’s everything”, contribuíram para dar um colorido especial ao álbum, lançado em setembro de 1971, tendo permanecido cinco semanas no número 1 da Billboard. Certamente o projeto mais “pesado” naquela fase inicial, reaparece em CD com três bonus-tracks gravadas no Fillmore West em 4 de julho de 71: “Batuka”, “Jungle strut” e “Gumbo”.

Flertes com o jazz

Depois da reunião de Carlos com Buddy Miles (ex-batera de Hendrix) em LP ao vivo em janeiro de 1972, que ainda aguarda uma “expanded reissue” (o relançamento em CD aconteceu em 1994, apenas com as seis faixas do vinil), a banda entrou em estúdio no mês seguinte, com formação ampliada, para documentar “Caravanserai”. Divisor de águas na trajetória de Santana, marcou sua aproximação com o jazz através das fortes doses de Miles e Coltrane que lhe foram explicadas, segundo detalha Hal Miller no texto do encarte, pelo excepcional Shrieve, talvez o batera mais criativo e genial da história do rock. Há múltiplas participações – de Lenny White (tocando castanholas!) a Mingo Lewis (percussão), passando por Armando Peraza (bongôs), Hadley Caliman (sax) e até um iniciante Tom Harrell assinando a orquestração de “Every step of the way”. A faixa mais interessante é “Stone flower”, faixa-título do cultuado álbum de Tom Jobim para a CTI, aqui na sua única gravação com letra em inglês, feita por Santana & Shrieve.

Concebido no mês de lançamento de “Caravanserai” – outubro de 1972 –, o transcendental encontro de Carlos com Mahavishnu John McLaughlin aprofundou ainda mais o direcionamento jazzístico, coincidindo com o interesse de ambos pelas filosofias orientais, sob o estímulo do guru Sri Chinmoy. Em clima de jam-session lisergicamente espiritualizada, usando quatro bateristas (Shrieve, Don Alias, Billy Cobham e, pasmem, o tecladista Jan Hammer!), Larry Young no órgão, Doug Rauch no baixo e Peraza nas congas, “Love devotion surrender”, lançado em junho de 73, volta em CD com alternate-takes de dois clássicos de John Coltrane: “A love supreme” e “Naima”.

A combinação ideal de tantos elementos (rock, salsa, r&b, jazz, samba, música indiana) aconteceu no álbum “Welcome”, editado em novembro de 1973 com forte marca de Tom Coster, o principal dos novos integrantes, e que se revezava no Fender Rhodes e nos órgãos Hammond e Yamaha com outro tecladista de alta categoria, Richard Kermode. Viajaram de Dvorak (“Going home”, do segundo movimento da “Sinfonia do novo mundo”) à faixa-título de Coltrane, namorando a soul-music em “Love, devotion & surrender” com o vozeirão de Leon Thomas, a bossa-nova em “Yours is the light” (vocal ultra-sensual de Flora Purim, aquela que desperta a ira do esclerosado mitômano pedófilo), e a “Mãe África”, parceria de Carlos com Herbie Mann. Outro grande flautista, Joe Farrell, brilha no pop “When I look into your eyes”, enquanto Tom Coster arrasa no solo de Rhodes em “Samba de Sausalito”. McLaughlin volta à cena em “Flame-sky” e Shrieve estraçalha em todas as suas intervenções. “Mantra”, criação coletiva de Coster, Shrieve e Santana, aparece como única faixa-bônus.

Excursionando pelo Japão em julho de 73, logo no mês seguinte ao final da gravação de “Welcome”, a banda teve dois concertos em Osaka registrados para o LP-triplo “Lotus”, lançada apenas no Japão e, sabe-se lá por que, na Alemanha em 74, até ser editado em CD-duplo nos EUA em 1987. São performances espetaculares, incluindo “Xibaba” (de Airto Moreira) e “Stone flower” usada como vinheta instrumental, com vários momentos inéditos ainda esperando para ver a luz do dia. O mesmo acontece com dois outros discos “incompreendidos” gravados em 74, ambos relançados em CD nos anos 90 sem faixas inéditas: “Illuminations”, encontro de clima etéreo, viajandão, com Alice Coltrane (harpa, piano, órgão) e suporte de Jack DeJohnette, Tom Coster e Dave Holland; e o soberbo “Borboletta”, cujo ponto-alto é a não menos extraordinária versão de “Promessa de pescador” de Dorival Caymmi, com Airto, Flora e Stanley Clarke. Fracassos comerciais se comparados aos discos anteriores, mas êxitos artísticos que mereceram, respectivamente, quatro e cinco estrelas na edição de 5 de dezembro de 1974 da revista Down Beat.

Fase MTV

Finda esta fase de apogeu criativo, marcada por tremenda originalidade e louvável expansão sonora, sem falar do aprimoramento de Carlos como guitarrista capaz de altos vôos, a banda começou a se acomodar. Ainda assim, lançou os ótimos discos “Amigos” (1976, incluindo os hits “Dance sister dance” e “Europa”), “Festival” (safra 1977, trazendo “Verão vermelho” de Nonato Buzar), e o duplo “Moonflower” (misturando um show de 76 com uma sessão de estúdio em 77), este último relançado em CD em 2003 com três faixas-extras.

Depois vieram álbuns apenas regulares: “Inner secrets” (78), “Marathon” e “Oneness” (ambos de 79), “The swing of delight” (1980, uma tentativa de recuperar a inventividade através da união com os renomados jazzistas Herbie Hancock, Ron Carter, Tony Williams e Wayne Shorter), “Zebop” (81), “Shango” (82), “Havana moon” (83, na verdade um mergulho nas músicas de sua infância em Tijuana, destacando seu pai cantando “Vereda tropical” em arranjo de Clare Fischer), “Beyond appearances” (85), “Freedom” (86), “Blues for Salvador” (87, com momentos interessantes) e o derradeiro trabalho na Columbia, “Spirits dancing in the flesh”, em 1990.

Para o bem dos patrocinadores e felicidade geral da platéia, tomara que Carlos saiba mesclar, no show de hoje, os eternos sucessos de seu período áureo com os hits bonitinhos pós-“Supernatural”. Bem dosada, a mistura de “Oye como va”, “Black magic woman”, “Evil ways” e “Soul sacrifice” com a fase MTV de “Smooth”, “Maria, Maria”, “The game of love” e “I’m feeling you” não fará mal a ninguém. Ouvir “Stone flower”, “Xibaba”, “Verão vermelho”, “Promessa de pescador” ou alguma outra música brasileira que não fosse um trecho de “Aquarela do Brasil” seria pedir demais. O guitarrista – homem do bem cujo único pecado, em nome da manutenção da popularidade, é cercar-se de astros pré-fabricados muito aquém de seu talento – por si só ainda vale o ingresso.
Legendas:
“O disco de estréia, transformado em CD-duplo, ganha 13 faixas inéditas”
“Abraxas: um marco na carreira de Santana e na história do rock”

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