Cestão de variedades jazzísticas
Arnaldo DeSouteiro
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiros em 25 de Maio de 2006 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"
O ano vai avançando, a pátria já está de chuteiras e as ofertas jazzísticas, apesar da tão propalada crise do mercado, não param de aumentar. Um recente cestão de lançamentos traz grandes performances de um mestre menosprezado (Frank Chastenier), pífios desempenhos de um grupo sobrevalorizado (The Bad Plus), vozes de uma desconhecida veterana (Gloria Cooper) e de um imaturo novato (Philipp Weiss), e as redescobertas de pérolas dos pianistas Oscar Peterson (“Motions & emotions”) e Red Garland (“At the Prelude”). Prepare o espírito, os ouvidos e o bolso.
Começando logo pelo melhor item em termos gerais, “For you” marca a estréia do pianista alemão Frank Chastenier no revitalizado selo EmArcy. Professor de Jurgen Friedrich, sideman de Till Bronner, Lalo Schifrin e Caterina Valente, integrante da big-band da emissora WDR da cidade de Colônia, Frank é um típico caso de “músico dos músicos” que somente agora tem a chance de brilhar como líder. Comandando um trio com Hans Dekker (bateria) e John Goldsby (baixo), este substituído por Tim Lefebvre em duas músicas, tem ainda a participação especial de Till Bronner (trompete e flugelhorn) em “Mensch”, “I’ll never smile again” e na faixa-título “For you”, a única assinada por Chastenier, em uma quase incompreensível demonstração de humildade, considerando-se sua qualidade como compositor.
Mas o tema de abertura, uma magnífica recriação de uma das obras-primas de Jerome Kern, “The way you look tonight” (Oscar de melhor canção em 1936 para o filme “Swing time”), já seria suficiente para este disco ser classificado como indispensável. Esbanjando sutileza e refinamento harmônico, com um lirismo nunca adocicado, Frank segue arrasando em “Berlin, die gesicht hat sommerprossen”, “Someday my prince will come” e, no encerramento, para tirar o sossego dos chatonildos puristas, uma plácida releitura do sucesso pop de 1972 “Alone again, naturally”, por vezes empregando discretos arranjos (de Jorg Keller) para uma seção de cordas. Tudo captado com maravilhosa qualidade de gravação pelo engenheiro de som Arne Schumann, claramente um discípulo de Van Gelder.
Brutalidade sonora
A antítese da sofisticação e de tudo o mais praticado por Chastenier é exercitada pelo apocalíptico trio The Bad Plus no horrendo “Suspicious activity?”, lançado pelo selo Columbia, da Sony-BMG. Ethan Iverson (piano), Reid Anderson (baixo) e David King (bateria) massacram os ouvidos do incauto jazzófilo que cair na onda dos pseudo-experts que vendem o “approach” do grupo como supostamente revolucionário. Na verdade, impera a estética da agressividade gratuita, que nada tem a ver com free-jazz, ao contrário do que alegam os defensores dos ensandecidos rapazes que, pasmem!, já foram capa da DownBeat. Todas as faixas são “originals” dos arautos da brutalidade sonora, vide as nauseantes “Anthem for the earnest”, “The empire strikes backwards” e “Forces”. Para se ter uma idéia da gravidade da situação, basta dizer que uma inqualificável releitura do tema brega-pomposo, do grego Vangelis, para o filme “Chariots of fire”, é um dos melhores momentos do álbum.
Pianos classudos
A única maneira de compensar a surra auditiva dos grotescos metaleiros do jazz é recorrer à classe de Oscar Peterson e Red Garland. O pianista canadense, atualmente com 80 anos, tem seu controvertido “Motions & emotions” relançado em CD em uma edição remasterizada sob a supervisão de Hans Georg Brunner-Schwer, que veio a falecer dias depois da conclusão do trabalho. Fundador do selo MPS, Hans idealizou o disco, mas entregou a produção nas mãos dos amigos Willy Fruth e Claus Ogerman, este último responsável pelos magistrais arranjos. O excelente texto do historiador Douglas Payne narra um curioso segredo revelado, por Gene Lees, no livro “Oscar Peterson: The will to swing”: ao chegar no estúdio A&R, em NY, em 1969, Oscar reprovou o piano e se recusou a gravar. Para evitar o prejuízo com os músicos recrutados, Hans pediu a Claus que gravasse todas as orquestrações, sobre as quais Peterson mais tarde adicionou o piano ao viajar para Villingen, na Alemanha.
Mais surpreendente é constatar a interação perfeita entre solista e orquestra, como se tivessem gravado no mesmo tempo e lugar. Afinal, “respiram” juntos nas suntuosas partituras de Ogerman para um repertório alvejado pelos conservadores, em função de ser calcado em hits da parada pop dos anos 60 –
temas de autores como Burt Bacharch (“This guy’s in love with you”), Jimmy Webb (“By the time I get to Phoenix”), Bobby Hebb (“Sunny”), Bob Gentry (“Ode to Billy Joe” em inusitada pulsação funky), e dose dupla de Beatles (“Yesterday”, “Eleanor Rigby”). Os pontos altos são as recriações de obras do genial Henry Mancini (“Sally’s tomato”, “Dreamsville”) e do nosso Tom Jobim, em uma das melhores interpretações de “Wave” de todos os tempos, com Peterson disparando num solo de impactante efeito virtuosístico, incitado pelos violinos.
Dez anos antes, em 2 de outubro de 1959, o pianista e ex-boxer William “Red” Garland (1923-1984), famoso por sua associação com Miles Davis entre 55 e 58 no primeiro grande quinteto do trompetista, fez memorável apresentação no clube Prelude, no coração do Harlem, em NY. O criador do selo Prestige, Bob Weinstock, chamou Esmond Edwards para supervisionar a produção, com Rudy Van Gelder levando seu equipamento de gravação. No baixo, Jimmy Rowser. Na bateria, Charles “Specs” Wright. O resultado da noitada ficou espalhado em quatro discos diferentes ao longo dos anos, e somente agora os três sets surgem pela primeira vez reunidos no CD-duplo “Red Garland Trio at the Prelude”. Destaques do delicioso cardápio: “M-Squad theme”, “There will never be another you”, “We kiss in a shadow”, “Bye bye blackbird”, “Like someone in love”, “Mr. Wonderful”, “Just squeeze me” e um take inédito de “Cherokee”.
Vozes contrastantes
Em termos de interpretação vocal, um abismo separa a (ainda desconhecida) veterana Gloria Cooper do (por enquanto) hesitante mancebo Phillip Weiss. Nova aposta da Universal européia, Weiss comete o equívoco fatal de se auto-produzir neste soporífero “You must believe in spring”. Na parte interna da embalagem digipack, ele dedica a sessão a Tony Bennett & Bill Evans, agradecendo o apadrinhamento de Mark Murphy, sua maior influência. Porém, a imaturidade do rapaz, somada à total falta de criatividade e ousadia na elaboração dos arranjos, torna o disco maçante. Para piorar, o cantor escolheu um repertório hiper-manjado, com apenas um tema próprio (“She brought me back”) ao lado de “I fall in love too easily”, “My foolish heart”, “The shadow of your smile”, “Everytime we say goodbye” e por aí vai. Temas tratados burocraticamente por músicos notáveis como Steve Khun (piano), David Finck (baixo), Billy Drummond (bateria), Lew Soloff (trompete), Eric Alexander (sax tenor) e Tim Bolden (flugelhorn), todos irreconhecíveis, dominados por uma apatia absurda.
Gloria Cooper faz a opção oposta no CD “Dedicated to you”, produzido pelo trompetista Don Sickler para o microselo Origin Records. Gravado (em apenas dois dias), mixado e masterizado pelo mitológico Rudy Van Gelder, assessorado por Maureen Sickler, coloca a nobre voz de Gloria, que em alguns momentos lembra Helen Merrill e em outros Shirley Horn, a serviço de inventivas reinvenções de temas até então instrumentais, compostos por Tommy Turrentine (“Glo’s theme” rebatizado “Big Brown eyes”), Hank Mobley (“Bossa de luxe” transformada em “Garden in the sand” depois da letra de Bebe Herring) e pela pianista canadense Renee Rosnes (“Malaga moon”, rebobinado como “Without you” através dos versos de Shelley Brown). Há ainda belas obras do saudoso pianista James Williams, do argentino Sergio Mihanovich, e apenas dois standards: “Dedicated to you” e “Come rain or come shine” em ritmo de samba. Além de Sickler, participam Tim Givens (baixo), Vince Cherico (bateria), Freddy Bryant (guitarra) e Wayne Escoffery (saxes tenor & soprano). Uma lição de ampliação de horizontes.
Legendas:
O pianista Frank Chastenier esbanja sutileza e lirismo no CD “For you”
A cantora Gloria Cooper amplia os horizontes do repertório jazzístico
O ano vai avançando, a pátria já está de chuteiras e as ofertas jazzísticas, apesar da tão propalada crise do mercado, não param de aumentar. Um recente cestão de lançamentos traz grandes performances de um mestre menosprezado (Frank Chastenier), pífios desempenhos de um grupo sobrevalorizado (The Bad Plus), vozes de uma desconhecida veterana (Gloria Cooper) e de um imaturo novato (Philipp Weiss), e as redescobertas de pérolas dos pianistas Oscar Peterson (“Motions & emotions”) e Red Garland (“At the Prelude”). Prepare o espírito, os ouvidos e o bolso.
Começando logo pelo melhor item em termos gerais, “For you” marca a estréia do pianista alemão Frank Chastenier no revitalizado selo EmArcy. Professor de Jurgen Friedrich, sideman de Till Bronner, Lalo Schifrin e Caterina Valente, integrante da big-band da emissora WDR da cidade de Colônia, Frank é um típico caso de “músico dos músicos” que somente agora tem a chance de brilhar como líder. Comandando um trio com Hans Dekker (bateria) e John Goldsby (baixo), este substituído por Tim Lefebvre em duas músicas, tem ainda a participação especial de Till Bronner (trompete e flugelhorn) em “Mensch”, “I’ll never smile again” e na faixa-título “For you”, a única assinada por Chastenier, em uma quase incompreensível demonstração de humildade, considerando-se sua qualidade como compositor.
Mas o tema de abertura, uma magnífica recriação de uma das obras-primas de Jerome Kern, “The way you look tonight” (Oscar de melhor canção em 1936 para o filme “Swing time”), já seria suficiente para este disco ser classificado como indispensável. Esbanjando sutileza e refinamento harmônico, com um lirismo nunca adocicado, Frank segue arrasando em “Berlin, die gesicht hat sommerprossen”, “Someday my prince will come” e, no encerramento, para tirar o sossego dos chatonildos puristas, uma plácida releitura do sucesso pop de 1972 “Alone again, naturally”, por vezes empregando discretos arranjos (de Jorg Keller) para uma seção de cordas. Tudo captado com maravilhosa qualidade de gravação pelo engenheiro de som Arne Schumann, claramente um discípulo de Van Gelder.
Brutalidade sonora
A antítese da sofisticação e de tudo o mais praticado por Chastenier é exercitada pelo apocalíptico trio The Bad Plus no horrendo “Suspicious activity?”, lançado pelo selo Columbia, da Sony-BMG. Ethan Iverson (piano), Reid Anderson (baixo) e David King (bateria) massacram os ouvidos do incauto jazzófilo que cair na onda dos pseudo-experts que vendem o “approach” do grupo como supostamente revolucionário. Na verdade, impera a estética da agressividade gratuita, que nada tem a ver com free-jazz, ao contrário do que alegam os defensores dos ensandecidos rapazes que, pasmem!, já foram capa da DownBeat. Todas as faixas são “originals” dos arautos da brutalidade sonora, vide as nauseantes “Anthem for the earnest”, “The empire strikes backwards” e “Forces”. Para se ter uma idéia da gravidade da situação, basta dizer que uma inqualificável releitura do tema brega-pomposo, do grego Vangelis, para o filme “Chariots of fire”, é um dos melhores momentos do álbum.
Pianos classudos
A única maneira de compensar a surra auditiva dos grotescos metaleiros do jazz é recorrer à classe de Oscar Peterson e Red Garland. O pianista canadense, atualmente com 80 anos, tem seu controvertido “Motions & emotions” relançado em CD em uma edição remasterizada sob a supervisão de Hans Georg Brunner-Schwer, que veio a falecer dias depois da conclusão do trabalho. Fundador do selo MPS, Hans idealizou o disco, mas entregou a produção nas mãos dos amigos Willy Fruth e Claus Ogerman, este último responsável pelos magistrais arranjos. O excelente texto do historiador Douglas Payne narra um curioso segredo revelado, por Gene Lees, no livro “Oscar Peterson: The will to swing”: ao chegar no estúdio A&R, em NY, em 1969, Oscar reprovou o piano e se recusou a gravar. Para evitar o prejuízo com os músicos recrutados, Hans pediu a Claus que gravasse todas as orquestrações, sobre as quais Peterson mais tarde adicionou o piano ao viajar para Villingen, na Alemanha.
Mais surpreendente é constatar a interação perfeita entre solista e orquestra, como se tivessem gravado no mesmo tempo e lugar. Afinal, “respiram” juntos nas suntuosas partituras de Ogerman para um repertório alvejado pelos conservadores, em função de ser calcado em hits da parada pop dos anos 60 –
temas de autores como Burt Bacharch (“This guy’s in love with you”), Jimmy Webb (“By the time I get to Phoenix”), Bobby Hebb (“Sunny”), Bob Gentry (“Ode to Billy Joe” em inusitada pulsação funky), e dose dupla de Beatles (“Yesterday”, “Eleanor Rigby”). Os pontos altos são as recriações de obras do genial Henry Mancini (“Sally’s tomato”, “Dreamsville”) e do nosso Tom Jobim, em uma das melhores interpretações de “Wave” de todos os tempos, com Peterson disparando num solo de impactante efeito virtuosístico, incitado pelos violinos.
Dez anos antes, em 2 de outubro de 1959, o pianista e ex-boxer William “Red” Garland (1923-1984), famoso por sua associação com Miles Davis entre 55 e 58 no primeiro grande quinteto do trompetista, fez memorável apresentação no clube Prelude, no coração do Harlem, em NY. O criador do selo Prestige, Bob Weinstock, chamou Esmond Edwards para supervisionar a produção, com Rudy Van Gelder levando seu equipamento de gravação. No baixo, Jimmy Rowser. Na bateria, Charles “Specs” Wright. O resultado da noitada ficou espalhado em quatro discos diferentes ao longo dos anos, e somente agora os três sets surgem pela primeira vez reunidos no CD-duplo “Red Garland Trio at the Prelude”. Destaques do delicioso cardápio: “M-Squad theme”, “There will never be another you”, “We kiss in a shadow”, “Bye bye blackbird”, “Like someone in love”, “Mr. Wonderful”, “Just squeeze me” e um take inédito de “Cherokee”.
Vozes contrastantes
Em termos de interpretação vocal, um abismo separa a (ainda desconhecida) veterana Gloria Cooper do (por enquanto) hesitante mancebo Phillip Weiss. Nova aposta da Universal européia, Weiss comete o equívoco fatal de se auto-produzir neste soporífero “You must believe in spring”. Na parte interna da embalagem digipack, ele dedica a sessão a Tony Bennett & Bill Evans, agradecendo o apadrinhamento de Mark Murphy, sua maior influência. Porém, a imaturidade do rapaz, somada à total falta de criatividade e ousadia na elaboração dos arranjos, torna o disco maçante. Para piorar, o cantor escolheu um repertório hiper-manjado, com apenas um tema próprio (“She brought me back”) ao lado de “I fall in love too easily”, “My foolish heart”, “The shadow of your smile”, “Everytime we say goodbye” e por aí vai. Temas tratados burocraticamente por músicos notáveis como Steve Khun (piano), David Finck (baixo), Billy Drummond (bateria), Lew Soloff (trompete), Eric Alexander (sax tenor) e Tim Bolden (flugelhorn), todos irreconhecíveis, dominados por uma apatia absurda.
Gloria Cooper faz a opção oposta no CD “Dedicated to you”, produzido pelo trompetista Don Sickler para o microselo Origin Records. Gravado (em apenas dois dias), mixado e masterizado pelo mitológico Rudy Van Gelder, assessorado por Maureen Sickler, coloca a nobre voz de Gloria, que em alguns momentos lembra Helen Merrill e em outros Shirley Horn, a serviço de inventivas reinvenções de temas até então instrumentais, compostos por Tommy Turrentine (“Glo’s theme” rebatizado “Big Brown eyes”), Hank Mobley (“Bossa de luxe” transformada em “Garden in the sand” depois da letra de Bebe Herring) e pela pianista canadense Renee Rosnes (“Malaga moon”, rebobinado como “Without you” através dos versos de Shelley Brown). Há ainda belas obras do saudoso pianista James Williams, do argentino Sergio Mihanovich, e apenas dois standards: “Dedicated to you” e “Come rain or come shine” em ritmo de samba. Além de Sickler, participam Tim Givens (baixo), Vince Cherico (bateria), Freddy Bryant (guitarra) e Wayne Escoffery (saxes tenor & soprano). Uma lição de ampliação de horizontes.
Legendas:
O pianista Frank Chastenier esbanja sutileza e lirismo no CD “For you”
A cantora Gloria Cooper amplia os horizontes do repertório jazzístico
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