Monday, June 4, 2007

Nina Simone, Pass, Burton, Corea & Ozone at Montreux



Catarse, sermão e aulas em Montreux
Solos, duos e trips no festival suíço
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiros em 21 de Setembro de 2006 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Mais uma apetitosa safra de DVDs chega ao mercado brasileiro, via ST2, trazendo momentos preciosos do vasto acervo do Festival de Montreux. Com seu carisma altamente peculiar, Nina Simone barbariza no show filmado em 1976, um dos mais marcantes em toda a história do evento. Um ano antes, o guitarrista Joe Pass comemorava, em performance-solo no palco do Cassino, a sua ressurreição artística, operada pelo milagreiro produtor Norman Granz através do disco “Virtuoso”. Gary Burton, mestre do vibrafone, brilha em dose dupla nos virtuosísticos duos com os pianistas Chick Corea (1997) e Makoto Ozone (2002).

Pregação sonora

Há exatos trinta anos, Eunice Kathleen Waymon, vulgo Nina Simone (1933-2003) fez uma das mais controvertidas performances da história do Festival de Montreux. A artista e a ativista política, engajada nos movimentos pelos direitos civis dos negros, se confundem em uma catarse com direito a sermões e pitos na platéia mais que obediente, para não dizer submissa à pregação da cantora. A entrada é dramaticamente triunfal. Nina parece encarar cada um dos espectadores, exigindo completa atenção, silêncio e devoção através de seu olhar fulminante. Sabe que é diva e exige ser tratada como tal. Lembra que havia decidido nunca mais se apresentar em festivais de jazz e avisa que sua presença ali não representava a quebra da promessa. Mentira, claro. Mas a jogada da então ainda magra e altiva balzaca de 33 anos, agora biografada por James Gavin, era essa: confundir ao invés de explicar.

A platéia aceita as regras e os exercícios de BDSM começam. Á uma espectadora desobediente, Nina ordena: “sente-se!”. Debocha do pedestal do microfone que teima em escorregar (“ele tem vida própria”) e faz o técnico que tenta conserta-lo tremer de medo. Desdenha do público para, no momento seguinte, acaricia-lo. Solta frases dúbias ou enigmáticas. Fala do colar que lhe foi presenteado por Claude Nobs (fundador do Festival), uma suposta relíquia pertencente a uma princesa. Verdade ou deboche? Ninguém sabe. Musicalmente, entrega-se por inteiro, mostrando estar no auge também de sua técnica pianística em “Little girl blue” (jóia de Rodgers & Hart, do LP de estréia em 57), “Backlash blues” (parceria com o militante negro Langston Hughes, autor da letra) e “Be my husband”, não sem mais uma vez reclamar: “todo mundo tirou um pedaço de mim”, referindo-se também à sua luta na justiça para receber os royalties dos primeiros discos, além dos lançamentos piratas.

Diva irascível

Depois de entoar “I wish I knew”, Nina dá por encerrada a apresentação que, se terminasse mesmo naquele momento, com apenas meia-hora, seria a menor do Festival em todos os tempos. Porém, era mais um truque, claro. Volta ainda mais endiabrada, perguntando se David Bowie, que naquela época morava na Suíça, estava na platéia. Diz que passou dois dias brigando com Claude Nobs, revela ter conhecido somente na véspera tanto o baterista que a acompanha timidamente (e certamente em pânico) como o percussionista senegalês que viria a chamar ao palco sem anunciar seus nomes, cita as trágicas vidas de Billie Holiday e Janis Joplin ao entoar “Stars” (de Janis Ian) e vira pelo avesso a balada-baba “Feelings” (do brasileiro Mauricio Alberto, aka Morris Albert), entrecortada por críticas ao sistema que permite “músicas como esta”. Confessando estar “meio alta”, fecha a noite dançando, evocando seus ancestrais sob a batida de “African mailman”.

Diante de tanta excentricidade, os “extras” quase se transformam em anti-clímax. Mas a inclusão das seis músicas adicionadas de outras performances, captadas em 1987 e 1990, é compreensível. Afinal, entre elas estão alguns dos maiores hits de Nina, que certamente atrairão mais compradores para o DVD. Do show-solo de 87 foram escolhidas “Someone to watch over me” e “My baby just cares for me”, que enseja mais uma reclamação da diva irascível: “não tenho o perfume nem o dinheiro”, esbraveja, pois não havia recebido um tostão pelo uso da gravação (feita para o selo Bethlehem três décadas antes) de “My baby” em uma campanha publicitária do Chanel nº 5 feita na Inglaterra, levando a música ao topo do hit parade naquele ano. Do show de 1990, ao lado do guitarrista Al Shackman e de um congueiro não identificado, aparecem “I loves you Porgy”, “liberian calypso”, o medley de “Four women/Mississipi Goddam” (famosa canção de protesto escrita após a morte de quatro crianças negras durante o bombardeio de uma igreja, nos anos 60), e “Ne me quitte pas”, sua pièce de résistance até o final da vida.

Aula de guitarra

Integrando a coleção “Norman Granz’ Jazz in Montreux”, o DVD que capta as performances de Joe Pass em 1975 e 77 é uma verdadeira aula audiovisual de guitarra-solo. O cardápio se divide na verdade em três partes, pois aconteceram dois shows em 75, quando Pass (1929-1994) estava no auge de sua popularidade graças ao sucesso do álbum “Virtuoso”, produzido por Norman em 73 para o selo Pablo, reativando sua carreira após se livrar dos problemas com drogas. No dia 17 de julho de 75, Joe teve a apresentação prejudicada por problemas de som, com os defeitos nos cabos do amplificador provocando estampidos a todo instante. Apesar dos pesares, conseguiu gerar lindas recriações de “More than you know”, “Nuages”, “I’m glad there is you” e o clássico “Manhã de carnaval”, de Bonfá, usando “A felicidade”, de Jobim, outro tema do filme “Orfeu negro”, como introdução.

Na noite seguinte, o guitarrista voltou ao palco devido aos pedidos do público e às reclamações de Granz, que intimou Nobs a compensa-lo pela situação constrangedora na véspera. Joe tocou ainda melhor, claro, estraçalhando nos improvisos espetacularmente construídos em temas como “You are the sunshine of my life”, “The very thought of you” e “Lil’ darlin’”. Apenas onze das dezesseis músicas executadas nos dois shows de 1975 foram, naquela época, lançadas em LP. Portanto, esta é a primeira oportunidade de ouvir as performances na íntegra. E o DVD ainda traz as sete músicas do set de 15 de julho de 1977, editado em disco merecedor somente de três estrelas na DownBeat, afetado pelo excesso de blues no repertório. Quando Pass escapa da estranha obsessão, arrasa em “Wait till you see her”, “She’s funny that way” e “This masquerade”, então um grande sucesso na voz de George Benson. Assim como nos demais vídeos aqui comentados, os nomes dos autores são absurdamente omitidos da ficha técnica.

Duos soberbos

Reitor do renomado Berklee College of Music, o vibrafonista Gary Burton brilha em dois estupendos duos. No encontro com Chick Corea em 1997, filmado em High Definition, o repertório é calcado no CD que haviam acabado de gravar, “Native sense: the new duets”, repetindo, vinte e cinco anos depois, o êxito do primeiro encontro em “Crystal silence”. Seis das onze faixas de “Native sense” estão presentes no DVD, a começar pela cativante abertura com “Love castle”, lançada por Chick no álbum-duplo “My spanish heart” (76). Outra excelente recriação acontece em “No mistery”, faixa-título de um dos aclamados discos da segunda formação do grupo fusion Return to Forever, em 75. Chick assina também as inéditas “Tango 92” (originalmente composta para um filme, mas nunca aproveitada na trilha) e “Rhumbata”, antes de declarar a paixão por Thelonious Monk ao anunciar “Four in one”, em fantástico arranjo. No bis, a sempre arrebatadora “La fiesta”, do seminal LP “Return to forever” (ECM, 72).

O altíssimo nível musical e a extraordinária qualidade de som & imagem se repetem no duo de Burton com o pianista japonês Makoto Ozone, em 2002. Desta feita, Gary é quem faz o papel de mestre-de-cerimônias, anunciando todas as músicas. Nas quatro primeiras, homenageia seus vibrafonistas favoritos: Cal Tjader (“Afro blue”, de Mongo Santamaria), Milt Jackson (“Bags’ groove”), Red Norvo (“Hole in the wall”) e Lionel Hampton (“Opus half”), reverenciados no CD “For Hamp, Red, Bags, and Cal”, lançado por GB em 2001. Seguem-se seis temas do repertório do álbum “Virtuosi”, gravado pela dupla no mesmo ano, e destinado ao mercado “classical crossover”.

Burton & Ozone – em interação telepática resultante de uma amizade musical de duas décadas, iniciada em 83 quando Makoto ingressou no Berklee College e foi apadrinhado por Gary – atuam de forma esplendorosa nas brilhantes adaptações de obras de Ravel (“Le tombeau de Couperin”), Scarlatti (“Sonata K20”), Samuel Barber (“Excursions”), Rachmaninoff (“Prelúdio nº 8, em lá menor, opus 32”) e Gershwin (o terceiro movimento do célebre “Concerto em fá”). Encaixam ainda um tango de Jorge Cardoso (“Milonga”) e voltam para o bis com “Bienvenidos al mundo”, de Ozone. Caso raro de DVD que merece a classificação de obra-de-arte.

Legendas:
“A lendária performance de Nina Simone no Festival de Montreux, em 1976, finalmente tem lançamento oficial”
“Gary Burton & Makoto Ozone: interação telepática em uma obra-de-arte”

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