Monday, August 20, 2007

O som genial do imortal Art Pepper




Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 11 de Agosto de 2007 e publicado originalmente no jornal Tribuna da Imprensa em 20 de Agosto de 2007

O som genial do imortal Art Pepper
Gravações inéditas do saxofonista são lançadas em CD
Arnaldo DeSouteiro


Los Angeles - Nunca se vendeu tão pouco e nunca se lançou tanto material na área jazzística. Enquanto as últimas “grandes companhias” que ainda restam colocam o jazz para escanteio, novos selos apostam em projetos de baixo custo e (geralmente) alta qualidade artística. Fecham grandes cadeias como a Tower, mas a cada dia torna-se mais fácil comprar qualquer disco, de qualquer parte do mundo, através das lojas virtuais. Artistas que viviam sonhando com contratos milionários perdem a ilusão e partem cada vez mais para as produções independentes.

Nem tem cabimento mais falar em “selos”, pois na maioria dos casos as logomarcas são criadas para abrigar apenas criações de um único musico. Caso, por exemplo, da Widow’s Taste Records, criada por Laurie Pepper, viúva de Art Pepper. Cansada de peregrinar pelas gravadoras, tentando interessa-las em editar o acervo do marido e, depois, ainda se ver roubada nas prestações de contas, ela abriu sua própria firma e vem fazendo bonito na preservação da obra do genial saxofonista. Os frutos mais recentes desta dedicação trazem um material de primeira grandeza revelado na série “Unreleased Art”.

Turnê japonesa

Primeiro volume, o CD-duplo “The complete Abashiri concert” (Abashiri é uma cidade na ilha de Hokkaido), capta fantástica apresentação, em 22 de novembro de 1981, durante a última excursão do inimitável saxofonista pelo Japão. No encarte, além de fotos raras e um informativo texto de Laurie sobre a turnê, há reproduções até do visto de trabalho concedido pelo consulado japonês em Los Angeles e de outros documentos relativos à viagem. Graças à bendita iniciativa do engenheiro de som local em ligar um gravador cassete, temos agora este registro precioso, que já rendeu um ótimo artigo de Will Friedwald no “The New York Sun”. Além de um punhado de ienes pagos a Laurie pela JVC em troca dos direitos para o lançamento no mercado nipônico.

Muito bem assessorado por George Cables (piano), David Williams (baixo) e Carl Burnett (bateria), Art mostra porque, apesar da vida ultraturbulenta, repleta de internações e prisões por conta do vício em heroína, se consagrou como um dos principais estilistas do sax-alto na história do jazz. Assina a maioria dos temas (destaque para “Red car”, “Road waltz” e a intrincada “Straight life”, título de sua autobiografia editada em 1979) e brilha também nas releituras de “Rhythm-a-ning” (clássico de Thelonious Monk), “Goodbye” (a sempre comovente balada de Gordon Jenkins), o standard “Body and soul” e até o bolero “Besame mucho” em levada de semi-samba e15 minutos de duração.

Por questões técnicas elementares, “Landscape” começa com o solo de Cables já no meio, e “For Freddie” é interrompida pela necessidade de virar a fita cassete.
Porém, nem mesmo o chiado de fundo corta o barato das performances. A louvável masterização (a cargo de Wayne Peet no Newzone Studio, aqui em LA) adicionou bastante “punch” nos graves. O sax soa potente e penetrante. Emocionam as falas de Art antes de algumas músicas como “Goodbye” (“a very beautiful song, recorded live at the Village Vanguard” – uma referência a seu antológico álbum de 1977 – “…used to be Benny Goodman’s signature song”) e “Straight life” (“the title of my autobiography…I taped and Laurie did everything else”), na qual o baterista Burnett incendeia de vez o set. Depois da execução sublime em “Body and Soul”, Pepper abre o coração: “one of the nicest things I’ve ever played in my life...I’m sober and happy because of music”.

Concerto derradeiro

A atmosfera segue arrepiante no decorrer de “The last concert”. Data: 30 de maio de 1982. O último concerto de sua última turnê. O último concerto de Art Pepper. Dez dias depois ele entraria em coma. E morreria de hemorragia cerebral, aos 56 anos, em 15 de junho (um trecho do obituário publicado na Variety está reproduzido no encarte). A apresentação, registrada pelo famoso programa de rádio “Voice of América”, fazia parte da programação do Kool Jazz Festival (na verdade o antigo Newport e atual JVC, então patrocinado pelos cigarros Kool) no Kennedy Center em Washington D.C.

No quarteto, a diferença – substancial, diga-se de passagem – é a presença do pianista Roger Kellaway, subsituindo Cables. Virtuose, Roger arrasa nos solos em “Ophelia” (uma aula de dinâmica e construção, indo de single-notes à arpejos ebulientes) e especialmente no “Mambo Koyama” de 17 minutos. Evoca de Cecil Taylor a Oscar Peterson, e sai entortando tudo após Pepper disparar num improviso vertiginoso. Segue-se um “Over the rainbow” diferente de qualquer outro, despido de sentimentalismo barato e repleto da mais refinada emoção. Depois da introdução a capella, Art “chama” a banda em um andamento superlento, sobre o qual ele e Kellaway voam em solos soberbos, além de se revelarem em telepático entrosamento durante a exposição da melodia.

Pura emoção

“When you’re smiling”, a última música do show, é dedicada por Art ao velho amigo Zoot Sims, que ele encontrara nos bastidores. Antes de iniciar a exposição do tema composto em 1928 pela trinca Mark Fisher, Joe Goodwin & Larry Shay, e consagrado por Louis Armstrong, Pepper conversa descontraidamente com a platéia, relembrando a amizade com Zoot desde a adolescência. O público ri e aplaude como se estivesse num pequeno clube. Pepper, peculiarmente carismático, sabia criar esta intimidade com os fãs. Pega o clarinete e sai flutuando sobre a melodia. Improvisa fluentemente como se estivesse caminhando em direção ao paraíso, abre espaço para outro solo abrasador de Roger Kellaway e se despede da música enquanto a audiência clama por um bis que a organização do evento, alegando limitações de horário, não permitiu. Sai do palco abraçado ao sax. Mas a performance derradeira aconteceu no clarinete.

Laurie Pepper, incansável, já prepara outros lançamentos. Um disco ao vivo no Croyden Jazz Festival (Inglaterra) em 1981, e um CD-triplo com o título provisório de “Art history project” que irá reunir gravações do início (inclusive takes ao lado de Shorty Rogers), meio (material inédito de sua fase no selo Contemporary) e do final de carreira. “Quero mostrar o desenvolvimento de Art, a maturação de seu estilo”, explica a devotada viúva que também guarda fitas de uma temporada no clube londrino Ronnie Scoot’s, com o búlgaro Milcho Leviev ao piano. “Parte deste material saiu em um disco editado na Inglaterra como se Milcho fosse o líder, porque Art tinha assinado contrato de exclusividade com o selo Galaxy”. Por fim, sonha em finalizar o filme baseado no livro “Straight life”, combinando imagens reais com animação para ilustrar algumas das passagens narradas pelo próprio saxofonista durante os depoimentos para o livro. Alguns clips estão sendo postados na página http://straightlife.org e no YouTube. Para relembrar e contemplar.

Legendas:
“CD-duplo traz um show na cidade de Abashiri, durante a última turnê japonesa de Art Pepper”
“Emocionante registro do último show de Pepper, quinze dias antes de sua morte”
“O saxofonista preparando-se para seu show no Kool Jazz Festival”

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