O jazz finalmente se torna sinônimo de música universal
Arnaldo DeSouteiro
Los Angeles - Perdi a conta dos vistos e cartões de embarque. Seis meses e meio de jazz na veia e na alma. Praticamente duas voltas ao mundo durante este período. E mais algumas centenas de itens para uma coleção que já supera mais de trinta mil títulos. Nem por isso meu entusiasmo pelo gênero arrefece, muito pelo contrário. Ainda mais porque o tal “gênero” realmente se transformou em uma música sem fronteiras. Pode ter nascido nos Estados Unidos, mas há muito se tornou uma “música do mundo”, para desespero dos puristas.
As provas estão espalhadas pelo planeta, principalmente na Europa e na Ásia, mercados que praticamente sustentam até mesmo os jazzmen norte-americanos, principalmente nesta época dos festivais de verão. Haja visto Eliane Elias semana passada na Croácia. Randy Brecker na Polônia. Sem falar que o maior jazz a que assisti até agora em 2008 foi praticado, no palco do Carnegie Hall, em New York, por um baiano de Juazeiro, atração principal de um dos três mais importantes festivais de jazz do mundo.
Na noite de 24 de julho, João Gilberto levou ao êxtase mais de duas mil pessoas que lotavam a sala. Única noite do festival com apenas uma atração. Afinal, era o único artista capaz de esgotar os ingressos do Carnegie sem precisar dividir o palco com mais ninguém. O único gênio na programação. Pois não há nada mais jazz (nas aulas de fraseado, divisão e recriação harmônica) nem mais genial do que João Gilberto. Como dizia meu amigo Seth Rothstein na platéia, “uma epifania”. Dezenas de músicos, historiadores e celebridades misturados a anônimos passavam pela “experiência” que eu, privilegiado, já tive a oportunidade de viver na Suíça, no Japão e, pasmem, até no Brasil, incluindo diversas ocasiões em que trabalhamos juntos.
Presença brasileira
João Gilberto, assim como o jazz, se reinventa constantemente. Os artistas mais sábios fazem o mesmo. Inclusive Raul de Souza e Toninho Horta que estraçalham em seus novos CDs gravados na... Áustria! Sob os auspícios de Paul Zauner, dono da PAO Records, lançam trabalhos que estão dando o que falar. “Soul & creation” é o melhor disco de Raul desde “Sweet Lucy” e “Don’t ask my neighbords”, de sua fase áurea na Capitol nos anos 70. Sem a preocupação de agradar ao mercado brasileiro, receptivo atualmente apenas a conservadores e retrógados projetos “de raiz”, Raulzinho libera sua paixão pelo fusion assessorado por ases como o batera Idris Muhammad, o baixista Cameron Brown, Harry Sokal (tenorista favorito do saudoso Friedrich Gulda) e Alegre Correa (guitarrista brasileiro revelado na Vienna Art Orchestra), autor da bela balada “Love is on our way”, ouvida em versão instrumental e outra (muito bem) cantada por Maria Pentschev.
O repertório vai de Gershwin (“Love is here to stay”) a Gil (“Palco”), passando por grooviados temas do próprio Raul como “Funky man” e “Mr. Bone“, no qual, após solo alucinado de trombone, nosso herói dispara no flugelhorn. A única derrapada acontece na ficha técnica, que omite o nome do tecladista adepto do meu amado Fender Rhodes. “Toninho in Vienna” traz quinze impecáceis performances-solo, com a participação especial do violinista Rudi Berger em “Summertime”, mineiramente vocalizado. Fora outro clássico, “Cry me a river”, Horta concentra-se em suas lindas peças, revendo “Beijo partido” e “Aquelas coisas todas”, às vezes superpondo um segundo violão como em “My best brother”.
Geniais tecladistas
Na Suíça o jazz também flui com requinte, ousadia e muita criatividade. Principalmente no CD “Nu-Gara” (Veto Records) do quarteto Scope liderado pelo assombroso tecladista Hans-Peter Pfammatter, que recorre até ao piano elétrico Wurlitzer – sem abrir mão do acústico eventualmente “preparado” a la John Cage – nas densas viagens de “Throw your mind”, “Freeter” e “Gutz guz”, agulhado pelas intervenções de Urban Lienert (baixo), Lionel Friedli (bateria) e Lucien Dubuis (um monstro no clarone).
Fusion para o terceiro milênio, livre de clichês, tão fascinante quanto as paisagens sonoras percorridas pela “Africasiamerica” (Editio Princeps) do brasileiro universal Lelo Nazario, outro a alcançar perfeito equilíbrio entre piano acústico, Rhodes e teclados eletrônicos, além da lição de como utilizar samples do modo mais inventivo possível. Os títulos das faixas dão pistas sobre os conteúdos: “Insólito” (“resultado de várias combinações harmônicas superpostas”, explica o genial Lelo), “Solúvel em água” (presença do extraordinário guitarrista Felipe Ávila), “Perplex city” (novamente com a impactante contribuição de Ávila), “Piano voador” (Teco Cardoso no sax soprano) e “Espiral” (de Lea Freire).
O norte-americano Gary Husband limita-se ao Rhodes e a um Yamaha acústico em “Tipping point” (MoonJune), mas é o bastante para dinamitar preconceitos e fronteiras em perfeita sintonia com o batera Jason Smith e o contrabaixista Dave Carpenter, precocemente falecido no mês passado aos 48 anos. O trio arrasa em show captado ao vivo no Jazz Bakery, meu favorito clube de jazz aqui em Los Angeles, reinventando jóias de Denny Zeitlin (“Carole’s garden”), Keith Jarrett (“Star bright”), John McLaughlin (“Follow your heart”, carro-chefe do primeiro álbum de Joe Farrell na CTI em 1970), Kenny Wheeler (“Heyoke”) e até Jimmy Webb, dando nova dimensão baladista a “Up up and away”, ralentada ao extremo.
Na Suíça o jazz também flui com requinte, ousadia e muita criatividade. Principalmente no CD “Nu-Gara” (Veto Records) do quarteto Scope liderado pelo assombroso tecladista Hans-Peter Pfammatter, que recorre até ao piano elétrico Wurlitzer – sem abrir mão do acústico eventualmente “preparado” a la John Cage – nas densas viagens de “Throw your mind”, “Freeter” e “Gutz guz”, agulhado pelas intervenções de Urban Lienert (baixo), Lionel Friedli (bateria) e Lucien Dubuis (um monstro no clarone).
Fusion para o terceiro milênio, livre de clichês, tão fascinante quanto as paisagens sonoras percorridas pela “Africasiamerica” (Editio Princeps) do brasileiro universal Lelo Nazario, outro a alcançar perfeito equilíbrio entre piano acústico, Rhodes e teclados eletrônicos, além da lição de como utilizar samples do modo mais inventivo possível. Os títulos das faixas dão pistas sobre os conteúdos: “Insólito” (“resultado de várias combinações harmônicas superpostas”, explica o genial Lelo), “Solúvel em água” (presença do extraordinário guitarrista Felipe Ávila), “Perplex city” (novamente com a impactante contribuição de Ávila), “Piano voador” (Teco Cardoso no sax soprano) e “Espiral” (de Lea Freire).
O norte-americano Gary Husband limita-se ao Rhodes e a um Yamaha acústico em “Tipping point” (MoonJune), mas é o bastante para dinamitar preconceitos e fronteiras em perfeita sintonia com o batera Jason Smith e o contrabaixista Dave Carpenter, precocemente falecido no mês passado aos 48 anos. O trio arrasa em show captado ao vivo no Jazz Bakery, meu favorito clube de jazz aqui em Los Angeles, reinventando jóias de Denny Zeitlin (“Carole’s garden”), Keith Jarrett (“Star bright”), John McLaughlin (“Follow your heart”, carro-chefe do primeiro álbum de Joe Farrell na CTI em 1970), Kenny Wheeler (“Heyoke”) e até Jimmy Webb, dando nova dimensão baladista a “Up up and away”, ralentada ao extremo.
Vozes viajantes
Também residindo atualmente em LA, depois de duas décadas batalhando em NY, Diane Hubka fez sua primeira excursão pelo Japão para divulgar “Hubka goes to the movies” – apontado um dos melhores lançamentos de 2007 neste espaço – e voltou de lá com um CD ao vivo: “I like it here – live in Tokyo”, bancado pela SSJ (Sinatra Society of Japão) durante um show no JZ Brat, no meu querido bairro de Shibuya. Coadjuvada por um trio local – Kiyoshi Morita (piano), Masahiko Taniguchi (baixo) e Nobuhiko Yamashita (bateria) – a cantora, influenciada por Helen Merrill, exibe seu timbre aveludado nas baladas “You go to my head”, “Moonlight in Vermont” e “All my tomorrows”. Passeia também por três canções gravadas por Sinatra nos encontros com Jobim: “Água de beber”, “Samba de uma nota só” e “Dindi”, esta última seu momento mais inspirado no disco, abdicando do usual clima tristonho em favor de um andamento médio cheio de balanço.
Outra cantora que vem ganhando prestígio é Amanda Carr, “descoberta” pela mídia depois de incensada pelo renomado historiador Nat Hentoff em artigo no Wall Street Journal. Hentoff derreteu-se com o mais recente CD da blond-girl, “Soon” (OMS), no qual se destacam as releituras de “If you could see me now”, “Flamingo”, “Squeeze me”, “Good bait”, “Where can I go without you” e “If you never come to me”, a “Inútil Paisagem” de Jobim & Aloysio de Oliveira na versão de Ray Gilbert. Além de bem intencionada abordagem de “Mas que nada”, com John Wilkins (guitarra), Bronek Suchaneck (baixo), Kenny Hadley (bateria) e Arnie Krakowsky (sax tenor).
Aproveitando a onda de popularidade, Amanda relançou por seu selo OMS, distribuído via CD Baby, seus três álbuns anteriores. O mais instigante é “Carr toons” que, além do ótimo trocadilho do título, conta com uma superapresentação gráfica e soa surpreendentemente maduro para um disco de estréia. Gravado em 1996, conta com o saudoso trompetista Herb Pomeroy e um cardápio de primeira: “Watch what happens”, “Scotch and soda”, “Lullaby of Birdland” e uma emocionante “We’ll be together again”, entre outras pérolas. “Live in San Giorgio”, de 1999, também está recheado de standards tipo “Old devil moon” e “The nearness of you”, mas os principais atrativos são as parcerias de Amanda com o pianista italiano Luigi Martinale em “Sweet Marta” e “Take your time”. Não menos saboroso, “Tender trap” (2004) oferece “I’ll close my eyes”, “Tulip or turnip”, “I’ll never be the same” e “Chega de saudade” com a controvertida letra em inglês de Jon Hendricks (“No more blues”).
Bons cantores – Ann Hampton Callaway, Gretchen Parlato e Grady Tate, que se abstém da bateria – fornecem os melhores momentos do novíssimo CD de Kenny Barron, “The Traveler” (EmArcy), mas mesmo assim o disco não decola, transcorrendo em clima morno agravado pelos temas pouco inspirados do pianista. Em compensação, “Universal syncopations II” (ECM), do baixista tcheco Miroslav Vitous, é uma obra-prima valorizada pelas contribuições de Randy Brecker, Adam Nussbaum, Bob Malach, Gary Campbell e Bob Mintzer, com as oito faixas formando uma soberba suíte maravilhosamente orquestrada pelo líder. Reedições, compilações, caixas, tributos e muitos outros lançamentos nas próximas semanas. A pilha cresce mas a fila anda.
Legendas para as ilustrações:
Raul de Souza, nosso craque do trombone, brilha na Áustria
Diane Hubka lança seu primeiro CD ao vivo, gravado no Japão
Também residindo atualmente em LA, depois de duas décadas batalhando em NY, Diane Hubka fez sua primeira excursão pelo Japão para divulgar “Hubka goes to the movies” – apontado um dos melhores lançamentos de 2007 neste espaço – e voltou de lá com um CD ao vivo: “I like it here – live in Tokyo”, bancado pela SSJ (Sinatra Society of Japão) durante um show no JZ Brat, no meu querido bairro de Shibuya. Coadjuvada por um trio local – Kiyoshi Morita (piano), Masahiko Taniguchi (baixo) e Nobuhiko Yamashita (bateria) – a cantora, influenciada por Helen Merrill, exibe seu timbre aveludado nas baladas “You go to my head”, “Moonlight in Vermont” e “All my tomorrows”. Passeia também por três canções gravadas por Sinatra nos encontros com Jobim: “Água de beber”, “Samba de uma nota só” e “Dindi”, esta última seu momento mais inspirado no disco, abdicando do usual clima tristonho em favor de um andamento médio cheio de balanço.
Outra cantora que vem ganhando prestígio é Amanda Carr, “descoberta” pela mídia depois de incensada pelo renomado historiador Nat Hentoff em artigo no Wall Street Journal. Hentoff derreteu-se com o mais recente CD da blond-girl, “Soon” (OMS), no qual se destacam as releituras de “If you could see me now”, “Flamingo”, “Squeeze me”, “Good bait”, “Where can I go without you” e “If you never come to me”, a “Inútil Paisagem” de Jobim & Aloysio de Oliveira na versão de Ray Gilbert. Além de bem intencionada abordagem de “Mas que nada”, com John Wilkins (guitarra), Bronek Suchaneck (baixo), Kenny Hadley (bateria) e Arnie Krakowsky (sax tenor).
Aproveitando a onda de popularidade, Amanda relançou por seu selo OMS, distribuído via CD Baby, seus três álbuns anteriores. O mais instigante é “Carr toons” que, além do ótimo trocadilho do título, conta com uma superapresentação gráfica e soa surpreendentemente maduro para um disco de estréia. Gravado em 1996, conta com o saudoso trompetista Herb Pomeroy e um cardápio de primeira: “Watch what happens”, “Scotch and soda”, “Lullaby of Birdland” e uma emocionante “We’ll be together again”, entre outras pérolas. “Live in San Giorgio”, de 1999, também está recheado de standards tipo “Old devil moon” e “The nearness of you”, mas os principais atrativos são as parcerias de Amanda com o pianista italiano Luigi Martinale em “Sweet Marta” e “Take your time”. Não menos saboroso, “Tender trap” (2004) oferece “I’ll close my eyes”, “Tulip or turnip”, “I’ll never be the same” e “Chega de saudade” com a controvertida letra em inglês de Jon Hendricks (“No more blues”).
Bons cantores – Ann Hampton Callaway, Gretchen Parlato e Grady Tate, que se abstém da bateria – fornecem os melhores momentos do novíssimo CD de Kenny Barron, “The Traveler” (EmArcy), mas mesmo assim o disco não decola, transcorrendo em clima morno agravado pelos temas pouco inspirados do pianista. Em compensação, “Universal syncopations II” (ECM), do baixista tcheco Miroslav Vitous, é uma obra-prima valorizada pelas contribuições de Randy Brecker, Adam Nussbaum, Bob Malach, Gary Campbell e Bob Mintzer, com as oito faixas formando uma soberba suíte maravilhosamente orquestrada pelo líder. Reedições, compilações, caixas, tributos e muitos outros lançamentos nas próximas semanas. A pilha cresce mas a fila anda.
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Diane Hubka lança seu primeiro CD ao vivo, gravado no Japão
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