Monday, July 21, 2008

Past, present and future in the hands of Chick Corea

Passado, presente e futuro nas mãos de Chick Corea
O indomável pianista lança uma caixa com seis novos CDs

Arnaldo DeSouteiro

Montreux (Suíça) - Se existe um músico que consegue, no atual panorama jazzístico, sintetizar passado, presente e futuro, este mestre é Armando Anthony Corea, vulgo Chick Corea. Conhecedor das tradições sem refugiar-se nelas e muito menos adotar um ar professoral a la Marsalis. Capaz de vivenciar o presente sem contentar-se com os resultados imediatos que poderiam levar ao conformismo. Sempre atento ao futuro através da disposição à aventura conseqüente, ao invés de ater-se à pseudo-vanguarda dos invencionismos modernosos praticados por colegas de teclado de uma geração posterior – e muito inferior, diga-se de passagem.

Jamais se acomodando a um estilo ou a um formato, surpreende sempre pela disposição em desenvolver novos projetos, às vezes até mesmo na área da música clássica (vide os encontros com Friedrich Gulda e Nicolas Economou). Em um momento, apronta duos com Béla Fleck e Gary Burton. Em outro, debruça-se sobre a obra de Bud Powell. Mais adiante, reorganiza a segunda formação do Return to Forever, a maior sensação dos festivais de jazz neste verão europeu. Ignorando patrulhamentos estéticos, toca e anda para a ridícula divisão entre sons acústicos e eletrônicos. Não raro cutuca os xiitas dos dois lados, salpicando sintetizadores em projetos “acústicos” e vice-versa, como documentado na recente compilação “Electric Chick”, que tive a honra de produzir para a Verve.

Pioneiro no controle absoluto sobre sua carreira, auto-gerenciada com uma lucidez que somente quatro décadas de estudo da cientologia poderia proporcionar, Chick mantém arrojada postura também na materialização discográfica de tamanha fertilidade criativa. À frente de seu próprio selo Stretch, teve a ousadia de, em dezembro de 2001, comemorar seus 60 anos de vida com três semanas de shows (no Blue Note de NY) que se transformaram em uma coleção de 10 DVDs batizada “Rendezvous in New York”. Reviveu as sessões de “Now he sings, now he sobs” e “Three quartets”, exibiu-se em duos com Bobby McFerrin e Gonzalo Rubalcaba, liderou os grupos Origin e Akoustic Band, além de outras proezas.

Gênio indomável

Agora, volta a barbarizar com “Five trios”, uma caixa de seis CDs. A aparente contradição no título tem explicação: Corea atua em cinco trios com músicos diferentes, mas há um sexto disco incluindo faixas que não couberam nos outros álbuns. “O trio é a formação clássica do jazz, e o número três é altamente místico”, explica o astro. “Para mim, o piano representa o vento. O baixo, a terra. E a bateria, o fogo”. Representando os elementos da natureza, velhos e novos amigos. No CD “Dr. Joe”, ao lado de John Patitucci & Antonio Sanchez, a recriação de “Crepuscule with Nellie” (Monk) sobressai-se entre as dez faixas. “From Miles”, com Eddie Gomez & Jack DeJohnette, traz extensas explorações de “Solar”, “So near so far”, “Milestones”, “But beautiful” e “Walkin’” – curiosamente, todas anteriores à sua associação com o trompetista.

“Chillin' in Chelan" juntando Christian McBride & Jeff Ballard, vai de “Summer night” a “Sophisticated lady”, passando por “Windows”, uma das menos badaladas obras-de-arte compostas por Corea. Dois jovens ainda na faixa dos vinte anos que lançaram seus discos de estréia em 2007, Hadrien Feraud (já convocado para a banda de John McLaughlin) & Richie Barshay, revelações nas quais o visionário aposta suas fichas, são os coadjuvantes em “Brooklyn, Paris to Clearwater”, passeando por “Final frontier”, “Island tune” e “Dr. Jackle”. Detalhe: este e o tal sexto disco com as “sobras” estão disponíveis apenas na caixa, mas os outros quatro CDs podem ser importados individualmente do Japão.
Trio genial em noite mágica

Ponto alto da caixa, “The Boston three party” é um caso à parte. Captado durante concerto no Berklee Performance Center, em 28 de abril de 2006, inclui soberbas reinvenções dos standards “With a song in my heart” e “Sweet and lovely”, além da composição mais famosa de Bill Evans (“Waltz for Debby”), e três clássicos do jazz contemporâneo lançados em 1972 na primeira formação do Return to Forever com Airto & Flora Purim: “500 miles high”, “Sometime ago” e “La fiesta”, estes dois últimos unidos em uma suíte de três movimentos totalizando 22 minutos (o CD alcança 74m03s).

O momento mais impactante, contudo, acaba sendo “Desafinado” (Tom Jobim & Newton Mendonça). Airto improvisa uma introdução vocal, mesclando português e inglês, provocando uivos da platéia em delírio. Relembra a infância (usando a tática de auto-depreciação, brinca com o próprio sotaque ao esclarecer que foi criado em uma casa sem cerca – “no fence” – quando o público parecia ter entendido “no offence”), fala do Brasil (“um país maravilhoso com churrasco e muitos vegetais”) e comenta a suposta popularidade da obra de Jobim (cantarolando um trecho de “Garota de Ipanema”). E quando “Desafinado” realmente começa, eis Airto cantando a letra emblemática da bossa-nova ao mesmo tempo em que arrasa na bateria.

Aliás, Mr. Moreira – até hoje vergonhosamente ignorado e/ou esculhambado no Brasil, por pura inveja – arrasa o tempo inteiro, colocando todas as faixas sob pulsações híbridas inusitadas, frequentemente alterando andamentos. “With a song in my heart”, por exemplo, vira samba e vira jazz e vira samba de novo, e vai nessa onda o tempo inteiro, sem perder a fluência. Volta e meia, sua percussão selvática ornamenta as introduções, estimulando ainda mais os companheiros, vide os 10 minutos iniciais (de um total de 18) de “500 miles high”, com direito a evocação a Oxossi (“Tiro certeiro/passo ligeiro/ele é o rei da mata”) enquanto Eddie Gomez faz loucuras com o arco do contrabaixo.

Airto exerce uma supra-excitante supracondutividade que leva Chick e Eddie a alcançarem um grau de profundidade emocional – diria até de comprometimento (no sentido da palavra “commitment”) com o som divino ali criado – que não rola nos outros CDs, por mais que sejam excelentes. Seu desempenho em “Waltz for Debby” é coisa de gênio, começando a levada no caxixi (com o pé esquerdo no contratempo), passando para as baquetas, depois usando as vassouras (durante o solo de Eddie) e retomando as baquetas, proporcionando, assim, quatro quadros rítmicos dentro de uma mesma música! Quanto aos solos de Gomez, seria necessário um outro artigo para descrevê-los.

Festa especial

“Foi a mais extravagante e selvagem combinação de baixo e bateria que eu já tentei”, comenta Corea. “Decidi empregar alguns teclados eletrônicos para evocar a sonoridade que Airto e eu criamos na primeira formação do Return to Forever. E aproveitei para pescar algumas coisas do repertório de Bill Evans em função da associação de onze anos de Eddie Gomez com um dos meus pianistas favoritos. No dia do concerto do trio, minha família e meus amigos de infância de Massachusetts, meu estado natal, estavam presentes, transformando a ocasião em uma festa muito especial”, acrescenta.

Além do piano acústico Yamaha modelo CFIIIS (o topo de linha da marca pelo som brilhante e macio), Chick pilota um Fender Rhodes e um Minimoog Voyager, sintetizador analógico monofônico de 44 teclas criado por Robert Moog em 2002 contendo todas as funções do minimoog original (fabricado entre 1971 e 1984) somadas à conexão MIDI e outros recursos como um banco de memória de 128 “presets”. Corea usa com parcimônia, e nos momentos certos, o mimo que vale o preço de 3 mil dólares. Importante falar ainda da excepcional qualidade de som obtida pelos engenheiros de som Bernie Kirsh (que trabalha com Chick há três décadas) e Brian Vibberts.

"Gloria's Step" (de Scott LaFaro) e "You're Everything" (pérola lançada no LP “Light as a feather”) entraram no sexto CD da caixa, o de “Additional tracks, juntamente com "50% Manteca" (do CD "Dr. Joe") e "Bud Powell", "Spain in the Main" and "Spain Drumdendum" (de "Chillin' in Chelan"). Vale lembrar que, fora a fase do RTF, Airto e Chick gravaram juntos em discos como “Secret agent”, “Tap step”, “The ultimate adventure” (de Corea) e “Struck by lightning” e “Killer bees” (de Moreira). Por sua vez, Eddie Gomez participou de “The Leprechaun”, “Friends” (ambos Grammyados), “The mad hatter” e “Three quartets”. No ano passado, pude ver esta turma, mais Hubert Laws na flauta, em ação no Great American Music Hall de San Francisco.

Aos 67 anos completados em 12 de junho, Corea permanece um herói indomável e imprevisível. Sem posar de pitoniso, não dita regras. Ignora-as. Simplesmente segue sua intuição, enquanto aponta rumos e sinaliza caminhos. Os sábios que tratem de estudá-lo, ao invés de imitá-lo.

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