Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 16 de Novembro de 2000 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"
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Há mais de meio século, precisamente na histórica data de 2 de julho de 1944, o lendário produtor/empresário Norman Granz descobriu seu “ovo de Colombo”. A fórmula que o levou a formar um império de sucesso era bem simples: reunir seus principais contratados em grandes concertos no formato batizado de all-stars. Ao invés de cada artista principal fazer um show individual, com músicos próprios, Norman reunia todos os seus astros acompanhados por uma mesma seção rítmica. Além disso, os principais nomes interagiam em números especialmente preparados para tais ocasiões, proporcionando ao público a rara oportunidade de contemplar performances inesperadas. Afinal, não era qualquer dia que se podia assistir, num mesmo palco, no mesmo show, Charlie Parker, Benny Carter, Oscar Peterson, Barney Kessel e Ben Webster.
Naquela época, tais eventos receberam o nome de “Jazz at the Philharmonic”, basicamente porque os primeiros concertos aconteceram no Los Angeles Philharmonic Auditorium . Granz e os artistas logo descobriram a excelente relação custo-benefício,que tornava as turnês mais baratas e lucrativas, com o businessman mantendo a grife JATP até a sua fase como dono da Pablo Records. No período final em que esteve à frente da gravadora, antes de vender seu acervo ao poderoso conglomerado Fantasy, em l987, passou a chamar seus supergrupos de Pablo All-Stars, juntando figuras do porte de Count Basie, Ella Fitzgerald, Joe Pass, Zoot Sims e Duke Ellington.
Alguns produtores bem que tentaram copiar a fórmula “patenteada” por Norman, mas poucos foram bem sucedidos, basicamente por não contarem com casts tão atrativos. A grande exceção foi Creed Taylor, que ao criar a CTI Records em l970 tratou de contratar os jazzmen mais promissores do mercado. Um ano depois, em um histórico concerto no Hollywood Paladium, documentado em álbum-duplo e recentemente reeditado em CD sob o nome “Califórnia Concert”, ele provou que já tinha condições de reprisar o sucesso de Granz. Graças ao fabuloso elenco, do qual faziam parte George Benson, Hubert Laws, Freddie Hubbard e Stanley Turrentine como solistas, ancorados pela base formada por Johnny Hammond, Ron Carter, Airto & Billy Cobham, obteve estrondoso êxito de público e crítica, merecendo consagrador artigo de Leonard Feather no jornal inglês Melody Maker.
A partir de 72, Creed passou a excursionar não somente pelos EUA, mas também pela Europa e Japão, com variadas formações da bandaça CTI All-Stars, sempre dando a largada na Califórnia. Particularmente memorável, um time de 14 figuras, incluindo Deodato, Bob James, Jack DeJohnette, Milt Jackson, Grover Washington Jr., Benson, Joe Farrell e Esther Phillips, registrou três volumes intitulados “CTI Summer Jazz at the Hollywood Bowl”. Nos anos 90, demonstrou que a eficiência do contexto permanecia inabalável, lançando os projetos “Rhythmstick” (filmado “ao vivo” no estúdio de Rudy Van Gelder) e “CTI Superband”, captado em show em Tokyo e rebatizado “Chroma” por ocasião da edição nos EUA.
Feras da “fusion”
Toda esta prosopopéia ocorre por conta do relançamento, em CD, de dois álbuns produzidos por Creed Taylor, no início dos anos 80, com duas diferentes formações all-stars. O primeiro, “Fuse One” (37m40s), provou que o conceito podia funcionar em estúdio tão bem quanto em concertos. Impulsionado por uma faixa transformada em jingle da TDK, e conseqüentemente em hit radiofônico, vendeu mais de 150 mil cópias no Japão, chegando ao topo das paradas de jazz e pop. Nos EUA, o desempenho comercial não chegou à metade, por culpa dos problemas de distribuição da CTI naquela época. Mesmo assim, virou um disco cult, adorado principalmente por fãs de guitarristas.
Não sem motivo. Na linha de frente estavam dois ícones da guitarra na era do jazz-rock, Larry Coryell & John McLaughlin, lado a lado com os baixistas Stanley Clarke & Will Lee, os tecladistas Ronnie Foster, Jeremy Wall, Don Grusin, Jorge Dalto & Victor Feldman, os bateras Tony Williams, Leon “Ndugu” Chancler & Lenny White, e os percussionistas Paulinho da Costa & Roger Squitero. Sem falar do mestre dos saxofones e das flautas Joe Farrell, da astuta programadora de sintetizadores (às vésperas de transformar-se em musa da new-age) Suzanne Ciani, e de uma orquestra de cordas comandada por Jeremy Wall - então membro do Spyro Gyra – em três faixas.
Funcionou? Claro, com uma explicação básica fornecida pelo próprio Creed no texto do livreto: “O projeto foi concebido como um fórum no qual grandes músicos contemporâneos atuam de acordo com seus princípios individuais, interagindo sem os constrangimentos que ocorrem eventualmente quando estão sob a pressão da responsabilidade acarretada pela posição de liderança. Cada artista contribuiu com novas idéias e composições”. O produtor bem que deveria ter salientado a importância de Jeremy Wall, o único músico a tocar em todas as faixas, assinando todos os arranjos e a autoria da faixa que puxou o disco, “Doublesteal”, a tal do anúncio da TDK.
Funkaço com uma levada irresistível, do tipo “Do Leme ao Pontal”, único momento com as guitarras de McLaughlin & Coryell juntas no disco, destaca também o tenor abrasador do saudoso Joe Farrell, ouvido no soprano em “Sunshine lady”, baladinha pop de Stanley Clarke. Depois, brilha na flauta em dó na estruturalmente complexa “Friendship”, dividindo o solo com o violão do autor, John McLaughlin, responsável pelos riffs de base em “Grand Prix”, típico tema fusion bem ao gosto do compositor Ronnie Foster. A superprodução, gravada entre abril e junho de 80, se completa com Coryell roubando a cena no vigoroso “Táxi blues”(de autenticidade reforçada pela presença do gaitista Hugh McCracken) e na adaptação, com sabor brasileiro, para “Waterside”, peça clássica do genial Bedrich Smetana (1824-1884), solando no violão de 12 cordas.
Clima de jam-session
Se, além de todas as suas virtudes, “Fuse one” ainda hoje impressiona pela performance inesperadamente eclética e funkyada do britânico McLaughlin, o projeto seguinte de Creed teve como principal atrativo o desempenho surpreendentemente fluente do purista xiita Wynton Marsalis num contexto “fusion” e ainda por cima eletrônico! Registrado em setembro de l981, o álbum “Silk” (33m40s) reaparece agora em CD por iniciativa de Susumu Morikawa & Yoichi Nakao, diretores da King Records, distribuidora da CTI no mercado japonês. São “apenas” quatro longas faixas, marcadas pela carismática atuação de Stanley Clarke, nomeado diretor musical desta efeméride.
Dois temas – do tempo em que as rádios de jazz tocavam faixas com mais de oito minutos – são alicerçados sobre envolventes grooves armados por Clarke em dobradinha com o batera Ndugu, autor da faixa-título, “Silk”, sob medida para a sonoridade cheia e o fraseado bluesy de Stanley Turrentine, que não gravava para a CTI desde 73. Já a sinuosa “Sunwalk”, composição e arranjo de Ronnie Foster, junta o tenorista com outro membro do cast da CTI nos anos 70, George Benson, que se encarrega do solo principal, enquanto outro guitarrista, Eric Gale, expõe a melodia usando o dinossáurico artefato “voice bag”.
Ponto alto, o arranjo de atmosfera épica para “In celebration of the human spirit” abriga, entre as coisas inacreditáveis, duelos entre os trompetes de Marsalis e Tom Browne, uma alucinante troca de compassos entre os dois trompetistas, o flautista Dave Valentin e o baixo elétrico de Clarke, e a sustentação do baixista Marcus Miller (em início de carreira) para todas essas peripécias. Encerrando a trip, uma composição e arranjo do injustamente pouco badalado Ndugu, que aliás dá um show à parte em todo o CD, juntando precisão e criatividade. (Para quem não se lembra, ele tocou no Rio/Monterey Jazz Festival que rolou no Maracanãzinho em 80, num grupo all-stars com Airto, Raul de Souza, Clarke, Roland Bautiste & George Duke). Originalmente lançada no LP “Reach for it” de Duke, em 77, “Hot fire” reaparece numa versão ainda mais eletrizante, com solos de Marsalis, Valentin e dos percussionistas Manolo Badrena (timbales) e Sammy Figueroa (congas). Resistir ao preço cobrado na Modern Sound ou na Tracks, quem há de?
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