Monday, September 10, 2007

Eugen Cicero & Klaus Doldinger



Eugen Cicero e Klaus Doldinger em ótimas retrospectivas
Expoentes do jazz europeu são relembrados em CDs múltiplos
Arnaldo DeSouteiro

Duas figuras lendárias do jazz europeu têm o início de suas carreiras discográficas merecidamente recuperadas, com minucioso trabalho de pesquisa, em reedições especiais da Universal. O genial pianista romeno Eugen Cicero, até então relegado a um absurdo obscurantismo, ganha um CD-triplo que compila suas gravações para os selos SABA e MPS, repletas de excelentes jazzificações de obras clássicas de Bach, Liszt, Chopin e Tschaikowsky. E o saxofonista alemão Klaus Doldinger, famoso por liderar o grupo fusion Passport, é celebrado em CD-quádruplo dedicado à sua fase inicial na Philips, quando gravou temas dos brasileiros Djalma Ferreira, Jadir de Castro, Tom Jobim e Villa-Lobos.

Virtuosismo latente

Começando logo pelo trabalho mais surpreendente, “Swinging the classics on MPS” reúne, em três CDs, algumas das fantásticas gravações realizadas pelo pianista romeno Eugen Cicero (1940-1997) para o selo alemão MPS, hoje pertencente à Universal. O produtor Matthias Kunnecke selecionou trinta e seis faixas extraídas de cinco LPs, gravados entre 1965 e 1970 no estúdio da MPS (sigla de Musikproduktion Schwarzwald, transformada em Most Perfect Sound pela Universal) em Villingen, na famosa “floresta negra”. O livreto de 28 páginas traz fotos raras e os textos originais das contracapas dos álbuns, assinados por renomados historiadores como Joachim-Ernst Berendt e Egbert Hoehl.

Há comentários adicionais de membros do staff da MPS e de músicos que acompanharam o prodígio. “Toquei com muitos pianistas famosos, mas nenhum tão versátil quanto Eugen, que era de tirar o fôlego”, comenta o baixista Peter Witte. Responsável pela descoberta do craque e por apresenta-lo ao fundador da MPS, Hans Georg Brunner-Schwer (falecido em 2004), o batera suíço Charly Antolini acrescenta: “Fizemos muita música gloriosa juntos, era um músico maravilhoso. Sofro ao pensar na carreira internacional que lhe foi negada”. E Willi Fruth, um dos chefões da gravadora, tenta se justificar: “Éramos uma companhia pequena, sem condições de bancar turnês promocionais que certamente teriam sido bem sucedidas...”, admite, embora os discos de EG alcançassem altos índices de vendagem.

Um crime, portanto. Eugen – cujo sobrenome verdadeiro era Ciceu, mudado por Hans para Cicero a fim de facilitar a pronúncia –, virtuoso que sabia colocar sua assombrosa técnica a serviço da mais elevada musicalidade, nunca teve um centésimo do reconhecimento merecido. Foi bastante popular na Alemanha, durante a fase na MPS, a ponto de ser frequentemente chamado de “Oscar Peterson germânico” pelos que desconheciam sua verdadeira nacionalidade. Mas permaneceu praticamente desconhecido fora da Europa. E mesmo no Velho Continente, a partir dos anos 80 caiu em completo esquecimento.

Clássicos jazzificados

Esta caixa pode mudar um pouco a situação e retirar seu nome do ostracismo ao qual foi condenado pela crítica, sempre preconceituosa e implacável com quem se atreve a ignorar fronteiras estéticas e estelísticas. Basta ouvir a primeira faixa, ou melhor, qualquer faixa, para o ouvinte se extasiar. Apaixonado por jazz e música clássica, deveria ter ficado tão famoso quanto Friedrich Gulda ou Jacques Loussier. Afinal, sabia conciliar os dois idiomas com perfeição, somando a destreza da formação erudita com um swing danado. Uma mistura de Franz Liszt com Art Tatum. E que improvisos! Mas foi estigmatizado pelos puristas, esnobados pelos desprezíveis representantes da intelligentsia. “É como se os críticos tivessem combinado nunca mais mencionar seu nome, para esconde-lo das novas gerações”, comenta o músico e historiador Volkher Hofmann. “Para mim, Eugen foi um dos maiores pianistas que este planeta já conheceu”.

O primeiro CD conta com seis faixas de “Rokoko-jazz”, sua estréia na MPS, e mais seis de “Cicero’s Chopin”. As peças de Bach, Scarlatti e Mozart mostram-se sob medida para Eugen esbanjar todas as suas qualidades, que sai jazzificando tudo no maior refinamento, disparando em solos demencializantes. Nas obras de Chopin afloram um lado mais romântico, mas livre de sentimentalismo barato. Rola até uma batida de bossa-nova na adaptação do “Prelúdio em mi menor, op. 28, nº 4”. Pois é, aquele mesmo, inspirador da “Insensatez” de Jobim, em um caso de extrema semelhança que, até hoje, jazzistas das mais variadas tendências (de McCoy Tyner a Gene Bertoncini) não perdem a oportunidade de escancarar. O ponto alto, entretanto, acontece em outro Prelúdio, o opus 28, nº 20, graças ao improviso devastador.

Elegantes adaptações

Plenamente integrados, o baixista Witte (uma aula de precisão) e o baterista Antolini (cujas “vassouradas” são do mesmo nível de Shelly Manne) atuam de forma infalível também nas faixas do segundo CD – seis extraídas de “Swinging Tschaikowsky” e sete de “Romantic swing”, no qual nosso herói destrincha temas de Liszt e Paganini, dois dos maiores virtuoses de todos os tempos, conhecedores profundos das intimidades e idiossincrasias de seus instrumentos. Vai do ataque arrebatador da “Rapsódia Húngara nº 2”, de Liszt, mais tarde adaptada ao fusion por Gabor Szabo (“Macho”), ao acariciar das teclas em três trechos do “Lago dos cisnes”, inclusive no “Andante e Tema” gravado por Hubert Laws (“Studio Trieste”). Sem falar da performance inenarrável no desenrolar da “Abertura miniatura”, da “Suíte Quebra-nozes”.

As mãos seguem voando sobre o teclado no terceiro CD, com oito faixas de “Balkan rhapsody”, de temas folclóricos adaptados por Eugen (o baixista Peter Witte é substituído por J.A. Rettenbacher), e três bonus-tracks. Todas com o fenomenal baterista Charly Antolini, outro a merecer fama mundial. Como autor, Cicero deixa sua marca em “Memories of Clausenburg”, dedicada à sua cidade natal, e “Bach’s softly sunrise”, esperta junção da “Tocata em ré menor” de Bach com a bela melodia do standard “Softly as in a morning sunrise”, de Sigmund Romberg, bossanoveado por Art Farmer no projeto “Rhythmstick”.

Mestre do sax

Os “problemas” que vitimaram Eugen nunca atingiram Klaus Doldinger, o maior nome em matéria de saxofone na Alemanha. Nascido em Berlin, em 1931, sempre desfrutou de grande prestígio e permanente popularidade. Inclusive nos EUA, onde os discos de seu grupo Passport – fundado em 1971 e considerado o melhor conjunto fusion alemão – chegavam á parada de jazz da Billboard. Entre eles, “Iguaçu”, de 1977, parcialmente gravado no Rio com Wilson das Neves e Marcelo Salazar, entre outros. O CD-quádruplo em questão, “Early Doldinger – The complete Philips sessions”, documenta o início da trajetória de Klaus, detalhado em luxuoso livreto de 50 páginas, que reproduz até mesmo as resenhas publicadas no Jornal do Brasil e no Jornal da Bahia em 1965, ano de sua primeira excursão pelo Brazil.

São registros do período 1962-1967, começando por três músicas gravadas para um compacto em dezembro de 62: “Recado bossa nova” (Djalma Ferreira & Luis Antonio), “Copacabana” (Alberto Ribeiro & Braguinha) e “Chega de saudade” (tom & Vinicius). Liderando um quarteto com Ingfried Hoffmann (órgão), Helmut Kandlberger (baixo) e Klaus Weiss (bateria), o tenorista mergulha, no ano seguinte, no universo de Miles (“Solar”), Dizzy (“Woody’n you”) e Monk (“Well, you needn’t”), sem desprezar standards do porte de “I didn’t know what time it was” e “Smoke gets in your eyes”. Em show captado no LP “Live at Blue Note Berlin”, em dezembro de 63, aposta em temas próprios tipo “Groovin’ in Berlin” e “Blue Note samba”,

Samba e bebop

As faixas de “Doldinger in Südamerika”, de 65, com a participação do guitarrista húngaro Atilla Zoller enfatizam a influência brasileira na bossa-exaltação “Viva Brasília” e nas releituras de “Insensatez”, novamente “Recado” (curiosamente, um hino da bossa na Europa e no Japão, apesar de desconhecido no Brasil), “Prelúdio nº 3” de Villa-Lobos, e o delicioso “Negra sin sandália” (sic), erroneamente identificada como uma canção folclórica, de autor desconhecido, quando é um sambão de Jadir de Castro & Caco Velho chamado “Pourquoi?”, com o sub-título “Essa nega sem sandália”. Klaus, revezando-se nos saxes tenor e soprano, assina todos os temas pertencentes ao LP “Doldinger goes on”, safra 67.

Completando o cardápio, há várias faixas raras originalmente lançadas em compilações ou discos de formações all-stars; caso de “Waltz of the jive cats” com uma big-band batizada Jazz Workshop Orchestra, enriquecida pelas presenças de Donald Byrd, Johnny Griffin, Benny Bailey, Niels Pedersen, Albert Mangelsdorff e Sahib Shihab. Ao lado de George Gruntz (tocando cravo!), opta pelo soprano ao aventurar-se pela “Pavana” de William Byrd e pela “Ciacina” de Pachelbel, retiradas do LP “Jazz goes baroque”. Na condição de convidado do clarinetista Rolf Kuhn, ataca “Midnight session”. Apoiado pelo lendário batera Kenny Clarke, sola fluentemente em “Sweetie’s bounce”, registro até então inédito feito na rádio NDR de Hamburgo. E encara a baladona “Like someone in love” ao vivo no Festival de Jazz de Juan-les-Pins. Com muita competência.

Legendas
“As carreiras de Eugen Cicero e Klaus Doldinger, figuras lendárias do jazz europeus, ganham valiosas retrospectivas”
“Esnobadas pelos puristas, as brilhantes gravações do pianista romeno Eugen Cicero começam a ser redescobertas e reavaliadas”
“Os primeiros discos do saxofonista alemão Klaus Doldinger, compilados em CD-quádruplo, incluem fartas doses de jazz e música brasileira”

1 comment:

Ulysses Dutra said...

Olá Arnaldo!

Grato pela visita e comentário. Não é por ser meu conterrâneo mas Luiz Henrique é um dos meus prediletos também.

O documentário teve a pré-estréia há duas semanas atrás e não sei quando haverá um DVD disponível mas pode deixar que aviso quando souber de algo.

Sei que o filho do Luiz colocou alguns trechos no YouTube.

Um abraço, Ulysses