Monday, September 3, 2007
A aventura cinematográfica de Diane Hubka
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 27 de Agosto de 2007 e publicado originalmente em 3 de Setembro de 2007 no jornal "Tribuna da Imprensa"
A aventura cinematográfica de Diane Hubka
Temas de Jobim, Bonfá, Mancini e Mandel são recriados brilhantemente pela cantora
Arnaldo DeSouteiro
No último dia 16, o clube californiano Jazz Bakery – fundado há onze anos e ainda hoje dirigido pela cantora Ruth Price em Los Angeles, na região conhecida como Culver City, famosa pelos estúdios de cinema – ficou pequeno para a platéia que compareceu à festa de lançamento do CD “Diane Hubka goes to the movies”, editado pelo selo 18th & Vine Records, com distribuição da Allegro. O frisson se justifica. O disco ganhou cotação máxima na bíblia japonesa do jazz Swing Journal (“a maior descoberta desde Roberta Gambarini”), quatro estrelas e meia no All Music Guide e vem tocando bastante nas FMs ainda dedicadas ao jazz, especialmente na Costa Oeste, para onde Diane se mudou em 2004, após duas décadas batalhando em NY. Isto mesmo, duas décadas. Ou seja: Diane está longe de ser uma novata, embora somente agora seu talento esteja sendo descoberto em grande escala.
O projeto deste quarto CD demorou três anos para ser concluído. As gravações começaram em agosto de 2005 em West Hollywood, avançaram pelo ano seguinte e a masterização aconteceu em 2007. Porém, a sensação é de um projeto orgânico, sem discrepâncias internas, sejam estéticas ou de ordem técnica. O renomado historiador Scott Yanow assina o objetivo texto do encarte, sem tirar a surpresa com que o ouvinte é brindado ao degustar o trabalho no CD-player. Ao contrário do que o título pode induzir, nada soa óbvio, e esta é a primeira de muitas proezas alcançadas pela cantora.
Belas releituras
A idéia de tratar, jazzisticamente, canções de trilhas sonoras já rendeu vários projetos; em sua grande maioria, pouco memoráveis. O álbum de Diane é uma louvável exceção, impecável sob todos os aspectos. O canto da blond, sem firulas gratuitas, soa límpido e cativante, em total sintonia com os arranjos criativos e bem arquitetados do pianista Christian Jacob, colaborador de Flora Purim e Tierney Sutton. Ao longo de 60m30s, não há um único minuto pouco inspirado. As surpresas se sucedem a cada faixa, de forma impactante, graças às soluções rítmicas e harmônicas encontradas.
Ninguèm precisa se assustar imaginando performances tresloucadas. Diane felizmente não optou por transfigurar as canções, de submete-las a tratamentos amalucados ou exóticos, a solução mais fácil que muitos (de Cassandra Wilson a Marisa Monte) adotam para dar a falsa impressão de “mudernidade”. Os temas são respeitados em suas essências, com as inovações estéticas criteriosamente aplicadas com extremo cuidado e bom gosto. Claro que o sensacional repertório é um grande trunfo, mas nunca representa a garantia de um grande disco justamente por conta dos riscos da “mudernização” ou, no extremo oposto, excessiva respeitabilidade – algo que, por exemplo, transformou “Talk of the town”, da fantástica Cheryl Bentyne, em um disco enfadonho.
Ainda sobre os arranjos, a grande lição de Christian reside em obter tanto frescor e originalidade usando um formato “convencional” de piano (ele próprio), contrabaixo (Chris Colangelo), bateria (Joe LaBarbera), Larry Koonse (guitarra) e o extraordinário Carl Saunders (trompete & flugelhorn), veterano da banda de Stan Kenton e atual primeiro trompete na orquestra de Bill Holman. Uma postura corajosa nesta época em que até mesmo arranjadores consagrados têm, irresponsavelmente, enveredado por instrumentações pouco ortodoxas, modernosas, visando manter uma pseudo-jovialidade mercantil.
Roteiro impecável
O período coberto pelo repertório vai de 1937 (“All God’s chillun got rhythm”, tema de Bronislaw Kaper cantado por Ivie Anderson na trilha da impagável comédia hípica “Um dia nas corridas”, dos geniais Irmãos Marx!) a 1979 (“Close enough for love”, pungente balada de Johnny Mandel para o score de “Agatha”). No tema de Mandel, com letra arrasadora de Paul Williams (o letrista de “Love dance” que Ivan Lins, mal assessorado, esnobou), Diane desvia do clima baladeiro e embarca em inesperado andamento médio, apenas com acompanhamento de baixo & guitarra, evitando as comparações com Shirley Horn e Tony Bennett. Mesma atitude sabiamente adotada no tema-título de “Wild is the wind” (Dimitri Tiomkin & Ned Washington), valseado de modo altamente elegante.
Outro ponto alto acontece em “Lovers in New York”, tema instrumental de Henry Mancini para “Breakfast at Tiifany’s” – a letra foi feita posteriormente por Jay Livingston & Ray Evans. No flugel, Carl Saunders exibe sua destreza e uma sonoridade aveludada comparável a Art Farmer, construindo brilhante solo em torno de variações sobre “Joy spring”, de Clifford Brown, que ele passa o tempo todo circundando, sem explicitar a citação. Tão chique quanto a leitura de piano & voz para “The bad and the beautiful” (David “Laura” Raksin & Dory Previn).
Em “I’m Old Fashioned” (Jerome Kern & Johnny Mercer), charmosamente bossanoveada, Hubka consegue a melhor gravação desde a de Paul Desmond em 1975, no álbum “Pure Desmond”, com Koonse fazendo seu solo no violão. Diane teve ainda a excelente idéia de escolher duas pérolas semi-esquecidas: as canções-título de “You only live twice” (John Barry & Leslie Bricusse), do filme de James Bond de 1967, “Só se vive duas vezes”, e “The long goodbye” (John Williams & Johnny Mercer), na qual outra vez Saunders rouba a cena – sem trocadilho – no flugelhorn.
Hubka parte para um improviso em sinuoso scat, seguido por solos ebulientes de Koonse e Saunders, na crepitante recriação de “He’s a tramp” (Sonny Burke & Peggy Lee, safra 1955) em ritmo de samba puxado por Joe LaBarbera, um dos meus bateristas prediletos. Acompanho a carreira de Joe desde a associação com Chuck Mangione, e tive o prazer de assistir suas performances com Bill Evans (nos últimos concertos do pianista no Brasil em 1979) e posteriormente Tony Bennett, inclusive quando supervisionei e apresentei um especial de TV filmado para a Rede Manchete em 1985 no Teatro do Hotel Nacional. Sem dúvida, pela soma de tantas qualidades, é o batera que todo cantor deveria pedir a Deus.
Tela brasileira
Há duas músicas de autores brasileiros. A primeira é de Tom Jobim, originalmente gravada como “Children games” na trilha de Tom Jobim para “The Adventurers” (1970), e depois rebatizada “Double rainbow” quando Gene Lees adicionou letra em inglês para ser cantada por Miucha no LP “The best of two worlds”, de Stan Getz & João Gilberto, em 1975. No Brasil, ficou conhecida como “Chovendo na roseira”, após a gravação no célebre “Elis & Tom”. O arranjo de Jacob usa “All blues”, de Miles Davis, como linha de baixo, obtendo multívolo efeito.
“Sempre quis gravar esta música, e fiquei surpresa quando descobri que pertencia a uma trilha sonora”, comenta Diane. “Pena que, na minha opinião, o filme é muito ruim, embora tivesse tudo para ser bom, com aquele grande elenco. Mas irei seguir sua sugestão de ouvir as outras músicas da trilha. Certamente Jobim é um dos meus heróis e tive a felicidade de assisti-lo uma vez no Carnegie Hall, poucos anos antes de sua morte”.
Bonfá está representado por sua obra mais conhecida, “Manhã de carnaval”, da trilha de “Black Orpheus” (1959), cantada com a letra original de Antonio Maria. Único momento em que Diane adota o esquema voz & violão, no caso um 7 cordas tocado pela própria cantora e confeccionado sob medida para ela pelo luthier Greg Brandt. “Meu professor, Bill Bittner, tocava uma Gibson L-7 e aquilo me marcou”, revela a cantora, que também estudou com o guitarrista Howard Alden.
Talvez não por acaso, o disco que começou com Bronislaw Kaper, um dos ídolos de João Donato, termina com outra jóia do mesmo autor – e logo a preferida de Donato: “Invitation”, do filme homônimo de 1952, em deliciosa pulsação de samba-jazz. Que gravação! A introdução de piano dá uma pista falsa do clima. Na entrada de Diane, em mais uma aula de fraseado e expressividade, para não falar da perfeita dicção, a banda dispara num samba em andamento rápido, com LaBarbera primeiro nas vassouras (ao melhor estilo de João Palma) e depois nas baquetas, usadas para estimular o solo de Saunders em vôos rasantes no trompete com surdina. Desfecho perfeito para um dos melhores discos de 2007.
Legendas:
O jazz vai ao cinema
“O novo disco da cantora Diane Hubka, dedicado a recriações jazzísticas de temas de filmes, é analisado por Arnaldo DeSouteiro, que desde já o coloca como um dos melhores lançamentos deste ano”
“Charme, ousadia e criatividade são características marcantes do CD que será um divisor de águas na carreira da cantora”
“Apoiada por grandes músicos e excelentes arranjos, Diane Hubka redescobre jóias pouco regravadas”
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