Monday, November 24, 2008

"Verve Originals," part two

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro para o jornal "Tribuna da Imprensa" e publicado em 24 de Novembro de 2008

Fusões e confusões na “Verve Originals”
Coleção traz CDs de Benson, Crusaders e Stanley Clarke
Arnaldo DeSouteiro


Como prometido, comentamos hoje a segunda fornada da série de maior êxito no mercado jazzístico em 2008. Vale frisar que, apesar de todos os CDs da “Originals” trazerem a logomarca Verve na contracapa e no rótulo, os títulos escolhidos são pescados também de vários outros selos como Polydor, A&M, Chisa, Motown, Horizon, MGM, Argo, Cadet e Blue Thumb – todos eles hoje pertencentes ao imenso acervo do conglomerado Universal Music Group. Os produtores Harry Weinger, Andy McKaie e Bill Levenson supervisionam a maioria dos relançamentos, enquanto os engenheiros Kevin Reeves, Erick Labson e Ellen Fitton cuidam das remasterizações. As capas, em formato digipack, reproduzem as artes gráficas originais, mantendo os textos e as fotos utilizadas nas prensagens anteriores em vinil. Infelizmente não há bonus-tracks.
Baixo em alta

Stanley Clarke era um garotão de 21 anos, considerado o maior fenômeno em matéria de baixo no início da cena fusion, quando gravou, em apenas dois dias – 26 e 27 de dezembro de 1972 – seu disco de estréia como líder, “Children of forever” (47m59s). Produzido por Chick Corea em NY, saiu pelo selo Polydor, cujo cast também incluía o Return to Forever, liderado por Corea e no qual Clarke despontara na formação original do grupo, ao lado de Airto, Flora Purim e Joe Farrell. Procurando evitar que a sonoridade de “Children” ficasse muito parecida com a do RTF, Chick convocou outra turma: Pat Martino (guitarra e violão de 12 cordas), Art Webb (flauta), Lenny White (baterista que, pouco depois, viria a ingressar no RTF) e os cantores Andy Bey e Dee Dee Bridgewater. Mas a estética permaneceu similar, até porque o tecladista tocou em todas as faixas, fez os arranjos para quatro delas e ainda assinou a autoria da épica “Sea journey”, viajante longo tema de encerramento, com dezesseis minutos.

As outras faixas foram compostas por Clarke, apenas uma sendo instrumental: “Bass folk song”, que ele havia gravado um mês antes para o LP “Moon germs” (CTI) de Joe Farrell, com Herbie Hancock e Jack DeJohnette. As demais traziam letras de Neville Potter (parceiro de Chick na cientologia e nos primeiros hinos da fusion, como “500 miles high” e “Sometime ago”), exceto a faixa-título, “Children of forever”, meloso tema meio infantilizado letrado pelo próprio Clarke, cujo nome apareceu grafado como “Stan Clarke” na capa – o disco seguinte, feito para o selo Nemperor, chamou-se “Stanley Clarke”. A instigante balada “Butterfly dreams” seria regravada um ano depois como faixa-título do primeiro álbum de Flora Purim. Mas aqui foi interpretada pelo excelente Andy Bey, que até hoje não obteve o merecido sucesso, permanecendo um cult-singer.

Não menos notável, a cantora Dee Dee Bridgewater – então com 22 anos, casada com o trompetista Cecil Bridgewater e atuando na Thad Jones/Mel Lewis Orchestra – divide os vocais com Bey em várias faixas, brilhando especialmente em “Unexpected days”. Chick estampa sua marca incomparável em matéria de piano elétrico Fender Rhodes, às vezes adicionando um Hohner clavinet, e optando pelo piano acústico somente para realçar o lirismo de “Butterfly dreams”. Curiosamente, entretanto, Clarke toca contrabaixo em todas as faixas (mostrando que já era um incontestável virtuose, inclusive no bárbaro solo com arco na espanholada “Sea journey”), somando baixo elétrico somente em “Bass folk song”, enquanto Lenny White adiciona pandeirola para reforçar o tempero rítmico.

Dose tripla

George Benson tem três discos relançados na série. Todos produzidos por Creed Taylor, no estúdio de Rudy Van Gelder em New Jersey, na época em que o selo CTI funcionava como a divisão jazzística da A&M. “Shape of things to come” (33m24s), gravado entre agosto e outubro de 1968, primeiro fruto da associação Benson-Taylor e também com o maestro Don Sebesky (colaboração que atingiria o ápice no “White rabbit” de 71), é um trabalho de transição na carreira do guitarrista – ainda mantendo a base r&b movida a órgão Hammond, nas mãos de Charles Covington, mas incorporando as classudas orquestrações de Sebesky. Aliás, na parte interna da capa desta nova reedição em CD, há vários erros nos créditos, inclusive com os flautistas/saxofonistas George Marge, Romeo Penque e Stan Webb citados como violoncelistas!

O timaço inclui também Herbie Hancock, Hank Jones, Ron Carter, Richard Davis e o superbatera Leo Morris (Idris Muhammad antes da conversão ao Islamismo) soltando a franga em apetitosas versões de “Footin’ it” (parceria de Benson & Sebesky), “Face it boy, it’s over” (hit de Nancy Wilson), “Don’t let me lose this dream” (Sebesky coloca os metais em brasa no delicioso groove de Aretha Franklin), “Chattanooga choo choo” (com a gaita de Buddy Lucas dando novo sabor ao sucesso de Glenn Miller, e Benson citando “Tonk”, de Ray Bryant), o tema straight-ahead “Shape of things that are and were” (um tributo a Charlie Christian & Wes Montgomery) e a faixa-título, da trilha do filme “Wild in the streets”, com a guitarra envenenada pelo Varitone, gerando peculiar sonoridade. Tudo isso embalado pela arte de Pete Turner e analisado pelo texto de Ira Gitler.

“Tell it like it is” (33m03s) nasceu em abril & maio de 1969, mais pop e latinizado através dos arranjos de Marty Sheller, famoso pela longa associação com Mongo Santamaria. A banda conta com Rodgers Grant, Richard Tee, Bob Bushnell, Jerry Jemmott (grafado Gerry), Leo Morris, Angel Allende, Johnny Pacheco, Joe Farrell, Sonny Fortune, Bob Porcelli (solo de sax-alto na faixa de abertura, “Soul limbo”), Hubert Laws, Lew Soloff, Jerry Dodgion e Jerome Richradson. O repertório vai de Fats Domino (“Land of 1000 dances”) a Eumir Deodato (“Jackie, All”, dedicada à cantora Jackie Cain), passando por Stevie Wonder (“My cherie amour”). Em “My woman’s good to me”, “Out in the cold again” e na faixa-título, sucesso “soul” de Aaron Neville, Benson solta a voz que alguns anos depois lhe traria milhões de dólares via “This masquerade”.

“I got a woman and some blues” (30m03s) é um disco de “out-takes”. Em bom português: um disco de sobras, uma colcha de retalhos. Faixas registradas entre abril & setembro de 1969, algumas delas cogitadas para “Tell it like it is” mas que acabaram não aproveitadas em projeto algum. Permaneceram inéditas até 1984, quando a A&M decidiu faturar uma grana extra, capitalizando o crescimento da popularidade de Benson, e lançou o LP. Não se deram ao trabalho de pesquisar os nomes dos músicos (telefonemas para George e Creed Taylor seriam suficientes para permitir uma detalhada ficha técnica), que continuam omitidos neste relançamento em CD. O único citado é Luiz Bonfá, ídolo de Benson, que aplica os bordados de seu violão ao duo com o grande amigo em “Out of the blue”. Em “I got a woman”, de Ray Charles, parece ter sido usada uma mixagem provisória, tal a deficiência da qualidade de som, contrastando com o ótimo resultado de “Durham’s turn”. E em “Without her”, de Harry Nilsson, Benson nunca chegou a gravar o vocal definitivo; problema algum para a A&M, que na cara dura usou a voz-guia. Indicado apenas para os mais fissurados colecionadores de GB.

Bluesy & funky

Generosas doses de blues, funk, rhythm & blues, pop e soul-music fundem-se a elementos jazzísticos também em “Pass the plate” (42m18s), álbum conceitual do Crusaders. O grupo, originário do Texas, e que havia começado como The Night Hawks, comemorava dez anos de carreira em Los Angeles rebatizado The Jazz Crusaders e aproveitava para limar a palavra jazz do nome, passando a chamar-se somente The Crusaders. Produzido por Stewart Levine para o selo Chisa (fundado por Hugh Masekela e distribuído pela Motown), traz o trombonista Wayne Henderson, o saxofonista/baixista Wilton Felder, o pianista Joe Sample e o batera Stix Hooper recebendo a ajuda do guitarrista Arthur Adams. A faixa-título é na verdade uma suíte meio confusa, em cinco partes, totalizando 15 minutos e terminando em fade-out, sucedida pelo hard-bop “Young rabbits 71-72”, que depois se transforma em r&b após pirotécnico solo de Hooper.

Os melhores momentos ficam por conta das composições de Sample, especialmente “Goin’ down south”, o gospel-filosófico “Love can’t grow where the rain won’t fall” e a buliçosa “Listen and you’ll see”, marcada pelo saltitante toque no piano elétrico Wurlitzer. Dezessete anos depois, Sample embarcou em outro projeto mal alinhavado: “Swing Street Café” (35m22s), tocando apenas piano acústico e dividindo a liderança com o guitarrista David T. Walker. Captado em 29 & 30 de novembro de 1978, ficou na gaveta até ser lançado pela MCA em 1981, contando com a co-produção de Hooper e Felder, que não participaram como músicos. James Jamerson Sr. assumiu o baixo elétrico. Earl C. Palmer, a bateria. Nada de percussão, Rhodes nem sintetizadores. Somente um naipe de quatro sopros como complemento. No repertório, clássicos do blues e do r&b tipo “Hallelujah, I love her so”, “C.C. Rider”, “Honest I do” e “Honky tonk”, em arranjos desinteressantes e previsíveis. Diet grooves.

Fusão original

Em compensação, o sul-africano Hugh Masekela, que foi casado com Miriam Makeba, quebra tudo em “Home is where the music is” (76m39s), originalmente lançado em 1972 como álbum-duplo pelo selo Blue Thumb. Dez longas e instigantes faixas que fogem de qualquer padronagem fusion pré-estabelecida, com o uso de eletrônica limitando-se ao Rhodes empregado por Larry Willis em algumas faixas, embora o pianista atinge seu ponto máximo de expressividade em números acústicos como a balada “Minawa”, na qual o batera Makhaya Ntshoko emprega baquetas de feltro. Co-produzido por Stewart Levine e pelo compositor Caiphus Semenya, autor de cinco ótimos temas, conta ainda com irretocáveis desempenhos de Eddie Gomez (contrabaixo) e Dudu Phukwana (sax alto). Sem falar de Masekela, infalível no uso exclusivo do flugelhorn. Vale destacar também a vibrante “Maseru”, do próprio Hugh, e a pungente “Uhomé”, da recém-falecida Makeba. Caso raro de fusão livre de clichês. O jazz, às vezes, consegue ser original.

Legendas:
Capa do BIS – capa do CD de Stanley Clarke
“Children of forever”, disco de estréia-solo do virtuose Stanley Clarke aos 21 anos, reaparece em CD
Página interna – capa do CD de George Benson
“Álbum que, há 40 anos, marcou o início da associação de George Benson com Creed Taylor e Don Sebesky, reune um time de all-stars”

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