O fruto proibido de Bill Evans & Claus Ogerman
“Mais raro disco do pianista é relançado pela primeira vez em CD”
Arnaldo DeSouteiro
Um dos discos mais controvertidos e mais procurados na história da música – por nunca ter sido previamente reeditado em CD e nem mesmo em LP desde o lançamento original em 1963 – finalmente aparece em CD. Com edição quase simultânea no Japão (em “miniature LP sleeve”), na Europa e nos Estados Unidos, desponta como principal atração da série “Originals”, supervisionada pelo produtor Harry Weinger para o selo Verve. A capa, em formato digipack nas edições americana e européia, reproduz a arte gráfica original, mantendo o texto utilizado na contracapa da prensagem em vinil.
É também um disco de título muito extenso, impresso apenas na contracapa: “Bill Evans his piano and orchestra play theme from The V.I.P.s and other great songs”. Tornou-se o ítem mais raro na discografia de Evans, simplesmente porque o artista jamais autorizou sua reedição enquanto vivia. E mesmo após sua morte, a Universal respeitou a vontade do pianista e de seu colaborador Claus Ogerman, responsável pelos arranjos e regências. “É uma obra menor no legado de Evans, e eu também não acho que as orquestrações estejam dentro do meu padrão de qualidade”, comenta, sem meias palavras, o genial Claus.
Na verdade, Ogerman foi quem permaneceu intercedendo para que o LP nunca fosse relançado. Vetou a inclusão de qualquer das faixas em sua própria coleção retrospectiva de 2002, “The man behind the music” (59 faixas em 4 CDs), assim como na supercaixa “The complete Bill Evans on Verve” (269 faixas reunidas em 18 CDs), lançada em 1997 incluindo até mesmo várias gravações inéditas, para os selos Verve e MGM, mas nem uma música sequer do tal “maldito” álbum de 1963. Logo virou “collector’s item”, disputado a peso de ouro nos melhores sebos do mundo.
Resultado controverso
“Quando eu tocava no João Sebastião Bar, em São Paulo, em meados dos anos 60, tudo quanto era pianista vivia catando este disco”, relembra José Roberto Bertrami, líder do grupo Azymuth. “Um dia o Zé Bicão, lendário baixista e pianista, conseguiu ouvir o disco na casa de um colecionador. Sumiu três dias e reapareceu com uma cara tristíssima, deprimido, dizendo que tinha ficado decepcionado. Aí é que a turma ficou ainda mais grilada porque, pra gente, era impossível o Bill Evans fazer um disco ruim. Como não tinha fita cassete naquela época, não rolava cópia e a curiosidade aumentou ainda mais. Até hoje eu ainda não ouvi este disco!”, diverte-se.
Eu mesmo somente consegui o álbum por 300 dólares na Rose’s Second Hand, em Manhattan, em 1987, e depois não resisti a pagar 50 mil ienes por um segundo exemplar na Disk Union de Tokyo, em 1996. Apesar de agora contar com o CD na minha coleção, preservo os dois vinis como tesouros. Mais importante do que discutir a qualidade artística do trabalho é esclarecer sua condição como um disco ímpar na carreira de Bill, sua única incursão na área easy-listening, levando-o a disputar espaço no terreno por onde trafegavam pianistas “pop” como Peter Nero e o duo Ferrante & Teicher. A idéia veio do produtor Creed Taylor, que volta e meia usava, nos anos 60, o selo MGM para lançar trabalhos distantes da estética essencialmente jazzística do selo Verve.
Aventura bizarra
Ninguém pense, porém, que Evans ou Ogerman foram “obrigados” a gravar o álbum. “Ambos se empenharam muito, e Evans parecia estar se divertindo bastante no estúdio”, garante Taylor, empregando a palavra “aventura” – também
usada no texto original de contracapa, reproduzido no CD – para definir a empreitada. O alemão Claus, radicado em New York desde 1959, ainda não havia se consagrado no mundo do jazz, mas já possuía larga experiência na área pop. “Ele tinha trabalhado com o grupo The Drifters e com as cantoras Connie Francis e Lesley Gore, inclusive no primeiro sucesso da carreira de Lesley, “It’s my party”, que chegou ao primeiro lugar no hit-parade”, lembra Taylor.
Tampouco o disco resultou em retumbante fracasso comercial, ao contrário do apregoado pelos puristas, embora tenha ficado longe de alcançar o sucesso pretendido. Segundo o produtor, confirmando a informação do texto de apresentação da época, a bisonha faixa “Sweet September”, de Bill McGuffie, foi concebida para ser originalmente lançada apenas como um compacto, “mas vendeu tão bem que decidimos incorpora-la ao LP”. Na verdade, “Sweet September” tocou mais nas rádios do que o lado A do single, o igualmente kitsch “Theme from the V.I.P.s” (número de catálogo VS 514), mas Creed nem se lembrava. No rótulo do compacto, lançado, pelo selo Verve, três meses antes do LP, o nome do arranjador ainda aparecia grafado como Klaus Ogerman, sendo depois “americanizado” para Claus na contracapa do álbum editado com a grife MGM.
Pouco antes, mais precisamente em maio de 1963, um outro compacto (também de 45 rotações, nº de catálogo VS 511) chegou às lojas, trazendo “55 days at Peking” no lado A e “On Broadway” no lado B. Ninguém, nem mesmo Creed Taylor ou Claus Ogerman, sabe explicar o motivo da faixa “55 days” – tema de Dimitri Tiomkin para o filme de Nicholas Ray estrelado em 1963 por Charlton Heston, Ava Gardner e David Niven – não ter entrado no LP nem ter sido adicionada agora ao CD, para que pudéssemos ter, finalmente, aquelas sessões em versão integral. Entretanto, “55 days” chegou a ser incluída em um confuso LP-compilação batizado “Twilight of honor”, também lançado pela MGM, misturando temas de John Green para o filme homônimo com músicas das trilhas de “Murder at the gallop”, “The haunting”, “Ride the high country”, “Hud” e até mesmo “Black Orpheus”.
Piano de elevador
Bill & Claus criaram juntos “Hollywood”, sinuosa faixa de abertura do lado B, na qual Bill se permite alçar vôo, dando rasantes jazzísticos sobre a levada 4/4 de Grady Tate nas vassourinhas. Não por acaso, o tema de Lyn Murray para “Mr. Novak” acabou escolhido para faixa de abertura porque o seriado, estrelado por James Franciscus, era produzido pela MGM para a rede NBC. Por sua vez, a faixa de encerramento, “On Broadway”, escrita a oito mãos por Jerry Leiber, Mike Stoller, Barry Mann & Cynthia Weil, havia acabado de chegar ao nono lugar na parada pop da Billboard naquele ano de 1963, via The Drifters, e voltaria a estourar na voz de George Benson em 1977, alcançando um sucesso ainda maior ao chegar ao sétimo lugar na Billboard, como carro-chefe do álbum-duplo “Weekend in LA”.
No recheio, belas composições em clima de “muzak” ou, como diziam antigamente lá no Brasil, “música de elevador”. Em sua maioria, temas extraídos de trilhas sonoras para cinema. A faixa inspiradora do título do disco, composta por Miklos Rozsa, veio do filme “The V.I.P.s”, estrelado por Elizabeth Taylor. “Laura”, de David Raksin, dispensa apresentações. Foi gravada por vários jazzmen, inclusive Dexter Gordon (no suntuoso “Sophisticated giant”) e, segundo o saudoso Maestro Gaya, influenciou tremendamente a geração da bossa nova. “More” (de Riz Ortolani), popularizada pelo filme “Mondo cane”, seria depois sugerida por Creed para o repertório de Stanley Turrentine em “The sugar man”.
Também partiu de Creed a idéia da regravação de “Walk on the wild side” (Elmer Bernstein), transformada em jazz hit pelo produtor através do arranjo de Oliver Nelson para Jimmy Smith, em 1962, no disco “Bashin’”, que chegou ao Top 10 da parada pop da Billboard. Evans pega bem mais leve do que Smith, mas não resiste a algumas salutares entortadas jazzísticas, assim como em “The man with the golden arm”, outro vigoroso tema de Elmer, autor também de “The caretakers”, estrelado por Joan Crawford & Robert Stack.
Mais conhecida, a canção principal de “The days of wine and roses” (“Vício maldito”), pela qual Henry Mancini faturou o Oscar em 1962 embalando o drama vivido pelos personagens de Jack Lemmon & Lee Remick, tem sua sofisticada atmosfera melódico-harmônica preservada. Bill também mostra-se respeitoso na abordagem de “On Green Dolphin Street”. Caso raro de canção (criada por Bronislaw Kaper, ídolo-mor de João Donato) que ganhou vida própria enquanto o filme caiu no esquecimento, assim como aconteceu com “The Gentle Rain”, de Luiz Bonfá.
Mistério e curiosidade
Os nomes dos músicos não constavam do LP e não constam do CD. Mas o fantástico website com a mais completa discografia de Claus Ogerman, organizado pela pesquisadora Barbara “B.J.” Major, credita o fabuloso violinista Harry Lookofsky como spalla da seção de cordas, Carl Lynch como guitarrista e Milt Hinton e Whitey Mitchell como contrabaixistas. Por outras fontes, consegui identificar James Buffington & Ray Alonge nas trompas, Grady Tate na bateria (mandando ver na pulsação de jazz-waltz em 6/8 de “The Caretakers”) e Phil Kraus ataca na percussão (castanholas em “Mr. Novak”, guizos em “Caretakers”, vibrafone em “Hollywood”), revezando com George Devens (triângulo em “More” e “Days of wine and roses”, bongôs em “On Green Dolphin Street”).
Um insosso coro feminino reforça o clima épico-cafona de “Theme from the V.I.P.s” e soma-se aos violinos e trompetes dominantes em “On Broadway”, onde Ogerman ensaia um groovyzinho negróide. Por fim, vale dizer que, ao perder a chance de colocar “55 days at Peking” como bonus-track nesta reedição, a Verve transformou aqueles 2 minutos e 36 segundos nos mais cobiçados pelos colecionadores que sonham em ver a obra de Bill Evans, o mais influente pianista da história do jazz, inteiramente disponível em CD.
Na engenharia de som, dois craques: Bob Simpson e o hoje consagrado produtor Phil Ramone, também convocado por Creed Taylor para gravar “Getz/Gilberto” (quando Phil ganhou seu primeiro Grammy) e “Jazz Samba Encore!” de Stan Getz & Luiz Bonfá. Aqui, a dupla captou o pianinho suave de Bill e os arranjos bem comportados, nada ousados, de Claus. Exatamente o oposto do que viria a ocorrer nos dois extraordinários álbuns gravados posteriormente pelos dois mestres: “Bill Evans trio with symphony orchestra” (produzido por Creed Taylor para a Verve em 1965) e “Symbiosis” (lançado pela MPS em 1974), obras-primas indispensáveis em uma discoteca básica de jazz. “The V.I.P.s” merece ser ouvido apenas como curiosidade. Nem que seja levando a sério somente “Hollywood”, a introdução de “Laura” e os três temas de Elmer Bernstein. Sem preconceito.
Legendas – capa do BIS: Capa do CD
“Depois de 45 anos de espera, os fãs de Bill Evans ganham a primeira edição em CD de um disco renegado pelo pianista”
Página interna – foto
“Bill Evans, o produtor Creed Taylor e o maestro Claus Ogerman no estúdio”
Monday, November 3, 2008
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