Sons de Montreux em DVD
Shows antológicos de Quincy Jones, Weather Report e John McLaughlin
Arnaldo DeSouteiro
Há algumas semanas, na quadragésima-segunda edição do Montreux Jazz Festival, Quincy Jones foi a grande atração do evento. Rodeado de amigos, celebrou seus 75 anos com um mega-espetáculo que certamente será lançado em breve em DVD. Por agora, através da Eagle Vision, com distribuição da ST2, todos podem contemplar outra festança, ocorrida em 1996, quando Tio Quincy comemorava cinqüenta anos de carreira. Como sempre, com uma penca de convidados especiais como Phil Collins, Chaka Khan, David Sanborn e Toots Thielemans. Voltando mais na máquina do tempo, são recuperados também os antológicos shows de dois grupos emblemáticos do jazz-fusion: Weather Report (safra 1976) e Mahavishnu Orchestra, em DVD-duplo com as apresentações de 1974 e 1984.
Trajetória de sucesso
“50 Years in music – Quincy Jones & friends”, com duração total de 130 minutos, registra uma das mais emocionantes noites do Festival de Montreux em toda a sua existência. A princípio, parecia impossível concretizar a idéia, de Claude Nobs, de passar em revista a trajetória de Quincy desde o iníciozinho de carreira. A começar pela resistência do maestro/produtor, usando um argumento bem forte: vários de seus principais “colaboradores” – de Count Basie a Bobby Scott, passando por Sarah Vaughan – já estavam mortos. Muitos outros (Frank Sinatra, Michael Jackson, George Benson, Ella Fitzgerald, Clark Terry, Ray Charles, Lionel Hampton) não poderiam participar, por problemas de agenda ou saúde ou cachê. Ella, inclusive, viria a falecer um mês antes do show.
Mas a persuação de Nobs funcionou, Quincy foi aceitando a idéia e, quando percebeu, já estava trabalhando na recuperação de alguns de seus primeiros arranjos. E o concerto na noite de 19 de julho de 1996 entrou para a história, com Quincy regendo a Norhern Illinois University Jazz Band, somada à um grupo de base formado por Greg Phillinganes (teclados), Nathan East (baixo), Steve Ferrone (bateria), Luis Conte (percussão) e Ray Fuller (guitarra). Além, claro, dos convidados super-especiais. No encarte de 24 páginas que acompanha o DVD, de detalhada ficha técnica, há comovidos depoimentos de vários deles e muitas fotos.
Dos primórdios da carreira de “Q” foram pinçadas duas de suas primeiras composições: “Kingfish” e “Stocholm sweetnin’”. Depois, os arranjos para “Perdido” e “Shiny stockings” (ambos com Patti Austin em grande forma e imenso “formato”); “Tickle toe” e “Moanin’” (solos do virtuoso trombonista/trompetista australiano James Morrison, que eu vi tocar ao vivo pela primeira vez lá mesmo em Montreux, em 1989, com Dizzy Gillespie); e um incendiário score para “Air mail special”, com faiscante troca de figurinhas entre Morrison, Gerald Albright e David Sanborn. Antes de cada tema, uma explicação de Quincy, visivelmente emocionado, principalmente ao agradecer a presença de Eddie Barclay na primeira fila, quando fala da importância dos verdadeiros amigos.
Performances impactantes
As atuações de Albright e Sanborn merecem, aliás, um comentário importante. Albright, que nunca me fez a cabeça por lançar discos insossos na padronagem smooth-jazz, exibe uma técnica fantástica e apronta solos bastante criativos, sempre em alto pique. Sanborn começa cauteloso, pisando em ovos na baladaça “The midnight sun will never set”. Talvez por saber que a inevitável (ainda que injusta) comparação com Phil Woods, solista na gravação original, devia estar rolando na cabeça de muita gente na platéia. Mas vai ganhando confiança e logo fica em ponto de bala em “Air mail special”, chegando ao auge da expressividade emocional no solo em “Walking in space”, faixa-título do primeiro LP de Quincy para a A&M/CTI (sim, antes de virar produtor, Q era produzido por Creed Taylor desde os tempos de “This is how I feel about jazz”, em 1956, para a ABC-Paramount).
Do início dos anos 70 temos duas pungentes baladas, ambas incluídas também na compilação “Summer in the city: the soul jazz grooves of Quincy Jones”, que produzi para a Verve em 2007. Toots Thielemans soa arrebatador em “Brown ballad” (71), de Ray Brown. Mick Hucknall & Chaka Khan (soberba!) substituem Bernard Ighner em “Everything must change”, com James Morrison ocupando o lugar que era de Frank Rosolino no registro original. Chaka segue arrepiando ao dividir a linha de frente com Patti Austin em “Dirty dozens” e com o jovem gaitista (então com 12 anos) Brody Buster em “Miss Celie’s blues”, da trilha de “The color purple”.
Para quem ouviu (no LP “LA is my lady”) e viu (no laser-disc “Portrait of an album”) a interpretação de Sinatra para “After you’ve gone” em arranjo de Frank Foster (aqui creditado a Quincy) em andamento velocíssimo, não dá para engolir o esforço de Phil Collins. E o guitarrista Ray Fuller se atrapalha mais do que Benson. Collins, porém, se redime na deliciosa levada de “Do nothin’ till you hear from me”, por ele gravada no CD “Q’s jook joint” em 1995. Vale ainda destacar a presença dos cubanos do grupo Vocal Sampling que se unem a um afiadíssimo coro (do qual fazem parte Jolie Jones, uma faz filhas de Quincy, e a tecladista Patrice Rushen) em músicas como a comovente canção nupcial “Setembro”, de Ivan Lins & Gilson Peranzzetta, originalmente vocalizada pelo Take 6 no CD “Back on the block”.
Ainda haveria muita coisa para comentar, mas tiraria a graça. E o prezado leitor não pode deixar de conferir este DVD. Na parte de “extras”, trechos de um workshop ministrado por Q no Festival, onde ele filosofa sobre questões musicais, descasca a desinformação cultural de alguns rappers, e ainda faz uma revelação bombástica: o arranjo da faixa “Hummin’” (tema de Nat Adderley incluído no disco “Gula Matari”) tinha sido feito sob medida para Jimi Hendrix, que iria gravar o solo de guitarra. Mas Jimi amarelou e não apareceu no estúdio. Seis meses depois ele morreria de overdose. “Hendrix era um músico de jazz frustrado”, fulmina Quincy.
Fusão revolucionária
Criatividade, energia e beleza também existem de sobra no DVD “Weather Report live at Montreux 1976”, quando o conjunto pisou no evento pela primeira e única vez. Jaco Pastorius estava excursionando com o grupo há apenas dois meses, badalando o LP “Black market”, no qual fizera seu début com o WR tocando em duas faixas: seu próprio tema “Barbary coast” e “Cannon ball”, tributo do austríaco Joe Zawinul ao ex-chefe Adderley. (Alphonso Johnson, que estava deixando o grupo, gravou nas demais). Ambas estão no DVD, junto com a faixa-título “Black market” (outra de Zawinul) e “Elegant people”, de Wayne Shorter.
A formação que vemos neste concerto, de 8 de julho de 1976, se completava com o baterista peruano Alejandro “Alex” Acuña e o percussionista porto-riquenho Manolo Badrena, e chegaria ao auge no disco seguinte, “Heavy weather”, um divisor de águas na carreira do WR, inclusive por conta do hit “Birdland”. Naquela noite em Montreux, a parceria selvática de Acunã & Badrena em “Rumba mamá” era identificada somente como “Drum and percussion duet”, assim constando da ficha do DVD. Manolo começa nos efeitos vocais a la Airto, passa para os timbales (encosta o queixo em um dos tambores) e tira som até das barras de ferro da base de sustentação do instrumento. Alex faz um solo espetacular de bateria, engata um duo vocal com Manolo, passa para as congas e aí os dois disparam num groove frenético.
Os cãmeras não sacaram a genialidade de Pastorius, pouco focalizado, exceto no solo de “Portrait of Tracy”. Alex usa baquetas de feltro para dar efeito de tímpanos em “Scarlet woman”. Wayne ajuda no teclado em “Cannon ball”, atua no tenor em “Barbary coast”, e brilha no soprano no duo improvisado com Zawinul, que provoca inevitáveis gritos de “bravo”! Joe, pilotando Rhodes, Moog, Oberheim e Arp 2600, além de piano acústico, cita um trechinho da ainda inédita “Birdland” na introdução de “Dr. Honoris causa”, da fase Cannonball, emendada com “Directions”, gravada por Miles. O groove hipnótico, em clima egípcio, de “Badia” (com Badrena nos bongôs) conduz ao clímax em “Gibraltar”.
Êxtase sonoro
Similar arrebatamento tomou conta da platéia presente ao concerto da Mahavishnu Orchestra dois anos antes, em 1974. E, depois, em 1984. As duas performances estão reunidas no DVD-duplo agora lançado, mas a mais antiga permanece sendo a mais fascinante. Devido a problemas nas fitas, temos as imagens somente de duas longas obras executadas em 74: “Wings of karma” e “Hymn to Him”. John McLaughlin estava no auge do auge, e a Mahavishnu entrava em sua segunda formação, com Gayle Moran (hoje a Sra. Chick Corea) tocando Rhodes, Hammond e sintetizadores no lugar de Jan Hammer, Narada Michael Walden (com sua bateria branca de bumbo-duplo) substituindo Billy Cobham, e Jean-Luc Ponty despontando como novo astro do violino, depois da saída de Jerry Goodman.
No baixo, Ralph Armstrong colocou um leve molho funky diferente da pulsação de seu antecessor Rick Laird. Mas a atmosfera ainda permanecia a essência do jazz-rock. Traços de psicodelismo somados a influência de música clássica e rock progressivo. Coltrane e Hendrix. Os dedos de McLaughlin voando pela sua guitarra de braço-duplo. Ponty, aplicando um pedal de wah-wah, barbarizava no violino eletrificado, capaz de criar riffs e grooves tal qual uma guitarra de base. Além de solos monumentais, claro. Havia ainda um quarteto de cordas, executando, com imenso swing e completa alegria estampada no rosto, passagens ultra-intrincadas. No outro lado do palco, dois multi-instrumentistas de sopro hoje esquecidos: Steve Frankovitch e Bob Knapp, também percussionista e cantor, que já havia excursionado pela Europa com a primeira formação do Return to Forever, como eventual substituto de Flora Purim.
Outras quatro faixas de 1974 constam do DVD apenas como arquivo de áudio: “Power of love”, “Smile of the beyond”, “Vision is a naked sword” e “Sanctuary”. Apague a luz, aproveite para meditar e depois encare a pancadaria (no melhor sentido) do show de 1984, fruto de uma tentativa (comercialmente mal-sucedida) de reativar a Mahavishnu. Um único LP foi gravado para a Warner e o inglês McLaughlin – pilotando uma guitarra Synclavier II – caiu na estrada com Bill Evans (saxofones), Mitch Forman (teclados), Jonas Hellborg (baixo) e Danny Gottlieb (bateria, mixada com excesso de compressão). Entre os melhores momentos estão “Radio-activity”, “Clarendon hills” e “East side, west side”, na qual, depois de citar duas vezes “Isn’t she lovely” durante seu solo, John escancara a paixão pelo tema de Stevie Wonder e toca a canção na íntegra. Alguém duvida que o público foi ao delírio?
Legendas:
Capa do BIS – capa do DVD de Quincy Jones
“A festa dos 50 anos de carreira de Quincy Jones em Montreux”
Pàgina interna – capa do DVD do Weather Report
“Weather Report: usina sonora que revolucionou o jazz”
Monday, August 11, 2008
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