Monday, September 17, 2007

Brecker, o mestre. Zawinul, o gênio

“Joe Zawinul, o tecladista mais criativo na história do jazz”

“Michael Brecker, o mais importante e influente tenorista do jazz pós-Coltrane”


Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 12 de Setembro de 2007 e publicado no jornal "Tribuna da Imprensa" em 17 de Setembro de 2007

Brecker, o mestre. Zawinul, o gênio
Arnaldo DeSouteiro


Não sou chegado a artigos que podem parecer obituários. Durante 28 anos de Tribuna abri pouquíssimas exceções. Geralmente para músicos brasileiros, esnobados pela imprensa “especializada” (que piada!) nacional. Craques como Laurindo Almeida, Dom Um Romão, Manuel Gusmão, Iko Castro-Neves, Juarez Araújo, Zé Bodega. Em janeiro último, quando Michael Brecker faleceu, quis lhe dedicar um grande artigo. Mas travei. Escrever curtas declarações para revistas e blogs, tudo bem. Na hora de rememorar longamente sua trajetória não deu. O talento de Michael está excessivamente presente, direta e indiretamente, na minha vida. Quantos discos comprados por conta de sua participação! Quantos fantásticos solos espalhados (e por mim decorados) em mais de uma centena de álbuns! Alguns deles, discos de cabeceira: “Michel Colombier” (aquele para a Chrysalis em 79), “Burchfield Nines” (Michael Franks), “The Rape of El Morro” (de Don Sebesky, com um solo monumental em “Moon dreams”) e os três álbuns com Claus Ogerman, dos quais “Cityscape” é o meu favorito.

Quantos shows memoráveis que pude assistir ao vivo e a cores pelo mundo, algumas vezes a convite do próprio mestre, como aconteceu no Town Hall de New York em outubro de 1990. Uma apresentação em formato de quarteto acústico, destacando Joey Calderazzo, então a grande revelação na cena jazzística em matéria de piano. Além, claro, do showzaço com Herbie no Free Jazz de 96. Sem contar os LaserDiscs com Carly Simon, Sinatra & Quincy (tocando até flauta!), Paul Simon, Steps, Abercrombie e ao lado de Randy no Brecker Brothers.

Tive uma segunda chance na época do lançamento do álbum póstumo “Pilgrimage”, em maio. Travei de novo. A emoção foi além da conta. Continuo ouvindo o disco obsessivamente, já poderia escrever um livro sobre a obra. E agora um novo dilema: como condensar tão profunda análise em um único artigo? Pelo jeito, farei um rápido comentário em um futuro breve. Se nem isso acontecer, pelo menos “Pilgrimage” terá menção garantida aqui na coluna de “melhores do ano”, como um dos grandes discos de 2007. Aposto também em Brecker como franco favorito para entrar no “Hall of Fame” da Downbeat, através do próximo Readers Poll. Pule de dez. Afinal, os leitores sempre se revelam mais antenados e nada preconceituosos, enquanto os críticos...

Ah, os répteis mais babacas da face da terra, falsários intelectuais que pululam aos Montes, asquerosos em suas rabugens e difamações, nunca entenderam a dimensão do talento de Brecker – o saxofonista mais influente depois de Coltrane, sua grande inspiração mas jamais objeto de imitação, pois soube transmutar a influência e criar sua própria linguagem, seu próprio estilo, tornando-se referência para nove entre dez tenoristas surgidos depois dos anos 70. Assim como nunca conseguiram (nem quiseram se esforçar para) sacar a importância histórica de Joe Zawinul, que “nasceu para a eternidade em 12 de setembro de 2007”, como escreveu Eric, um de seus três filhos, no website do pai.

Notícia que causou a maior comoção no mundo da música desde a morte precoce de Brecker aos 57 anos, depois de dois anos e meio lutando contra as terríveis MDS e leucemia. Claro que também sofremos outras perdas sérias este ano, incluindo Jon Lucien, Johnny Frigo e Max Roach no mês passado. Entretanto, sem desmerecer ninguém, Lucien estava longe de sua fase áurea. Frigo, aposentado. E Max não gravava desde 2002, preso a uma cadeira de rodas. Zawinul, vitimado por um raro e violento tipo de câncer de pele, vivia a mil por hora, continuava excursionando, mantinha um ânimo de adolescente, embora abalado pela morte da esposa há alguns meses.

Gênio absoluto e revolucionário, no sentido mais amplo da palavra. De um apetite voraz por novas sonoridades, novas estéticas. Sem ele, Miles não teria gravado “In a silent way”. Nem “Bitches brew”. Não daquela maneira. Poderia ter trilhado caminho semelhante, na mesma direção inovadora, já que o permanente iconoclasta estava fascinado também por Hendrix e Sly. Mas certamente o resultado teria sido um som bem diferente sem o contraponto melódico-harmônico-estético da influência fortíssima de Zawinul, amigo de outro indomável pianista austríaco, Friedrich Gulda, certamente o primeiro em que se espelhou para as abençoadas transgressões praticadas ao longo de seis décadas de carreira. Ou seja, sem Zawinul talvez não tivesse existido a fusion, a melhor face dela, pelo menos como a conhecemos através das gravações com Miles eo Weather Report.

Em 2003, ao produzir uma extensa série de relançamentos em formato digipack para a Fantasy/BMG, selecionei “Soulmates”, disco gravado pelos roommates Ben Webster & Joe Zawinul para a Riverside em 63, quando o austríaco começava a chamar atenção no grupo de Cannonball Adderley. Pouco antes, havia comprado, no Japão, um DVD da série “Jazz 625”, fruto de um especial do sexteto de Cannonball (Charles Lloyd juntara-se ao quinteto) para a BBC em 64, e fiquei chapado ao ver como Zawinul, então fisicamente muito parecido com João Donato, já entortava tudo no solo em “Jive samba”. Miles estava de olho e deve ter dado aquele sorriso ao ouvir a mudança que Joe imprimiu ao conjunto de Cannonball, adicionando piano elétrico e compondo hits tipo “Mercy mercy mercy” e “Walk tall”.

Após a contribuição de fundamental importância para a impactante revolução detonada por “In a silent way” e “Bitches brew” (para o qual compôs a emblemática “Pharaoh’s dance”), Zawinul voltou a sacudir a cena jazzística ao fundar (com Wayne Shorter, mais Miroslav Vitous, Alphonse Mouzon e Airto Moreira na formação original) o Weather Report. Logo no LP de estréia, em 71, eleito “álbum do ano” pelos leitores da Downbeat, foi ainda além das experiências prévias com Miles. Mudou a face do jazz, “somente” isso. Mostrou que havia um outro lado, um outro mundo sonoro a ser desbravado. E seguiu em frente na sua aventura obstinada. Somando vários tipos de pedais, phasers, delays e outros efeitos eletrônicos, fazia o Fender Rhodes soar como sintetizadores ou até como um órgão de fole. E, pasmem, na faixa de abertura do disco, “Milky way”, fez um piano acústico soar como um sintetizador.

A tecnologia avançava, mas era para acompanhar Zawinul, não o contrário. Os sintetizadores analógicos, que nas mãos da maioria pareciam brinquedinhos que produziam barulhinhos, ganhavam status de “instrumentos de verdade” quando pilotados por Joe. (Nos anos 70, com todo o respeito a Herbie e Chick, o único tecladista a chegar perto de JZ, em termos de inventividade e colorido orquestral, foi o uruguaio Hugo Fattoruso, mas esta história fica para outro dia) Pois bem: a cada novo álbum do Weather, Joe se superava. “Live in Tokyo”, “I sing the body electric”, “Sweetnighter” e “Mysterious traveller” (os quatro com Dom Um Romão na percussão) são provas cabais. Depois veio a “fase Jaco Pastorius”, e com ela novas maravilhas, em especial “Heavy weather” (do sucesso “Birdland” em 77), “Mr. Gone” (da engenhosa “Young and fine”) e o álbum-duplo “8:30”, base do repertório apresentado pelo WR no “Rio/Monterey Jazz Festival” em agosto de 1980 no Maracanãzinho.

Performance tão bombástica quanto o primeiro concerto do Weather Report no Brasil, em 1974, no Teatro Municipal do Rio, ainda com Dom Um. Nos dois últimos discos, “Sportin’ life” (84) e “This is this” (85), os problemas de relacionamento pessoal entre Wayne e Joe afetaram o rendimento em estúdio. Selado o fim do WR, Zawinul tratou rapidinho de cair na estrada com um grupo espertamente batizado Weather Update (com os ex-WR Peter Erskine, Victor Bailey e Bob Thomas, mais o guitarrista Steve Khan), de carreira ceifada pelos advogados de Wayne por causa do nome. Mesmo sem ter tido tempo de gravar um disco, o Update pode ser apreciado através de um DVD filmado em 86 e lançado em 2005. Na sequencia, Joe criou o Zawinul Syndicate, que lançou três discos entre 1988 e 1992, além de um DVD captado em 89 e editado em 2003.

Eterno “bad boy”, seguiu também gravando álbuns individuais como “Dialects”, um marco da world-music. Contudo, o WR permanecia sendo sua grande paixão, seu maior orgulho. Tanto que, em 2002, produziu um CD-duplo de gravações inéditas, “Live and unreleased”, lançado pela Sony. E no ano passado topou preparar, juntamente com Wayne e Bob Belden, a caixa “Forecast: Tomorrow”, ampla retrospectiva do WR cobrindo todas as fases do conjunto, com direito a mais registros inéditos e um DVD. Ou seja, era impossível desvencilhar-se da memória do grupo. Até porque o WR sempre aparecia como referência para todos os jovens músicos que o procuravam em seu clube Zawinul’s Birdland, que funcionava no Hilton Hotel de Viena, cidade onde faleceu e vivia, alternando temporadas de férias na casa de praia em Malibu, na Califórnia.

Como, volto a dizer, este artigo não pretende ser um obituário disfarçado, passo por cima de dados biográficos que podem ser encontrados na internet em dezenas de sites. Prefiro aproveitar o espaço restante para relembrar e simultaneamente indicar registros essenciais, começando pelas caixas “The complete in a silent way sessions” e “The complete Bitches brew sessions”. Comprem também todos os discos gravados como sideman de Cannonball (atenção para “Nippon soul”, ao vivo no Japão em 63, com Yusef Lateef no tenor, flauta e oboé), os dois pouco conhecidos álbuns com Nat Adderley em 68 para a A&M/CTI (“You, baby” e “Calling out loud”, relançados em CD apenas no Japão), a coleção completa do WR (ou pelo menos “Live in Tokyo”, “Mysterious traveller”, “Heavy Weather”, “Mr. Gone” e “8:30”) e todos os vídeos acima citados (“Cannonball – Jazz 625”, “Weather update” e “Zawinul syndicate”), além do recém-lançado “WR – Live at Montreux 1976”, para passar pela experiência visual de contemplar cada fase do nosso herói.

Aproveite o embalo e saia à caça de vídeos raros como “Japan domino theory”, editado em 84, documentando, na faixa batizada “Duet” o mais emocionante de todos os duos que Joe & Wayne invariavelmente armavam nos shows do WR. Ouvir tais duos nos discos já é uma cacetada. Ver como aquilo rolava no palco transforma-se em experiência inesquecível. Naquela noite, em Tokyo, eles se superaram. Há provocação, flerte, namoro, diálogos entrecortados por frases ora ríspidas ora líricas, até que vem o encaixe perfeito, o clímax, e o improviso alcança uma dimensão celestial, com as múltiplas texturas do arsenal de sintetizadores indo dos tímpanos às trompas. Assisti muitos shows do WR pelo mundo afora, e também fui por duas noites seguidas ver o Zawinul Syndicate estraçalhando na Ritmo (com Matthew Garrison e Arto Tuncboyashi), em 95 – soube que eles voltaram àquela casa em 96, mas eu estava no Japão. Houve momentos sublimes, mas nada que superasse o tal dueto de 84.

Faça o possível e o impossível para conseguir também os DVDs “WR – NDR Jazz Workshop” (filmado em Hamburgo em 71, com Dom Um, incluindo extensas versões para “Directions” e “Dr. Honoris Causa”) e “Miles Davis and friends – La Villette 1991”, histórico por um motivo básico: último concerto de Miles, seu derradeiro encontro com Joe & Wayne, que tocam...”In a silent way”! Música que abre a caixa “Forecast: tomorrow”, no registro original de Miles, visto como a semente do que viria a ser o Weather Report. No total, 37 faixas em três CDs, abrigando takes inéditos de “Directions” e “Nubian sundance”. Ah, e na folha 36 do livreto de 104 páginas repleto de depoimentos e fotos (até mesmo de Alyrio Lima, outro brasileiro que integrou o grupo), Zawinul revela o segredo do efeito mágico obtido em “Milky way”, algo que intrigou os adoradores do WR por mais de trinta anos.

Mas a jóia maior é o DVD de duas horas de duração acoplado ao pacote, filmado em 78 na Alemanha e comentado neste espaço quando lançado no Japão há dois anos sob o título “Young and fine”. A nova versão, oficializada, tem melhor imagem e som remasterizado. Não vou reprisar os comentários; quero apenas chamar atenção para outro duo antológico de Zawinul & Wayne no medley que une “I got it bad and that ain’t good” e “The midnight sun”. A performance extraordinária de Joe ao piano acústico, possível graças aos fundamentos do estudo clássico, revela a técnica prodigiosa do mesmo nível do conterrâneo Gulda. Naquele momento, atinge o mesmo status da genialidade de um Mozart. Proezas de Zawinul, um deus da música com o qual tivemos o privilégio de conviver.

Legendas
“Michael Brecker, o mais importante e influente tenorista do jazz pós-Coltrane”
“Joe Zawinul, o tecladista mais criativo na história do jazz”
“Com 3 CDs e 1 DVD, a caixa “Forecast: Tomorrow” revisa a trajetória do Weather Report e de Joe Zawinul, incluindo sua primeira gravação com Miles Davis”

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