Monday, June 4, 2007

Raul de Souza, o craque do trombone


Raul de Souza, o craque do trombone
“Aos 72 anos, o trombonista brasileiro mais famoso internacionalmente faz uma retrospectiva de sua carreira”
Arnaldo DeSouteiro*

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiros em 28 de Setembro de 2006 e publicado originalmente na revista "Sax & Metais"

Desde o início das comemorações por conta de seus 70 anos, em 2004, que incluiram até mesmo um documentário sobre sua vida, Raul de Souza não pára. Agora, decidiu viver na ponte aérea Rio-Paris. Além de se preparar para lançar um novo disco com músicos brasileiros, segue se apresentando com sua banda francesa na noite parisiense. “Montei um conjunto com a bela saxofonista Claire Michael que mistura ritmos brasileiros e sons eletrônicos, bem na linha dançante do acid-jazz. Mas para o mercado brasileiro tem que ser outra jogada, por isso eu fiz o "Jazzmim" numa outra onda”, revela. Em férias no Rio com a esposa Yolaine, o mais completo, versátil e expressivo trombonista brasileiro de todos os tempos - e também o único a alcançar fama mundial, graças a seus trabalhos com Airto Moreira, Flora Purim, Sonny Rollins, Cal Tjader e George Duke – ainda usufrui da ótima repercussão causada pelo relançamento de seu álbum de estréia-solo, “À Vontade Mesmo”, cuja reedição eu tive a honra de produzir para a série "RCA 100 Anos de Música".

Reedição que gerou vários convites, inclusive para participar do novo disco de Ithamara Koorax (em uma das últimas sessões do baterista Dom Um Romão, com Ron Carter e Gonzalo Rubalcaba completando o trio de base), e compor a trilha sonora para o filme "Lost Zweig", de Sylvio Bach, cuja estréia vem sendo sucessivamente adiada. “O filme retrata a última semana de vida do escritor judeu austríaco Stefan Zweig, autor do livro “Brasil, País do Futuro” e de sua esposa Lotte”, comenta Raul. “Eles fizeram um pacto misterioso, se suicidaram em Petrópolis, após o Carnaval de 1942, tudo foi premeditado. Fiz a trilha junto com o Guilherme Vergueiro, pianista, e grande parte da música foi improvisada no estúdio enquanto assistíamos ao copião”. Também nos planos de Raul está um projeto sinfônico, com variações jazzísticas sobre a obra de Brahms, seu compositor predileto. Uma pequena prévia desta acomplagem com orquestra aconteceu em um concerto com a Jazz Sinfônica, em 2005, em São Paulo, filmado para lançamento em DVD que também ainda não aconteceu.

Nascido João José Pereira de Souza, em 23 de agosto de 1934, no Rio de Janeiro, começou tocando pandeiro na Igreja Presbiteriana da qual seu pai era pastor. O primeiro trabalho profissional surgiu aos 16 anos, tocando tuba na banda da Fábrica Bangu, onde trabalhava como tecelão. “Era uma das indústrias mais importantes do Rio naquela época”, relembra. “Tocávamos nas inaugurações das lojas e também em jogos de futebol, para animar as torcidas. Experimentei flauta, trompete e sax tenor, antes de optar pelo trombone de válvula, também chamado de trombone de pistons”. O apelido de "Raulito", depois adaptado para “Raulzinho” foi dado por Ary Barroso, quando o garoto se apresentou no famoso programa de rádio comandado pelo compositor. “João José não é nome de trombonista. Já temos o Raul de Barros, o Raulzão, então você vai ser o Raulito do Trombone”, sentenciou Ary.

Durante o serviço militar, ficou amigo do lendário batera Edison Machado quando ambos serviam na Infantaria de Guarda da Aeronáutica, chegando a Primeiro Sargento-Músico. Retomando a vida civil, passou a tomar parte em vários concursos radiofônicos, conhecendo mestres como Pixinguinha, Waldir Azevedo e Altamiro Carrilho. “Em 1955, fiz algumas gravações com A Turma da Gafieira, conjunto liderado pelo Altamiro, com participações de Edison Machado, Sivuca, Zé Bodega e Baden Powell. Depois fui para Curitiba, onde casei, tive três filhos e fiquei cinco anos, tocando na orquestra do trompetista Osval Siqueira, e na Banda da Escola de Oficiais e Guardas da Base Aérea de Bacacheri. De noite, eu saía de uniforme e tudo para tocar nos dancings. Foi lá também que conheci o Airto, que cantava boleros em boates de reputação duvidosa”, diverte-se.

Diz a lenda que, em uma região pantanosa, o trombonista costumava estabelecer inusitados diálogos musicais com um búfalo, o que teria influenciado sua volumosa sonoridade. O jornalista Roberto Muggiati, testemunha ocular do fato, conta a versão correta para a esdrúxula amizade que gerou até mesmo uma música (“Water Buffalo”, incluida no disco “Colors”) em homenagem ao mamífero ruminante. “Raulzinho tocava numa boate que ficava dentro do Passeio Público de Curitiba, misto de parque e zoológico. Nos intervalos, ele caminhava para perto do tanque dos búfalos, que de tão grande parecia uma lagoa. E de fato travava longos duetos com os animais, para espanto meu, do escritor Dalto Trevisan, e até do Edson Maciel, o Maciel Maluco, grande trombonista que foi parar em Curitiba quando soube que o Raulzinho estava por lá”, relata Muggiati.

“Tanto o Airto como eu fomos tentar a sorte em São Paulo, conseguindo emprego no João Sebastião Bar, reduto da bossa nova, onde conhecemos a Flora, o Cesar Mariano e o José Roberto Bertrami, futuro pianista do Azymuth. Em 1964 eu já estava de volta ao Rio, tocando com Edison Machado, Tião Neto, Hector Costita e Edson Maciel no inovador “Você Ainda Não Ouviu Nada!”, do sexteto Bossa Rio, do Sergio Mendes”, diz Raulzinho. “Foi um dos anos mais produtivos da minha vida. Excursionei pela Europa com o Sergio, na volta entrei para o conjunto Os Catedráticos, do Eumir Deodato, gravando o disco “Tremendão”, e reencontrei o Edison, que me convidou para o primeiro LP dele, “Edison Machado É Samba Novo”, outro registro genial”.

Raulzinho ainda aprontou muito mais em 64. Além dos discos de estréia do Quarteto Em Cy e do pianista Tenório Jr. (“Embalo”), tomou parte em duas importantes sessões para a RCA: “Trio 3D Convida” (o segundo álbum do grupo liderado por Antonio Adolfo) e “Flora É M.P.M.”, primeiro LP de Flora Purim. Terminou contratado para gravar seu próprio disco como líder para a RCA, escolhendo o Sambalanço Trio (Cesar Camargo Mariano ao piano, Humberto Clayber no contrabaixo & Airto Moreira na bateria) como companheiros na empreitada. “Eles já tocavam juntos em São Paulo desde 1962, tinham gravado três LPs, estavam super-entrosados. Então, não tinha como dar errado”.

“Ao contrário do que muita gente pensa, Raulzinho só passou a tocar trombone de vara no final dos anos 60”, informa um de seus maiores fãs, o trompetista Claudio Roditi, que chegou a tocar trombone no início dos anos 80 – tendo Raul como influência máxima - ao integrar a banda de Paquito D’Rivera. “Em matéria de trombone de válvula, ninguém no mundo o superou, nem mesmo o Bob Brookmeyer”. Quem duvidar, que ouça as performances antológicas contidas em “À Vontade Mesmo”, amostras do “trombonão balançante, inventivo e loquaz, sempre buscando o registro baixo como pontuação”, na análise do crítico Luiz Orlando Carneiro.

Após o lançamento de “À Vontade Mesmo”, Raul viajou novamente à Europa, atuando com o baterista Kenny Clarke em clubes de jazz da noite parisiense, como o Blue Note e o Elephant Blanc. Voltando ao Brasil, empregou-se no RC7, grupo de apoio de Roberto Carlos, antes de ingressar no Impacto 8, gravando o disco "International Hot" para o selo Equipe, relançado em CD na Europa. “Me sentia desapontado com o cenário musical brasileiro daquela época, então me mandei para o México em 1969”, desabafa. Estava morando em Acapulco quando, em agosto de 1973, recebeu um telefonema dos velhos amigos Airto & Flora. No auge da popularidade, eles o chamavam para ir trabalhar nos Estados Unidos.

“Três dias depois eu já estava em Los Angeles, começando uma turnê em que abríamos os shows do grupo Crusaders. Quando a excursão terminou, decidi dar um tempo em Boston, para estudar no Berklee College of Music”, conta Raul. Regressando a L.A. no ano seguinte, fascinou os críticos com solos excepcionais em várias faixas do álbum “Stories To Tell, de Flora, impressionando o produtor Orrin Keepnews, então diretor artístico da Milestone.

Como consequência imediata, Orrin autorizou Airto a produzir um disco de Raul como líder, o soberbo “Colors”, gravado em outubro de 74 com arranjos de um de seus maiores ídolos, J.J. Johnson, e participações de Cannonball Adderley, Richard Davis e Jack DeJohnette. “Quase caí prá trás quando vi esta turma da pesada no estúdio, tocando no meu disco... parecia um sonho!”, comenta. Apesar do fracasso comercial (“foi pessimamente divulgado”), aumentou seu prestígio perante a comunidade jazzística, levando-o a atuar em sessões de Cal Tjader (“Amazonas”), Azar Lawrence (“Summer Solstice”) e Sonny Rollins (“Nucleus”).

“Rollins me chamou para fazer a turnê de divulgação do disco, mas fui atropelado, quebrei as duas pernas, passei por várias operações e fiquei três meses no hospital”, lamenta. Entretanto, outro sonho se materializou quando Airto & Flora organizaram um concerto visando arrecadacar fundos para o seu tratamento: Frank Rosolino, um de seus trombonistas favoritos, apareceu, identificou-se como fã e tocou em duo com Raulzinho, que ainda estava em cadeira de rodas. Em uma ocasião mais alegre, tocaram juntos novamente em 1978, no I Festival Internacional de Jazz de São Paulo, no Anhembi.

Nesse intervalo, Raul havia assinado contrato com a Capitol, lançando dois funkeados álbuns produzidos por George Duke (os best-sellers “Sweet Lucy”, em 77, e “Don’t Ask My Neighbors”, em 78, patenteando sua invenção, o souzabone) que o levaram a ser aclamado entre os melhores trombonistas do mundo nas votações dos leitores da revista DownBeat. Depois, mal orientado pelo produtor Arthur Wright, embarcou na canoa furada de “Till Tomorrow Comes” (79), uma aventura na área da disco-music. Gravou também com Milton Nascimento ("Milton"), Hermeto Pascoal ("Slaves Mass"), no LP de estréia do grupo fusion Caldera, e em dois álbuns de George Duke: “Reach For It” e “Brazilian Love Affair”. Ignorado na “Encicloédia da Música Brasileira” (Itaú Cultural), virou verbete na “Encyclopedia of Jazz in The Seventies”, de Leonard Feather & Ira Gitler.

Integrando uma banda de all-stars formada por Duke, Stanley Clarke, Airto, Ndugu e Roland Bautista, apresentou-se no Rio/Monterey Jazz Festival, em agosto de 1980, no Maracanãzinho. Surpreendeu a todos quando decidiu permancer no Brasil, abandonando não apenas sua carreira internacional, como também sua esposa Marilyn Castles, que voltou sozinha para os EUA. Casou-se com uma antiga namorada, e uma semana depois estava tocando no pátio da Faculdade Hélio Alonso, em Botafogo, ao lado de Lincoln Olivetti & Robson Jorge.

Durante os anos 80 e 90, viveu entre Rio e São Paulo, fazendo shows esporádicos, gravando discos (“A Arte do Espetáculo”, “The Other Side of The Moon”) muito aquém de seu talento, e participando de sessões com Gilberto Gil, Toninho Horta, Maria Bethânia, Lisa Ono, Salena Jones, Nelson Angelo, Taiguara, João Donato, Eloir de Moraes, e no último disco de Jobim, o Grammyado “Antonio Brasileiro”. Por sorte, antigas gravações até então inéditas com Airto & Flora (“Colours of Life”, “Aqui Se Puede”, “Samba de Flora”) e Georgie Fame (“The In-Crowd”) foram finalmente editadas, impedindo que seu nome caísse em esquecimento no exterior. Em 1998, às vésperas de mudar-se para Paris, lançou ótimo CD em dupla com o trombonista Conrad Herwig, “Rio” (nos moldes da parceria entre J.J. Johnson & Kai Winding), seguido pelo excelente "Elixir" em 2005, distribuido no Brasil pela Tratore. Disco que voltou a coloca-lo entre os dez melhores trombonistas do mundo, na votação dos leitores da DownBeat no ano passado, depois de ter ficado em 12º lugar em 2004. Ainda assim, os espetaculares álbuns de estréia no Brasil (“À Vontade Mesmo”) e EUA (“Colors”), permanecem como as obras-primas de sua discografia.

*Arnaldo DeSouteiro é produtor musical (fundador & presidente do selo JSR/Jazz Station Records), historiador de jazz e música brasileira, jornalista (membro da Jazz Journalists Association, de NY), educador (membro da IAJE – International Association for Jazz Education).

Legenda: Raul de Souza durante as gravações do novo álbum de Ithamara Koorax, "Brazilian Butterfly".

3 comments:

lia barcellos said...

Arnaldo
Para que fique bem documentado seu artigo, detectei um " vazio" nessa biografia. Conheci o Raul num hall do Hotel Nacional durante o Free Jazz em 1993. Fomos ao Jazzmania, e meses depois viviamos juntos, no meu apartamento de Laranjeiras. Tivemos uma filha, a Isabella. Em 1997 pedi demissao na Caixa Econômica Federal, onde trabalhava, e com todo o dinheiro da minha indenizaçao, paguei passagens, dois anos de aluguel em Paris, roupas de frio, moveis,alimentaçao, despesas do lar, enfim nossa instalaçao em Paris,onde,como se fosse uma mecenas, o sustentei por dois anos, fazendo até limpeza, quando meu dinheiro acabou. Consegui shows para ele na Alemanha, na França, movida pelo entusiasmo e pelo amor. Raul conheceu a atual mulher e começou a pular fora, afinal precisava de uma carta de séjour. Fiquei sozinha, num pais estranho, com uma filhinha para criar. Mas estou aqui, firme e forte, hoje sou francesa naturalizada e reconstrui minha vida. Fico triste quando todos os artigos e biografias, mesmo a do Muggiatti, me omitem da vida dele. Foram quase sete anos juntos. Quem conhece tudo é a jornalista Dora Mendonça. Sei que o personagem é controverso e inatacavel, todos sao apaixonados por ele. Se você vai publicar ou nao, é sua decisao. Pode ver minha pagina myspace. Quem sabe você gosta da musica? Um grande beijo. Meu mail perso
liabarcellos@ymail.com

myspace.com/liabarcellos

DNArte said...

Em 2012, sai o primeiro dvd deste gênio do trombone. "O Universo Musical de Raul de Souza" tem direção de Flávio Rodrigues e Fabíola Braga (DNArte)

Unknown said...

Conheci a Lia Barcellos numa visita que fiz ao Raul no apartamento em que os dois viviam, no Rio. Na época eu fazia uma pesquisa acadêmica sobre seus improvisos e, além de visitá-lo como amigo, fui conversar com ele a respeito de algumas transcrições de solos que eu estava realizando, entre outras coisas. A Lia foi muito gentil e colaborou preparando e me dando algumas fitas cassete de gravações contendo solos do Raul que eu não ainda não conhecia. Pouco tempo depois eu soube que haviam partido de mudança para a França.

Haroldo Mauro Jr.