Monday, November 5, 2007

Sons que somente ressurgem no Japão

Sons que somente ressurgem no Japão
Arnaldo DeSouteiro


Em artigo enviado diretamente de Tóquio, Arnaldo DeSouteiro comenta raridades da bossa nova que, inéditas em CD no Brasil, onde permanecem fora de catálogo há vários anos, são relançadas agora no Japão, incluindo trabalhos antológicos de Luiz Eça, Chico Feitosa e Luiz Carlos Vinhas.

Tokyo – Crise? Qual crise? Para quem chega a Tokyo e começa a visitar as lojas de disco, a tão falada e realmente violentíssima crise na indústria fonográfica, a mais grave da história, pode parecer loucura de um delirante tipo o Mentirelli. Lançamentos e reedições seguem a pleno vapor, as lojas vivem cheias (embora não tão repletas como nos anos 80 e 90, quando era difícil caminhar dentro do prédio da HMV de Ginza) e até a Tower Records, que faliu no resto do mundo, continua existindo no Japão, onde uma esperta empresa adquiriu o direito de uso da marca assim que a crise começou na matriz norte-americana. Claro que algumas lojas, como a Wave, e alguns selos menos poderosos fecharam. Claro que as companhias maiores reduziram gastos, dispensaram artistas locais e cortaram investimentos em publicidade. Mas o mercado era e permanece sendo tão gigantesco que, mesmo bastante afetado, impressiona pela robustez.

Resumo da ópera: a tentação para os consumidores de todos os estilos – do rock à musica clássica, do rap à world-music – ainda é imensa. Para os jazzófilos e colecionadores de sons brasileiros, então nem se fala. As reedições, disponíveis apenas no mercado asiático, chegam a provocar sustos pela quantidade e qualidade. Por exemplo: em todas as lojas existem spots da mais recente série da Universal nipônica, batizada “Estrelas brasileiras”. Será que alguém adivinharia quem são as tais estrelas? Ivete Sangalo, Daniela Mercury e Exaltasamba? Maria Rita, Bruno & Marrone, Cheiro de Amor? Nada disso, felizmente. Luiz Eça, Tita e Chico Feitosa, pasmem!

Pérolas esquecidas

Há uns três anos, pipocaram várias notas sobre uma suposta coleção do selo Forma a ser lançada pela Universal brasileira. Por conta disso, até retiraram de catálogo o único CD do selo que estava á venda (a reedição de “Inútil paisagem”, de Eumir Deodato, produzida por mim em 1998), pois supostamente reapareceria danificada por nova capa-padrão. Nada aconteceu, claro. E ninguém perguntou o motivo. Mas no Japão os diretores da Universal apostaram este ano na reedição do cult “Chico Fim de Noite apresenta Chico Feitosa”, tão raro que nem mesmo Ruy Castro nem Tárik de Souza possuem um exemplar do LP “gravado nos estúdios da RCA Victor em 10, 11 e 15 de março de 1965, sob a supervisão de Roberto Quartin e Wadi Gebara Netto”, como documenta o encarte do CD.

A edição japonesa reproduz a capa original, mantendo até o número de catálogo FM 7 no livreto que traz a ficha completa dos músicos (craques como Edison Machado, Sergio Barroso, Paulo Moura, Copinha, J.T. Meirelles junto com os esquecidos Juvenal Sampaio, Murillo Loures, Henry Aszerald e um excelente saxofonista chamado Laerte Alcântara) e o sensacional texto de Millor Fernandes. “Agora, do ponto de“vista da intenção, você, como dizem muito bem os argentinos, entrô por el caño. Quis fazer um disco propositadamente alienado numa época de extrema politização. Um canto noturno e solitário, individualista e ocasional num momento em que todo mundo é obrigado a gritar...”, escreve Millor, mais um “tio” que eu tive a honra de conhecer, ainda que por dois minutos, durante o show de lançamento, no Mistura Fina, do CD de estréia de Pingarilho que produzi em 2003.

E prossegue Millor, genialmente: “E o resultado é uma tomada de posição em favor do outsider, do marginal, do excepcional, do que não se enquadra nem se deixa enquadrar, do que deseja um mundo para o amor e ser amado. Um mundo em que um homem, sem dar explicações, possa, pura e simplesmente sair cantando o sol, a lua, a galinha do vizinho e o diabo que o carregue. E em que, consequentemente, nossos filhos sejam convidados a pisar no grama”.

Nego-me a reproduzir o final do texto pois equivaleria a contar o final de um filme. Preciso ainda de espaço para citar que, fora a música de abertura (“Fim de noite”, parceria com Boscoli por mim incluída na recente compilação da Verve “Bossa nova singers”), a de encerramento (“O amor que acabou”, letrada por Lula Freire) e a “Canção do olhar amado” com Marino Pinto, as demais são pérolas esquecidas compostas por Feitosa (1935-2004) em dupla com outra saudosa figura genial, ex-colega de Tribuna da Imprensa e meu saudoso amigo Marcos Vasconcellos, arquiteto mais conhecido pelas parcerias com Carlos Pingarilho. Juntos, Marcos e Chico assinam canções sombrias e belamente tristes, tipo ‘Caminho” (“Sei bem que vou cair, mas sei me levantar/Morrer não quero, morrer dói/Vontade é de viver, mas viver dói”), “Borboleta”, “Abandono” (“Amor, o melhor é não ser/Abandono, o melhor é morrer”), “Ilusão” e “Sou só saudade”, cujas atmosferas semi-soturnas são reforçadas pelas orquestrações de Oscar Castro-Neves, também presente ao violão.

Voz de estreante

Menos complexo, outro disco de estréia safra 65, o da cantora/violonista Tita (hoje mais conhecida como compositora evangélica e esposa do baixista Edson Lobo), era igualmente cotado em cerca de trezentos dólares nos leilões de vinil na internet. Produzido por João Mello para o selo Polydor, texto de contracapa assinado por Boscoli (parceiro de Normando na faixa “Mais valia não chorar”), “Tita” traz arranjos de Gaya, Deodato e Paulo Moura, surpreendendo pelo cardápio de poucos standards (“Inútil paisagem”, “Só tinha de ser com você”) e diversas músicas que não emplacaram. Para descobrir o motivo, basta ouvir as parcerias de Renato Silveira & Betinho (“Sono de pedra”, “Aniversário da tristeza”), Sergio Malta & Helder Câmara (não o arcebispo, mas o campeão brasileiro de xadrez em “Ficou saudade”) e até mesmo uma dos irmãos Valle (“Pensa”) muito abaixo do nível da dupla. “Sozinha de você” (Durval Ferreira & Pedro Camargo) e “Questão de moral” (Roberto Faissal & Paulo Tito) são valorizadas, respectivamente, pelo piano de Eumir e pela orquestração exuberante de Gaya. “Bem mais que a beleza”, de Pingarilho & Paulo Sergio Valle, merecerá uma chance na minha próxima compilação.
Piano & Cordas

Disco favorito de Simon Khoury, (“uma obra de arte, um divisor de águas na música brasileira”), “Luiz Eça & cordas” é o destaque instrumental da série “Estrelas brasileiras”. Arranjos suntuosos e um piano arrasador a serviço de impecável repertório, que inclui dose dupla de Luiz Bonfá (“Saudade” e “Canção do encontro”, leia-se “The gentle rain”) mais Baden (“Consolação”), Lyra (“Primavera”), Menescal (“A morte de um deus de sal”), o trio Durval-Bebeto-Mauricio Einhorn (“Tristeza de nós dois”) e o próprio Eça (“Imagem”, “Quase um adeus”). Aliás, justamente neste discaço da Philips, a Universal japonesa comete a falta grave de omitir os nomes dos autores, que não são citados no encarte nem no rótulo, embora todos os outros nomes da contracapa original (foto de Chico Pereira, engenharia de som de Celinho Martins & Sylvio Rabello, e os músicos – o baixista Bebeto e o batera Rubem Ohana, colegas de Eça na formação do Tamba Trio daquela época, mais o infalível Daudeth de Azevedo, o Neco do violão) estejam devidamente creditados.

Curiosamente, outros discos de Luiz Eça (1936-1992), pertencentes ao acervo da Universal, foram licenciados para a Bomba Records, pequeno selo japonês que já relançoiu muita coisa boa de bossa nova e MPB. A nova série de reedições da Bomba surge no formato de capa-dura conhecido como “paper sleeve miniature LP”, ou seja, realmente um vinil em miniatura, reproduzindo fielmente as capas originais, dos quais os CDs são retirados por uma abertura lateral. Algo que torna impossível resistir a raridades como “Luiz Eça, piano & cordas”, lançado em 1970 sob a grife Elenco, já vendida por Aloysio de Oliveira à então Phonogram. Chamado informalmente de “Piano & cordas vol.2”, situa-se no mesmo alto nível do disco de 65, destacando “3 minutos para um aviso importante”, “The dolphin”, “Oferenda” (todas de Luiz), “Pra dizer adeus” (Edu Lobo & Torquato Neto), “Duas contas” (Garoto) e “O homem entre o mar e a terra” (Dori Caymmi).
Sonoridades ousadas

Naquele mesmo ano, nas férias de sua temporada no México com o grupo Sagrada Família – Eça havia se retirado do Tamba 4, que contava então com Laércio de Freitas –, Luiz fez outro LP para a Philips, “Brazil 70”, com z mesmo, pois trazia na capa o carimbo “especially recorded for export”. Os arranjos, cada vez mais complexos e geniais, com direito a dissonâncias, uso de cravo e muitos metais, revelam novas cores e essências em “O cantador”, “Juliana”, “Travessia”, “Cantiga por Luciana”, “O sonho” e “Zazueira”, que selecionei em 2002 para o terceiro volume da minha coleção “A trip to Brazil”. Também pela Bomba sai uma compilação do Tamba Trio, da série “Autógrafo de sucessos”, com o selo Elenco na capa, apesar das gravações pertencerem aos trabalhos do Tamba para a Philips. As antológicas interpretações de “Garota de Ipanema”, “Mas que nada”, “Influência do jazz”, “O samba da minha terra” e “Se eu pudesse voltar” (outra criação sublime de Bonfá) estão presentes.

Com direito à luxuosa embalagem de capa-dupla, “Novas estruturas”, a obra-prima de Luiz Carlos Vinhas (1940-2001) para o selo Forma, também ressurge via Bomba, com uma ótima qualidade de som muito superior à edição pirata lançada na Inglaterra pelo selo inglês Rare Brazil em meados dos anos 90. Vinhas nunca tocou com tanta sutileza e refinamento como neste disco, captado em agosto de 1964, abrigando espetaculares arranjos de João Theodoro Meirelles para seu próprio explosivo “Aboio” e a linda “Pensativa” de Clare Fischer, do “A trip to Brazil” inaugural. Nestas faixas, Meirelles soma sua flauta aos sopros de Aurino, Edson Maciel, Hamilton, Sandoval e Jorginho Ferreira da Silva, com Luiz Marinho (baixo) e Ronnie Mesquita (bateria) na base. Outras músicas trazem Edison Machado, Octavio Bailly, Zezinho, Mauricio Einhorn (autor de “Curta metragem” e “Ad Vinhas”, parcerias com Arnaldo Costa), Raul de Souza, Paulo Moura e o Maciel menos maluco, o Edmundo. E continuarei o assunto na próxima semana, pois a pilha de CDs é tão imensa quanto fascinante. Konnichi wa!

Legendas:

“O álbum de estréia de Chico Feitosa traz parcerias com Marcos Vasconcellos e texto de apresentação assinado por Millor Fernandes”
“Luiz Eça & cordas” une arranjos suntuosos a um piano de virtuose, cheio de balanço
“Novas estruturas”, a obra-prima de Luiz Carlos Vinhas, volta em luxuosa edição de capa-dupla que reproduz um LP em miniatura

1 comment:

Oslo said...

É impressionante! A gente tem que dar a volta ao mundo para conseguir um exemplar de discos que deveriam estar à mão.
Destaque-se ainda a quantidade de discos produzidos "na marra" pelos músicos atuais, que estão fadados, pela mídia, ao limbo.