Raridades dos selos Dot, Verve, Decca e Impulse! são relançadas em CD
Arnaldo DeSouteiro
Narita, Japão - Depois da sessão bossa nova do artigo anterior, é hora de aproveitar o tempo no aeroporto de Narita para colocar o lap em funcionamento em prol dos relançamentos jazzísticos, outra grande tentação do mercado japonês. A terra do sol nascente é também a das melhores reedições, famosa por recolocar em circulação discos que, em outros países, nunca foram – e provavelmente jamais serão – reeditados em CD. E não há como reclamar de “favorecimento” para uma vertente específica. Do bop ao fusion, do mainstream ao acid, não faltam opções. Os títulos que vou retirando das sacolas da HMV e da Tower dão água na boca: Lalo Schifrin dando aulas de orquestração em atmosfera psicodélica, John Klemmer e seu sax echoplexado, nossos gênios do violão Luiz Bonfá e Laurindo Almeida transcendendo a bossa, John Handy, Jack van Poll, as obras-primas de Steve Kuhn e Kip Hanrahan (em SACD), Kai Winding com e sem J.J. Johnson em uma série do selo “Impulse!” que traz também Gil Evans e Ray Charles, os DVDs de Bill Evans e...chega! Paro por aqui porque já está de bom tamanho e, ademais, não daria tempo para mim nem espaço para o jornal.
Fundado por Creed Taylor como subsidiário da ABC-Paramount, o lendário selo Impulse! tem grande parte de seu catálogo disponível no Japão. E o melhor de tudo: no formato de “minature LP gatefold sleeve”, ou seja, capas-duplas iguaizinhas àquelas dos vinis originais, reproduzindo fielmente todas as fotos e textos. Ao contrário do que propagam alguns, o lema “the new wave of jazz is on Impulse!” foi estabelecido, na teoria e na prática, por Creed (responsável pelas contratações de John Coltrane e Gil Evans, por exemplo) e não por Bom Thiele, que ganhou de bandeja a administração do selo quando Taylor saiu um ano depois para assumir a direção da Verve, então adquirida (de Norman Granz) pela MGM. Tio Creed produziu somente os nove primeiros títulos da grife Impulse! – o suficiente para estabelecer sua estética e um padrão de qualidade que, conforme atesta Michael Cuscuna, “inaugurou uma nova nas produções jazzísticas”.
Jóias do selo Impulse!
“Gênio do marketing, Creed convenceu os chefões da ABC a investir na apresentação gráfica moderna, audaciosa e de capa-dupla até então não usada no jazz”, declarou Cuscuna à revista Swing Journal. Nas contracapas, nada de colocar os nomes das músicas. O comprador só descobria o repertório após desvirginar a embalagem. Alguns dos nove ítens dirigidos por CT situam-se entre as grandes maravilhas da história do jazz: “The blues and the abstract truth” (Oliver Nelson), “Africa/Brass” (John Coltrane) e “Out of the cool” (Gil Evans). Todos relançados em “miniature LP” pela Universal japonesa, assim como outros títulos não tão importantes mas altamente interessantes como “Genius + soul = jazz” (Ray Charles barbarizando no órgão sobre arranjos de Quincy Jones e Ralph Burns para uma big-band incendiária) e “Into the hot”, atribuído a Gil Evans mas concebido por Cecil Taylor e John Carisi.
Outros não se tornaram tão célebres, mas são apreciadíssimos no Japão. Caso do álbum de estréia do selo, “The great Kai & J.J.”, número de catálogo AS-1, marcando a retomada da colaboração (iniciada em 1954) entre os dois melhores trombonistas daquela época, hoje confirmados entre os cinco melhores de todos os tempos. Entretanto, graças à rabugice preconceituosa dos puristas que taxaram o disco de “comercial” (hahaha, que piada!), caiu no esquecimento durante algum tempo. Hora de reabilitá-lo, pois. Bill Evans toca piano em todas as onze faixas. Na sessão inaugural, registrada no estúdio de Rudy Van Gelder em 3 de outubro de 1960, Paul Chambers e Roy Haynes participam de “This could be the start of something“, “Georgia on my mind”, “Blue Monk”, “Side by side” e “I concentrate on you”. Das outras seis músicas, gravadas em 4 e 9 de novembro, Tommy Williams e Art Taylor assumem respectivamente o baixo e a bateria, contribuindo para interpretações irretocáveis de “Alone together” e “Theme from Picnic”. Agora me digam: com um repertório e um timaço desses, o disco poderia ser de baixa qualidade? Pois é, só na mente doentia dos falsários intelectuais.
As mesmas acusações e contraprovas se aplicam a “The incredible Kai Winding trombones”, terceiro lançamento do selo e novamente com foto de Arnold Newman na capa idealizada por Robert Flynn. Tanto que o CD, remasterizado em 24 bits para a coleção “Impulse! Best 50”, faturou o cobiçado “seal of approval” concedido pela revista Swing Journal, a bíblia do jazz no Japão. O dinamarquês Kai Chresten Winding comanda – em quatro sessões realizadas entre novembro e dezembro de 1960 – um naipe de quatro trombones (dois tenores e dois baixos) que faz misérias em jóias tipo “Speak low” (afro-acubanada pelas congas do lendário Olatunji, com Ray Starling reforçando os sopros no mellophone), “Lil’ darlin’” (Neal Hefti), “Doodlin’” (Horace Silver), “Love walked in” (dos irmãos Gershwin), “Black coffee” e “Bye bye blackbird”, estas duas com a rara dobradinha Bill Evans-Ron Carter na base. Entre os temas de Kai destacam-se “Michie” (em duas versões) e “Impulse”, baseada na harmonia de “I’ll remember April”.
Seleção atraente
Outra coleção da Universal nipônica, “Dig up the pieces”, cujos spots publicitários tomam conta do salão de jazz da Tower de Tóquio, reúne títulos de vários selos. “Constant throb” (John Klemmer) e “Hard work” (John Handy) pertencem à outra fase do Impulse!, então envolvido pela novidade do fusion. O disco de Klemmer, produzido por Ed Michel em 1971, é marcado pelo uso de piano e baixo elétricos em temas como “Constant throb” (com ótima vocalização da sumida Marti Nixon), “Rainbows” (Don Menza rouba a cena na flauta), “Neptune” (desta feita Menza passa para o clarone) e “Crystaled tears”, com o líder acoplando o então moderníssimo echoplex aos seus saxes tenor & soprano. Ah, e ainda tem Wilton Felder (do Crusaders) no baixo e o venerável Shelly Manne na bateria. Outro John saxofonista, o Handy, divide-se entre tenor, alto e vocais mas ousa bem menos em “Hard work”, sob a produção de Esmond Edwards em 1976, com as presenças de Chuck Rainey, Eddie “Bongo” Brown e Zakir Hussain.
Pinçado do catálogo Decca, “Hi Jackin’” recupera o álbum mais cultuado do Jack van Poll Tree-Oh, liderado pelo pianista holandês hoje residente na Bélgica. Seu toque de Fender Rhodes, safra 1972, revela-se mágico e pessoal (algo incompreensível para quem não consegue ver “alma” neste instrumento), especialmente nas belas releituras de “Ain’t no sunshine” (Bill Withers) e “Sweet Georgie Fame”, a homenagem de Blossom Dearie ao cantor inglês.
Criatividade e ousadia
Para quem curte experimental orquestral, há duas opções. Imperdível, “There’s a whole Lalo Schifrin goin’ on” nasceu em 1968 na Dot Records, produzido por Tom Mack. Deliciosamente psicodélico, da capa ao conteúdo, muitos pensavam que jamais seria relançado em CD. Lalo barbariza do início ao fim, nos solos de sintetizador (“Secret code”), piano acústico (“Vaccinated mushroms”), órgão Hammond (“Life insurance”) e nos arranjos alucinantes para “Life insurance”, “The gentle earthquake”, a bacanal-vocal de “Machinations” e o clima de fanfarra-épica de “Hawks vs. Doves”, encaixando gritos das torcidas.
Apesar da atmosfera lisérgica predominante, há espaço para a calmaria não-soporífera de “Dissolving” (somando acordeon, cravo e cordas), “Two petals, a flower and a young girl” (levada no assobio) e a bossa renascentista “How to open at will the most beautiful window”, com Shelly Manne na batera, Max Bennett no baixo e Dennis Budimir no violão. Três músicas que tocaram muito, durante os anos 70 e 80, na antiga JB-FM, cuja programação easy-listening era feita por Célio Alzer, titular do “Jazz & blues” na JB-AM e hoje renomado enólogo.
Aulas de instrumentação também rolam, ainda que de forma menos intensa, em “Don Sebesky & the jazz-rock syndrome”, a estréia do maestro na Verve, captada em junho de 1967 e janeiro de 1968. Sebesky cuida de todos os arranjos e teclados (órgão, piano, cravo e um protótipo de Hohner Clavinet), mas assina somente dois temas: “Meet a cheeta” e “Big Mama Cass”, reverenciando a rotunda cantora do grupo The Mamas & The Papas, de cujo repertório pescou “Somebody groovy”. Perde tempo com a melosa “Never my love”, porém acerta na mosca na furiosa recriação de “The word” (Lennon & McCartney), com um solo abrasador do guitarrista Larry Coryell. Também marcam presença Joe Beck, Hubert Laws, Jerry Dodgion, Don Payne, Richard Spencer e a vocalista Janet Sebesky. Importante frisar que, apesar do título, o disco está mais para jazz-pop do que jazz-rock, e nem se compara aos monumentais “Giant box” e “The rape of El Morro”. Quanto aos outros títulos anunciados na abertura, fica para a próxima. A Iris Lettieri de Narita chama o meu vôo. Domo arigato gozaimasu. E sayonara!
Legendas:
“The great Kai & J.J.”, disco inaugural do selo “Impulse!” em 1960, é finalmente relançado em CD
“O maestro argentino Lalo Schifrin esbanja criatividade em atmosfera psicodélica”
Para quem curte experimental orquestral, há duas opções. Imperdível, “There’s a whole Lalo Schifrin goin’ on” nasceu em 1968 na Dot Records, produzido por Tom Mack. Deliciosamente psicodélico, da capa ao conteúdo, muitos pensavam que jamais seria relançado em CD. Lalo barbariza do início ao fim, nos solos de sintetizador (“Secret code”), piano acústico (“Vaccinated mushroms”), órgão Hammond (“Life insurance”) e nos arranjos alucinantes para “Life insurance”, “The gentle earthquake”, a bacanal-vocal de “Machinations” e o clima de fanfarra-épica de “Hawks vs. Doves”, encaixando gritos das torcidas.
Apesar da atmosfera lisérgica predominante, há espaço para a calmaria não-soporífera de “Dissolving” (somando acordeon, cravo e cordas), “Two petals, a flower and a young girl” (levada no assobio) e a bossa renascentista “How to open at will the most beautiful window”, com Shelly Manne na batera, Max Bennett no baixo e Dennis Budimir no violão. Três músicas que tocaram muito, durante os anos 70 e 80, na antiga JB-FM, cuja programação easy-listening era feita por Célio Alzer, titular do “Jazz & blues” na JB-AM e hoje renomado enólogo.
Aulas de instrumentação também rolam, ainda que de forma menos intensa, em “Don Sebesky & the jazz-rock syndrome”, a estréia do maestro na Verve, captada em junho de 1967 e janeiro de 1968. Sebesky cuida de todos os arranjos e teclados (órgão, piano, cravo e um protótipo de Hohner Clavinet), mas assina somente dois temas: “Meet a cheeta” e “Big Mama Cass”, reverenciando a rotunda cantora do grupo The Mamas & The Papas, de cujo repertório pescou “Somebody groovy”. Perde tempo com a melosa “Never my love”, porém acerta na mosca na furiosa recriação de “The word” (Lennon & McCartney), com um solo abrasador do guitarrista Larry Coryell. Também marcam presença Joe Beck, Hubert Laws, Jerry Dodgion, Don Payne, Richard Spencer e a vocalista Janet Sebesky. Importante frisar que, apesar do título, o disco está mais para jazz-pop do que jazz-rock, e nem se compara aos monumentais “Giant box” e “The rape of El Morro”. Quanto aos outros títulos anunciados na abertura, fica para a próxima. A Iris Lettieri de Narita chama o meu vôo. Domo arigato gozaimasu. E sayonara!
Legendas:
“The great Kai & J.J.”, disco inaugural do selo “Impulse!” em 1960, é finalmente relançado em CD
“O maestro argentino Lalo Schifrin esbanja criatividade em atmosfera psicodélica”
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