Monday, May 14, 2007

A caixa de Claus



A caixa de Claus
Arnaldo DeSouteiro


(Artigo escrito em 10 de Abril de 2002 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa")

Dificilmente outro projeto conseguirá desbancar “The man behind the music” – espetacular caixa de quatro CDs dedicada a reverenciar o talento de Claus Ogerman – como o principal lançamento de 2002 no setor que a indústria costuma rotular como “historical album”. Às vésperas de completar 72 anos no próximo dia 29, Claus ganha este presentão monumental do selo Boutique, da Universal alemã, luxuosamente embalado de forma a incluir um livreto de 40 páginas com dezenas de fotos raras, reproduções das capas de todos os álbuns originais, detalhada discografia, e longo texto de Gene Lees, com depoimentos de Tony Bennett, Creed Taylor, Barbra Streisand e muitos outros.

O cardápio sonoro? Bem, o próprio Claus selecionou e supervisionou a remasterização das 59 faixas, comentadas uma a uma, totalizando mais de cinco horas de música. Pela passarela de gala desfilam nomes como Sinatra, Jobim, Getz, Wes, Benson, Grappelli, Turrentine, Astrud, João Gilberto, Bill Evans, Freddie Hubbard, Dr. John, Urbie Green, Sammy Davis Jr. e Diana Krall, alguns dos felizardos que tiveram a honra de trabalhar com o mestre. Uma equipe de experts, comandada pelos produtores Matthias Kunnecke, Stefan Kassel & Christian Kellersman, ajudou a organizar essa efeméride, pontuada pelas gravações de Ogerman como líder, inclusive na área clássica. Impossível listar os sidemen, mas vários brasileiros marcam presença: Claudio Slon, João Palma, Airto, Dom Um Romão, Rubens Bassini, João Donato, Edson Machado, Mauricio Maestro e Naná Vasconcellos, entre outros.

Para quem nunca ouviu falar deste senhor, uma informação básica: trata-se de um dos maiores orquestradores na história da música, ao lado de Legrand, Schifrin, Deodato e Sebesky. Perto dele, como Jobim pôde constatar na prática, até Nelson Riddle vira segundo time. E para os que perderam Claus de vista nos anos 80, talvez acreditando na fofoca ridícula – coisa de brasileiro, claro - de que o monstro se aposentara por estar com câncer, o mistério se desfaz da forma mais clara possível no texto do livreto: depois do “Terra Brasilis”, gravado com Tom em 1980, ele simplesmente se cansou da música popular e resolveu se concentrar na erudita, ou melhor, na “música de concerto”, como prefere chamar.

Ainda chegou a fazer dois discos como líder na linha do jazz crossover, em 82 (“Cityscape”, para a Warner) e 91 (“Ogerman featuring Michael Brecker”, para a GRP), ambos por muita insistência do produtor Tommy LiPuma. Mas trabalhar para outros artistas, nem pensar. Sem pestanejar, recusou convites feitos por Wynton Marsalis, Phil Collins, Dee Dee Bridgewater, Natalie Cole e até um certo Prince. Preferiu compor peças de câmara, obras sinfônicas e ciclos de canções como o sublime “Tagore-Lieder”, gravado por divas do canto lírico. Até capitular, em 2001, a mais uma investida de LiPuma, que apareceu munido de uma proposta tentadora para convencê-lo a gravar com Diana Krall. Ofereceu duzentos mil dólares mais um contrato para o lançamento mundial do álbum clássico “Two concertos”, que nenhuma companhia queria editar. Um papo tête-a-tête com a louraça, derrubou suas últimas resistências. “Depois de um jantar de cinco horas, ninguém resistiria a trabalhar com uma mulher tão charmosa e talentosa”, admite o sedutor (ou seduzido?) Claus.

Toque de gênio

A crítica musical adora usar chavões como “indicado apenas para os admiradores incondicionais” ou “recomendado somente para quem não possui as gravações originais”. Nenhum deles vale para esta caixa, indispensável tanto para os que se julgam profundos conhecedores, como para aqueles que pouco ou nada ouviram da obra de Claus. Porque é praticamente impossível que alguém conheça todos os discos retratados – muitos estão fora de catálogo e talvez jamais sejam reeditados, outros passaram em branco e despontaram para o anonimato, e ainda há faixas tiradas de compactos, além de gravações inéditas.

Entre elas, “I should care”, faixa de abertura do primeiro CD, numa introspectiva performance de piano-solo registrada especialmente para este projeto. (O mesmo tema reaparece encerrando o quarto CD, em suntuosa orquestração destinada ao “The look of love”, de Diana Krall; acabou não entrando no disco da cantora, mas foi aproveitada nesta caixa.) A partir da segunda faixa, “Moonlight in Vermont”, com Stan Getz em 63, é adotada uma ordem cronológica. O que significa dizer que a auto-crítica de Ogerman o fez “esquecer” todas as gravações de sua fase inicial. Ele renega não apenas os seis primeiros discos como líder para os selos United Artists e RCA, mas também os arranjos para Dinah Washington, Betty Carter, Connie Francis, Kai Winding e especialmente Lesley Gore, apesar do hit “It’s my party” ter chegado ao topo da parada pop.

“Eram arranjos horrorosos, queria apagá-los da minha carreira”, confessa por telefone. Entretanto, enche-se de orgulho ao relembrar as gravações com Tom (“Vivo sonhando”, do LP de estréia de Jobim), Astrud (“Fly me to the moon”), Jimmy Smith (“Wives and lovers”), Cal Tjader & The Double Six of Paris (“Sunset Boulevard”), Bill Evans (“Granados”) e Wes Montgomery (“Bumpin’ on sunset”), todas produzidas por Creed Taylor. Há duas faixas do encontro com Sammy Davis Jr. em 1965, e outras duas do disco “Voices”, de Stan Getz em 66, no qual usou um coro fazendo o papel de seção de cordas. Em seguida, Bill Evans & Jim Hall juntam talentos em “Jazz samba”, composição de Claus gravada no disco “Intermodulation”.

Ainda no CD 1, Claus encaixou três faixas de diferentes sessões geradas com Tom em 67: “I concentrate on you” (do histórico primeiro disco ao lado de Sinatra), “Triste” (do LP “Wave”) e “Bonita” (do álbum “A certain Mr. Jobim”). Curiosamente, porém, Ogerman desprezou o registro original de “Wave” em favor da versão magistral perpetrada por Oscar Peterson em 69. E “The look of love” surge não na recente leitura de Diana Krall (“a faixa não ficou tão boa quanto eu desejava...”), mas sim através do sax de Stan Getz, num registro de 68. O flautista Paul Horn apresenta a psicodélica “Joy”, lançada apenas em single, enquanto David Clayton-Thomas (vocalista do Blood Sweat & Tears) entoa “She”, dois momentos estranhos.

Aulas de arranjo

O segundo CD cobre o período 73-76, começando com Tom em “Águas de março” (Gene Lees compara a união Jobim-Ogerman à colaboração entre Duke Ellington & Billy Srayhorn) e terminando com George Benson em “Breezin’” e “Valdez in the country”. Enigmático, Claus se recusa a explicar as ausências do mega-hit “This masquerade” e de “Soulful strut” (faixa de Benson que deu ao maestro seu único Grammy, apesar de outras dezesseis indicações). Assim como surpreende ao eleger “Pieces of dreams” sua melhor gravação com Barbra Streisand, quando todos esperavam alguma faixa de “Classical Barbra”, seu disco mais elogiado com a famosa cantriz. Ogerman volta a Tom via “Saudade do Brasil” (“lembro que Jobim caiu em prantos quando o levei para assistir “Petroushka”, de Stravinsky, no Metropolitan”) e “Ana Luiza”, na gravação do fantástico trombonista Urbie Green. Como autor, Claus está representado por “Favors” (Hank Jones), “A face without a name” (Bill Evans & Eddie Gomez), “Look around” (The Singers Unlimited”), e vários trechos do balé “Some times”, depois rebatizado “Gate of dreams”.

Stanley Turrentine abre o terceiro CD, limitado ao período 77-79. Michael Franks e David Sanborn brilham no arranjo de Claus para “Antonio’s song”, quase tão magistral quanto o de “Estate” na antológica gravação de João Gilberto, a quem nosso temperamental maestro não faz louvação alguma. Porém, derrama-se em elogios à ate então inédita faixa “Descompassadamente”, de Joyce, apesar de nunca ter não lançado o álbum produzido para a cantora em 77. Ogerman escolheu também faixas dos encontros com Jan Akkerman, Dr. John, Stephane Grappelli e Freddie Hubbard, com o trompetista no auge da forma em “The love connection”, um funkão com arrepiantes riffs de metais, e “Lazy afternoon”, sublime balada eleita por Claus como “meu melhor trabalho e tudo o que eu posso fazer como arranjador”. Detalhe: gravado em 79 com participações de Chick Corea, Stanley Clarke e Rubens Bassini, o LP “The love connection”, execrado pela crítica (recebeu apenas duas estrelas na Down Beat), nunca foi relançado.

No quarto CD, mais Jobim, via “Chovendo na roseira”, do álbum-duplo “Terra brasilis”. Dali em diante, apenas obras de Ogerman. Michael Brecker faz misérias em “Corfu”, o mezzo-soprano Marilyn Schmiege apresenta “I loved you” (baseada num poema de Alexander Pushkin), Claus rege a Sinfônica de Londres nas densas “Elegia”, “Lyric suite” e “Preludio and chant”, e Aaron Rosand demonstra seu virtuosismo na “Valse lente”, terceiro movimento do “Concerto Lirico” para violino e orquestra. Quando o ouvinte, extenuado no melhor dos sentidos, pensa que nada mais poderá surpreende-lo, surge a demencializante adaptação para “Smile”, executada pelo violinista Gidon Kremer de forma inenarrável. Extirpando o ranço de melodramaticidade que costuma infectar a canção de Chaplin, Claus mergulha na essência do tema, resgatando seu pungente lirismo. Diana Krall ainda volta para liquidar a fatura com “I should care”. Feliz aniversário, Claus!

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